Último fluxo de consciência às três da manhã

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
ACID NEON: Narrativas de um futuro próximo vol. 02

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Último fluxo de consciência às três da manhã
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As luzes neon traçavam seu fim. Padrões sincronizados

com a rede de informações que permeavam a cidade e

revelavam sua localização.

Péssima noite pra usar papel.

Ela perambulava o centro histórico a esmo. Havia jogado

o celular em algum bueiro e deixado a smart lens no banheiro

de um bar, mas isso não eliminava sua pegada virtual.

Outros ainda a registravam – No fundo de selfies alheios, em

algum visual streaming na frente da balada.

Acabou se enfiando na fila que andava mais rápido

e em menos de dois minutos viu-se no meio de uma festa de

cores sob luz negra. A batida rimbombou no peito acelerado

e o rosa-neon borrou metade da visão. Péssima noite. Botou

tudo pra fora ali no chão do salão.

Quando vira a movimentação estranha no monitor

do sistema de segurança, a droga já estava batendo. Um quadradinho

de papel cor de rosa, estampada com uma bicicletinha

livre a passear na brisa. Ou será que era um patinete?

Tinha os dois desenhos na cartela. De qualquer forma, a evidência

estava lá, saltando da página: o expert em segurança

que contratara agora fechava uma teia ao seu redor.

Arrastou-se para o banheiro da balada. Depois de

outra fila, entrou no caos de meninas se arrumando, pintando

e chorando, onde a única coisa que a interessava era

a janelinha acima de um dos cubículos. Entrou no espaço

forrado de papel molhado e subiu na privada, e, por algum

milagre, a janela abria e não era barrada por grades. Quantos

calotes eles já levaram por esse vidrinho? Com a força das

aulas de crossfit, conseguiu se içar pela passagem, dar uma

olhada na rua lá embaixo e pendurar-se no beiral para cair

em pé. Isso iria despistá-lo. Algumas moças gritaram ao ver

o que ela fazia.

Acontece que o chão estava bem mais distante do

que a brisa a permitia discernir. Ninguém em pleno juízo

arriscava a altura, e as bêbadas e drogadas acabavam ficando

estateladas ali até os seguranças as encontrarem. Mas B. Bueno

já havia se esborrachado aquela noite.

Notícias que pipocavam em qualquer feed: ‘B. Bueno

é a maior esperança da nova geração’, diz especialista da

área da saúde; EverHealth promete a cura das doenças que

mais matam no mundo; Em entrevista, B. Bueno conta os

dez passos que levaram a EverHealth ao valor de U$1 bilhão

em seis meses.

Notícias possíveis para dali a algumas horas: EverHealth

é a maior farsa da história; ‘Perdemos tudo para um

monte de promessas vazias’ diz investidor; B. Bueno encontrada

morta em ruela após tentativa de fuga de uma balada

local’.

Não, essa aí não.

Ela havia caído sobre a perna esquerda e esfolado

as palmas das mãos. Sentou-se e testou a perna aos poucos.

Doía, mas era distante. Uma dor de outra pessoa que imaginava

sentir. Se arrastou até uma rua qualquer, torcendo para

que o segurança do local não estivesse a fim de catar meninas

alteradas da calçada aquela noite.

A ruela lateral dava de frente para a praça. Ela era encimada

por ruínas de uma igreja inacabada. O lugar poderia

ser o logotipo das EverHealth, em tanto se pareciam, ambos

natimortos.

Mas Bueno tinha que admitir que sua empresa de

fachada sequer se compararia àquela estrutura dali alguns

anos. Ao menos ali havia uma carcaça a mostrar, uma que

se fazia de palco em frente a galeria em forma de arquibancada.

Juntos, formavam um ninho de adolescentes que experimentavam

coisas que deixariam o papelzinho de Bueno

acanhado. O máximo que sua empresinha iria fazer era se

pulverizar pela nuvem feito escândalo.

