Prólogo
Epílogo
Conto
As luzes neon traçavam seu fim. Padrões sincronizados
com a rede de informações que permeavam a cidade e
revelavam sua localização.
Péssima noite pra usar papel.
Ela perambulava o centro histórico a esmo. Havia jogado
o celular em algum bueiro e deixado a smart lens no banheiro
de um bar, mas isso não eliminava sua pegada virtual.
Outros ainda a registravam – No fundo de selfies alheios, em
algum visual streaming na frente da balada.
Acabou se enfiando na fila que andava mais rápido
e em menos de dois minutos viu-se no meio de uma festa de
cores sob luz negra. A batida rimbombou no peito acelerado
e o rosa-neon borrou metade da visão. Péssima noite. Botou
tudo pra fora ali no chão do salão.
Quando vira a movimentação estranha no monitor
do sistema de segurança, a droga já estava batendo. Um quadradinho
de papel cor de rosa, estampada com uma bicicletinha
livre a passear na brisa. Ou será que era um patinete?
Tinha os dois desenhos na cartela. De qualquer forma, a evidência
estava lá, saltando da página: o expert em segurança
que contratara agora fechava uma teia ao seu redor.
Arrastou-se para o banheiro da balada. Depois de
outra fila, entrou no caos de meninas se arrumando, pintando
e chorando, onde a única coisa que a interessava era
a janelinha acima de um dos cubículos. Entrou no espaço
forrado de papel molhado e subiu na privada, e, por algum
milagre, a janela abria e não era barrada por grades. Quantos
calotes eles já levaram por esse vidrinho? Com a força das
aulas de crossfit, conseguiu se içar pela passagem, dar uma
olhada na rua lá embaixo e pendurar-se no beiral para cair
em pé. Isso iria despistá-lo. Algumas moças gritaram ao ver
o que ela fazia.
Acontece que o chão estava bem mais distante do
que a brisa a permitia discernir. Ninguém em pleno juízo
arriscava a altura, e as bêbadas e drogadas acabavam ficando
estateladas ali até os seguranças as encontrarem. Mas B. Bueno
já havia se esborrachado aquela noite.
Notícias que pipocavam em qualquer feed: ‘B. Bueno
é a maior esperança da nova geração’, diz especialista da
área da saúde; EverHealth promete a cura das doenças que
mais matam no mundo; Em entrevista, B. Bueno conta os
dez passos que levaram a EverHealth ao valor de U$1 bilhão
em seis meses.
Notícias possíveis para dali a algumas horas: EverHealth
é a maior farsa da história; ‘Perdemos tudo para um
monte de promessas vazias’ diz investidor; B. Bueno encontrada
morta em ruela após tentativa de fuga de uma balada
local’.
Não, essa aí não.
Ela havia caído sobre a perna esquerda e esfolado
as palmas das mãos. Sentou-se e testou a perna aos poucos.
Doía, mas era distante. Uma dor de outra pessoa que imaginava
sentir. Se arrastou até uma rua qualquer, torcendo para
que o segurança do local não estivesse a fim de catar meninas
alteradas da calçada aquela noite.
A ruela lateral dava de frente para a praça. Ela era encimada
por ruínas de uma igreja inacabada. O lugar poderia
ser o logotipo das EverHealth, em tanto se pareciam, ambos
natimortos.
Mas Bueno tinha que admitir que sua empresa de
fachada sequer se compararia àquela estrutura dali alguns
anos. Ao menos ali havia uma carcaça a mostrar, uma que
se fazia de palco em frente a galeria em forma de arquibancada.
Juntos, formavam um ninho de adolescentes que experimentavam
coisas que deixariam o papelzinho de Bueno
acanhado. O máximo que sua empresinha iria fazer era se
pulverizar pela nuvem feito escândalo.
Fez menção de entrar na galeria sem luz, deixar
o tempo passar ali, entre os noias, mas ao pôr um pé arco
adentro, o escuro amansou e revelou uma silhueta conhecida
demais.