Fez menção de entrar na galeria sem luz, deixar

o tempo passar ali, entre os noias, mas ao pôr um pé arco

adentro, o escuro amansou e revelou uma silhueta conhecida

demais.

Ela correu, descendo a ladeira e se tropeçando, dor

da perna ignorada com sucesso.

O centro histórico estava decadente havia tempos,

todas aquelas pessoas dormindo na escadinha da igreja. Talvez

fosse por elas que os riquinhos colocavam todas as fichas

na EverHealth. Encontrar no caminho dos rolês de sexta

aqueles moribundos, destruídos pelo inferno do dia e o ártico

da noite, há de instigar até neurônios dormentes a pensar,

ao menos, na sua própria fragilidade.

Bueno já sabia que seria fácil enganar todo o país.

Diga o que eles querem ouvir – vida eterna, a cura de todos

os cânceres – mas de uma forma complicada o suficiente

a ponto de parecer verdade e peça uns cem mil de investimento

inicial. Consiga a grana, bata em outra porta e peça

quinhentos mil. “O Investidor-apresentador-de-stream-famoso-

da-vez já nos apoia. Com o seu fundo, podemos fazer

história”. Repita até não ter mais a quem pedir. Lave o dinheiro

– em loja de doces à jogatina ilegal na Rússia, mas faça

ele voltar todo limpinho, com recibo e nota fiscal. Enrole os

representantes com vídeos sobre os desafios tecnológicos já

superados pela equipe da EverHealth, e como a panaceia universal

está alguns anos mais perto de ser alcançada. Não há

equipe, só você e o sócio que cuida da segurança do esquema.

Não fique com a parte do seu sócio só pra sentir o

tesão da superioridade outra vez. Pena que esse ponto ficou

só no papel.

Ela sentou na borda da fonte para amarrar os sapatos,

virando a cabeça para os lados e encontrando o rosto

dele em cada um dos sem-teto que afogavam as mágoas ao

redor da pracinha dos turistas. Teve o desprazer de encarar

a peça central da fonte, uma cabeça de cavalo que jorrava seu

sangue aquoso pela boca feito assombração equina. Mas não

havia sinal real dele. Será que estava em seu encalço? Será

que ela alucinava? Será que ele se divertia com a perseguição?

Mark sempre foi um perturbado, mesmo.

Ainda havia uma chance. Uma noite, um contato

da vez, o piloto do táxi aéreo que ficou na dívida com ela.

Deviam estar vigiando todas as rotas ao aeroporto, mas não

uma ida direta até a pista. Só precisava parar de imaginar

coisas e focar, em seu mapa mental zoado, qual seria a via

que a levaria ao hotel em que ele morava. Seria em frente,

pelo caminho dos bares? Pela lateral direita em meio aos arranha-

céus? A esquerda, ao lado da igreja, que subia a ruela

tomada por moradores de rua?

Atrás do gorgolejo da fonte, destacou-se um som

pesado, como botas paramilitares descendo sobre o chão de

ladrilho.

Decidiu pela via ao lado da igreja. Apenas quando

já a subia que percebeu conhecer o lugar; antro de êxtase

e desespero que visitava entre suas iniciativas falhas. Muitas

noites ali a renderam muitas dores de cabeça e um filho.

Sorriu ao pensar que o pequeno estava longe e nunca conheceria

aquele lugar. Mas haviam tantos distritos como esse

pelo mundo... Punks com próteses modificadas, mais noias e

adolescentes assustados tentando parecer legais pros amigos;

toda a fauna colorida da cidade aparecia por ali. A prefeitura,

não querendo que a ruela tivesse mais atenção que seus pontos

turísticos precisamente projetados, a deixou apodrecer.

Casas e bares abandonados, ateliês dentro de prédios históricos

arruinados.

Para Bueno, mais uma chance de despistar o perseguidor.