Ela correu, descendo a ladeira e se tropeçando, dor
da perna ignorada com sucesso.
O centro histórico estava decadente havia tempos,
todas aquelas pessoas dormindo na escadinha da igreja. Talvez
fosse por elas que os riquinhos colocavam todas as fichas
na EverHealth. Encontrar no caminho dos rolês de sexta
aqueles moribundos, destruídos pelo inferno do dia e o ártico
da noite, há de instigar até neurônios dormentes a pensar,
ao menos, na sua própria fragilidade.
Bueno já sabia que seria fácil enganar todo o país.
Diga o que eles querem ouvir – vida eterna, a cura de todos
os cânceres – mas de uma forma complicada o suficiente
a ponto de parecer verdade e peça uns cem mil de investimento
inicial. Consiga a grana, bata em outra porta e peça
quinhentos mil. “O Investidor-apresentador-de-stream-famoso-
da-vez já nos apoia. Com o seu fundo, podemos fazer
história”. Repita até não ter mais a quem pedir. Lave o dinheiro
– em loja de doces à jogatina ilegal na Rússia, mas faça
ele voltar todo limpinho, com recibo e nota fiscal. Enrole os
representantes com vídeos sobre os desafios tecnológicos já
superados pela equipe da EverHealth, e como a panaceia universal
está alguns anos mais perto de ser alcançada. Não há
equipe, só você e o sócio que cuida da segurança do esquema.
Não fique com a parte do seu sócio só pra sentir o
tesão da superioridade outra vez. Pena que esse ponto ficou
só no papel.
Ela sentou na borda da fonte para amarrar os sapatos,
virando a cabeça para os lados e encontrando o rosto
dele em cada um dos sem-teto que afogavam as mágoas ao
redor da pracinha dos turistas. Teve o desprazer de encarar
a peça central da fonte, uma cabeça de cavalo que jorrava seu
sangue aquoso pela boca feito assombração equina. Mas não
havia sinal real dele. Será que estava em seu encalço? Será
que ela alucinava? Será que ele se divertia com a perseguição?
Mark sempre foi um perturbado, mesmo.
Ainda havia uma chance. Uma noite, um contato
da vez, o piloto do táxi aéreo que ficou na dívida com ela.
Deviam estar vigiando todas as rotas ao aeroporto, mas não
uma ida direta até a pista. Só precisava parar de imaginar
coisas e focar, em seu mapa mental zoado, qual seria a via
que a levaria ao hotel em que ele morava. Seria em frente,
pelo caminho dos bares? Pela lateral direita em meio aos arranha-
céus? A esquerda, ao lado da igreja, que subia a ruela
tomada por moradores de rua?
Atrás do gorgolejo da fonte, destacou-se um som
pesado, como botas paramilitares descendo sobre o chão de
ladrilho.
Decidiu pela via ao lado da igreja. Apenas quando
já a subia que percebeu conhecer o lugar; antro de êxtase
e desespero que visitava entre suas iniciativas falhas. Muitas
noites ali a renderam muitas dores de cabeça e um filho.
Sorriu ao pensar que o pequeno estava longe e nunca conheceria
aquele lugar. Mas haviam tantos distritos como esse
pelo mundo... Punks com próteses modificadas, mais noias e
adolescentes assustados tentando parecer legais pros amigos;
toda a fauna colorida da cidade aparecia por ali. A prefeitura,
não querendo que a ruela tivesse mais atenção que seus pontos
turísticos precisamente projetados, a deixou apodrecer.
Casas e bares abandonados, ateliês dentro de prédios históricos
arruinados.
Para Bueno, mais uma chance de despistar o perseguidor.
Entrou num dos prédios de esquina vazios, assustando
o povo que se abrigava ali, e foi para o segundo andar,
onde a estrutura do soalho dificilmente suportaria Mark e
todo seu tamanho de geladeira duas portas. Paredes foram
derrubadas entre apartamentos, um caminho mais fácil de
seguir que o nível da rua. Alguém a chamou pelo nome,
mas nenhuma conversa ali teria final agradável. Pegou-se
apalpando os bolsos internos, procurando a proteção que o
próprio perseguidor havia lhe dado tempo antes, quando ele
ainda poderia considerá-la uma amiga. Talvez amiga fosse
muito forte. Sócia?
Chegou a escada partida no final. Não podia pular
pro andar debaixo, então sentou-se no último e escorregou
até o chão. Depois da saída desconfortável, deixou os prédios
para trás e atravessou a avenida movimentada, desejando
que cada um daqueles carros atropelassem o maldito, se ele
ainda estivesse no seu encalço. Alguns dos modelos novos,
sem motorista, pararam ao detectá-la em frente, mas nada
fizeram para impedir a explosão de xingamentos que surgia
de dentro.
Bueno subiu a última rua com uma obstinação irracional,
um apelo para alcançar simplesmente um destino
qualquer. Chegando na esquina, teve que se segurar para
não cair de joelhos: errara o caminho por completo, estava
mais longe do hotel chique com heliporto do que estivera em
qualquer momento da noite, e a uma hora dessas, nenhum
ônibus passaria pelo terminal em frente. Maldita cidade provinciana,
que morre à noite feito vila do interior.
Atravessou a ruela vazia e subiu a escadaria como
forma de assumir a derrota. No topo, foi recebida de braços
abertos por um deus apagado pelo pixo. Estirou a perna ferida
que começava a inchar. O cemitério municipal se apresentava
quieto como os bairros dos ricos.
A fachada de igreja desconstruída – colunas, arcos e
abóbodas coloridos e reorganizados ao estilo do final do século
XX – mal esconderam Mark, quando este saiu da capela
e se aproximou de arma em mãos.
“Por quanto tempo você me seguiu?” Ela perguntou,
sem muito interesse.
“Não segui. Os robôs preveem o local de qualquer
pessoa a qualquer hora com base no feed e nos algoritmos
de tendência personalizados. Saberia se prestasse atenção em
qualquer coisa. Você é péssima fugitiva, acabando aqui à essa
hora. Cheguei aqui uns minutos atrás.”
Ela riu, pensando no fantasma que a assustara até
chegar ali. Como se o sistema a tivesse empurrado até o fim.
Ele agachou ao seu lado, podia senti-lo a fuzilando com os
olhos.
“O que você fez com o dinheiro? Vou ser legal e pedir
só a minha parte, depois você pode ir.”
Bueno não pareceu dar ouvidos, mas começou a falar.
“Quando eu era bem guria, pequena ainda, ficava na
sacada olhando os executivos de terno que passavam na rua,
indo almoçar. Trabalhavam nas empresas que estampavam
o nome nos arranha-céus, sabe? Andavam em turma, viviam
na bolha deles e ignoravam todo o resto. Mamãe dizia que
eu era bem mais inteligente que eles, mas os profes diziam
que não. A galera dizia que não. Os ternos disseram que não,
quando mostrei as minhas ideias pra eles, lá quando eu ainda
me importava. Quer saber? Fiz de meta provar que mamãe
tava certa.”
“Eu tenho nada a ver com essa sua vingança pessoal.
Estamos aqui por um trabalho, que realizamos juntos, e merecemos
ganhar juntos.”
“É tudo uma merda, sabe? O predinho era velho, deteriorava
a cada dia. Os vazamentos, goteiras, ratos, baratas.
Tudo sobe da rua ou desce dos vizinhos, sem tempo de resolver
um, surge o próximo. Você deteriora, e seus queridos
também. Enquanto isso eles jantam num terraço qualquer,
outro negócio bem sucedido. Quase nenhum produz algo,
só ficam num troca-troca de promessas, fazendo a mesma
empresa merreca parecer um negócio milionário. Quando
muito, inventam outra porcaria de acessório para implante.”