Entrou num dos prédios de esquina vazios, assustando

o povo que se abrigava ali, e foi para o segundo andar,

onde a estrutura do soalho dificilmente suportaria Mark e

todo seu tamanho de geladeira duas portas. Paredes foram

derrubadas entre apartamentos, um caminho mais fácil de

seguir que o nível da rua. Alguém a chamou pelo nome,

mas nenhuma conversa ali teria final agradável. Pegou-se

apalpando os bolsos internos, procurando a proteção que o

próprio perseguidor havia lhe dado tempo antes, quando ele

ainda poderia considerá-la uma amiga. Talvez amiga fosse

muito forte. Sócia?

Chegou a escada partida no final. Não podia pular

pro andar debaixo, então sentou-se no último e escorregou

até o chão. Depois da saída desconfortável, deixou os prédios

para trás e atravessou a avenida movimentada, desejando

que cada um daqueles carros atropelassem o maldito, se ele

ainda estivesse no seu encalço. Alguns dos modelos novos,

sem motorista, pararam ao detectá-la em frente, mas nada

fizeram para impedir a explosão de xingamentos que surgia

de dentro.

Bueno subiu a última rua com uma obstinação irracional,

um apelo para alcançar simplesmente um destino

qualquer. Chegando na esquina, teve que se segurar para

não cair de joelhos: errara o caminho por completo, estava

mais longe do hotel chique com heliporto do que estivera em

qualquer momento da noite, e a uma hora dessas, nenhum

ônibus passaria pelo terminal em frente. Maldita cidade provinciana,

que morre à noite feito vila do interior.

Atravessou a ruela vazia e subiu a escadaria como

forma de assumir a derrota. No topo, foi recebida de braços

abertos por um deus apagado pelo pixo. Estirou a perna ferida

que começava a inchar. O cemitério municipal se apresentava

quieto como os bairros dos ricos.

A fachada de igreja desconstruída – colunas, arcos e

abóbodas coloridos e reorganizados ao estilo do final do século

XX – mal esconderam Mark, quando este saiu da capela

e se aproximou de arma em mãos.

“Por quanto tempo você me seguiu?” Ela perguntou,

sem muito interesse.

“Não segui. Os robôs preveem o local de qualquer

pessoa a qualquer hora com base no feed e nos algoritmos

de tendência personalizados. Saberia se prestasse atenção em

qualquer coisa. Você é péssima fugitiva, acabando aqui à essa

hora. Cheguei aqui uns minutos atrás.”

Ela riu, pensando no fantasma que a assustara até

chegar ali. Como se o sistema a tivesse empurrado até o fim.

Ele agachou ao seu lado, podia senti-lo a fuzilando com os

olhos.

“O que você fez com o dinheiro? Vou ser legal e pedir

só a minha parte, depois você pode ir.”

Bueno não pareceu dar ouvidos, mas começou a falar.

“Quando eu era bem guria, pequena ainda, ficava na

sacada olhando os executivos de terno que passavam na rua,

indo almoçar. Trabalhavam nas empresas que estampavam

o nome nos arranha-céus, sabe? Andavam em turma, viviam

na bolha deles e ignoravam todo o resto. Mamãe dizia que

eu era bem mais inteligente que eles, mas os profes diziam

que não. A galera dizia que não. Os ternos disseram que não,

quando mostrei as minhas ideias pra eles, lá quando eu ainda

me importava. Quer saber? Fiz de meta provar que mamãe

tava certa.”

“Eu tenho nada a ver com essa sua vingança pessoal.

Estamos aqui por um trabalho, que realizamos juntos, e merecemos

ganhar juntos.”

“É tudo uma merda, sabe? O predinho era velho, deteriorava

a cada dia. Os vazamentos, goteiras, ratos, baratas.

Tudo sobe da rua ou desce dos vizinhos, sem tempo de resolver

um, surge o próximo. Você deteriora, e seus queridos

também. Enquanto isso eles jantam num terraço qualquer,

outro negócio bem sucedido. Quase nenhum produz algo,

só ficam num troca-troca de promessas, fazendo a mesma

empresa merreca parecer um negócio milionário. Quando

muito, inventam outra porcaria de acessório para implante.”

Só de pensar que ela conseguiu tirar a mãe e a tia daquele

lugar mofado, estava tudo bem. Só de pensar que o pequeno

teria uma vida digna de verdade, estava tudo bem.

Mark começava a girar os ombros, mostrando que

perdia a paciência. “E você conseguiu fazer todos aqueles

babacas despejarem suas economias na EverHealth. Perfeito,

B. Você venceu. Agora para com essa brincadeira infantil e

transfere a minha parte. Estaremos quites.” Ele puxou um

aparelho do bolso, um velho smartphone com um sistema

customizado para realizar transações em um banco secreto

que flutua na nuvem, vindo de algum lugar das águas internacionais.

Ela apenas olhou para o aparelho, mas não fez

menção de pegá-lo.

“Deixa eu adivinhar, coloco a minha digital e senha,

um spyware instalado nisso aí salva as informações, você me

dá um tiro na cabeça e pega todo o dinheiro? Meio arcaico

pro senhor espião, mas funciona.”

Ele ri. “É, desculpe, eu não deixo barato para quem

me passa a perna. Mas como vê, você não tem muita escolha.”

Disse, mostrando a pistola. “Eu tenho maneiras de fazer

ceder a grana, e são bem menos amigáveis que a nossa conversa.”

“Antes disso, eu quero ver pelas lens de novo, Mark.

Me empresta aquela que você nunca usa?”

Mesmo sem saber se estava caindo em uma armadilha,

ele obedece e a entrega a caixinha com a lente. “Ela está

sem rede, nem adianta tentar chamar alguém.”

“E lá preciso de rede para ver os anúncios?”

A encaixou no olho direito e a mirou para os arranha-

céus que se destacavam atrás do baixo centro histórico.

As fachadas explodiram em cor; rosa e dourado destacando

as animações da logo da Everhealth. B. Bueno aparecia ali em

foto e vídeo, apresentações de uma CEO confiante saltando

das telas de anúncio só visíveis em realidade aumentada, a

muralha virtual de propagandas, um culto a sua própria personalidade.

“Sabe Mark, você não é melhor que os outros. São

uns fodidos que nem você que fazem esses crimes darem

certo, somem com o dinheiro e os sonhos do mundo. Tanto

no ramo público quanto no privado, eu sei que você está lá,

fazendo de tudo pra conseguir uma partinha, umas gotinhas

de alegria pra se manter mais uns meses. E eu te enganei, e

a todos os outros ridículos dessa cidade. É claro que prestei

atenção no que você dizia, quando achava útil. Não tenho

acesso à conta que está com o dinheiro, quem tem é a mãe,

que está junto com a tia e o meu menino, todos num lugar

bem longe que você não irá achar. Apaguei o rastro virtual

deles, levei a tarde toda fazendo isso hoje, mas acabei relaxando

e achando que dava para passar uma noite tranquila

antes de limpar o meu e vazar.”

Mark levantou num salto, arreganhando os dentes

em fúria, mas depois mudando para um sorriso pouco convincente.

“Então eu vou ter que partir pro pior. Você vai ver

o que é pau-de-arara e tudo o que eu aprendi com o pessoal

da velha guarda. Quebrar cada pedacinho da sua vontade até

você dizer onde as megeras tão. Aí vou fazer você assistir

eu acabar com cada um deles, começando pelo moleque de

bosta.”

Mas Bueno ria. “Você tinha razão, Mark. Eu venci!”

Pegou a “proteção” do bolso da jaqueta, encaixou embaixo

do queixo e puxou o gatilho antes que o outro pudesse

pará-la. Caiu deitada de braços abertos, enquanto o homem

urrava de frustração. A droga ingerida havia mudado a baixa

probabilidade de suicídio que fora calculada pelo algoritmo.

Pela lens, os anúncios davam contornos dourados ao

corpo e sua auréola de sangue, um merchan da EverHealth estirado

na calçada.

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