Só de pensar que ela conseguiu tirar a mãe e a tia daquele
lugar mofado, estava tudo bem. Só de pensar que o pequeno
teria uma vida digna de verdade, estava tudo bem.
Mark começava a girar os ombros, mostrando que
perdia a paciência. “E você conseguiu fazer todos aqueles
babacas despejarem suas economias na EverHealth. Perfeito,
B. Você venceu. Agora para com essa brincadeira infantil e
transfere a minha parte. Estaremos quites.” Ele puxou um
aparelho do bolso, um velho smartphone com um sistema
customizado para realizar transações em um banco secreto
que flutua na nuvem, vindo de algum lugar das águas internacionais.
Ela apenas olhou para o aparelho, mas não fez
menção de pegá-lo.
“Deixa eu adivinhar, coloco a minha digital e senha,
um spyware instalado nisso aí salva as informações, você me
dá um tiro na cabeça e pega todo o dinheiro? Meio arcaico
pro senhor espião, mas funciona.”
Ele ri. “É, desculpe, eu não deixo barato para quem
me passa a perna. Mas como vê, você não tem muita escolha.”
Disse, mostrando a pistola. “Eu tenho maneiras de fazer
ceder a grana, e são bem menos amigáveis que a nossa conversa.”
“Antes disso, eu quero ver pelas lens de novo, Mark.
Me empresta aquela que você nunca usa?”
Mesmo sem saber se estava caindo em uma armadilha,
ele obedece e a entrega a caixinha com a lente. “Ela está
sem rede, nem adianta tentar chamar alguém.”
“E lá preciso de rede para ver os anúncios?”
A encaixou no olho direito e a mirou para os arranha-
céus que se destacavam atrás do baixo centro histórico.
As fachadas explodiram em cor; rosa e dourado destacando
as animações da logo da Everhealth. B. Bueno aparecia ali em
foto e vídeo, apresentações de uma CEO confiante saltando
das telas de anúncio só visíveis em realidade aumentada, a
muralha virtual de propagandas, um culto a sua própria personalidade.
“Sabe Mark, você não é melhor que os outros. São
uns fodidos que nem você que fazem esses crimes darem
certo, somem com o dinheiro e os sonhos do mundo. Tanto
no ramo público quanto no privado, eu sei que você está lá,
fazendo de tudo pra conseguir uma partinha, umas gotinhas
de alegria pra se manter mais uns meses. E eu te enganei, e
a todos os outros ridículos dessa cidade. É claro que prestei
atenção no que você dizia, quando achava útil. Não tenho
acesso à conta que está com o dinheiro, quem tem é a mãe,
que está junto com a tia e o meu menino, todos num lugar
bem longe que você não irá achar. Apaguei o rastro virtual
deles, levei a tarde toda fazendo isso hoje, mas acabei relaxando
e achando que dava para passar uma noite tranquila
antes de limpar o meu e vazar.”
Mark levantou num salto, arreganhando os dentes
em fúria, mas depois mudando para um sorriso pouco convincente.
“Então eu vou ter que partir pro pior. Você vai ver
o que é pau-de-arara e tudo o que eu aprendi com o pessoal
da velha guarda. Quebrar cada pedacinho da sua vontade até
você dizer onde as megeras tão. Aí vou fazer você assistir
eu acabar com cada um deles, começando pelo moleque de
bosta.”
Mas Bueno ria. “Você tinha razão, Mark. Eu venci!”
Pegou a “proteção” do bolso da jaqueta, encaixou embaixo
do queixo e puxou o gatilho antes que o outro pudesse
pará-la. Caiu deitada de braços abertos, enquanto o homem
urrava de frustração. A droga ingerida havia mudado a baixa
probabilidade de suicídio que fora calculada pelo algoritmo.
Pela lens, os anúncios davam contornos dourados ao
corpo e sua auréola de sangue, um merchan da EverHealth estirado
na calçada.