Prólogo
Epílogo
Conto
23h59 - Dia 649 do 21º ciclo
Iniciando agora atualização geral
automática...
1%
2.%
...
97%
98% .
99%..
...
Seu sistema operacional não suporta
o volume de dados.
Atualize o sistema.
Atualize o sistema.
Atualize o sistema.
Deseja tentar novamente?
A marreta é de um peso inesperado; as mãos de Matriz
quase chegam a não suportá-lo, o display lotado com as
notificações de todos os músculos que decretaram arrego.
É preciso agachar-se. Aos poucos o oxigênio circula, então,
passando pelos filtros que há muito não veem limpeza, despertando
um acesso violento de tosse, levando anêmica força
para um corpo que pouco uso tem para fazer dela. E é só assim
que Matriz se levanta. Limpa o sangue da boca, dispensa
manualmente cada uma das mais de trezentas notificações e,
após dois minutos de sistema travado, espremendo da RAM
a memória necessária, testa de novo o peso da ferramenta
nas mãos.
— Vou levar. Quanto é? — pergunta para Cooler,
cujos hobbies são observar e julgar, sempre em silêncio, o
led de seus olhos vermelhos brilhando com prazer. — Pago
em guedes. Criptografados, claro.
— Mais caro do que você pode pagar. Demorei três
ciclos inteiros para encontrar essa. É de ferro. Qual foi a última
vez que você viu ferro fundido na sua vida? Não é da
sua época.
Matriz sente a vontade de dizer que, para encontrar
ferro, bastaria olhar para o próprio corpo. Não é à toa que
a pele sintética, antes um tom claro de marrom, agora está
cheia de manchas alaranjadas, que as dores pelo atrito sejam
agora parte da rotina, que seu hálito cheire a ferrugem. Talvez
Cooler não tenha bons sensores olfativos.
— Não foi isso que eu perguntei. — É o que responde,
porém. No deslizar das mãos pelo cabo de madeira, uma
farpa se intromete na pele, e há algo de engraçado na dor
fininha que se espalha tal como spam por todo o braço. — Eu
disse que vou levar. E perguntei quanto é.
— Me prove que você pode pagar então, protótipo.
E sele o segredo.
Cooler estende o braço, exibindo o front end aberto
na altura do pulso, e espera com um esgar a contorcer-lhe
as faces de plástico. E por mais que Matriz hesite, o corpo
retesado como cabos de atlanita, não há outra opção que não
retribuir o gesto. As peles se aproximam, acende a luz vermelha
e o corpo se permite violar; trocas de informação via
infravermelho são, mais do que apenas proibidas pela lei, um
ritual invasivo, sujo, errado. Pecaminoso.
Ninguém diz nada. Há o zumbido suave dos hologramas,
o vibrar dos cookies e caches sendo coletados pela
administração, o ruído das lixeiras absorvendo arquivos; há
a música das ADs que se alternam entre as fachadas dos prédios,
sobrepostas de tal forma que se tornam indistinguíveis;
há o trinar vindo das milhares de notificações recebidas, ao
mesmo tempo, por pessoas que se recusam a desativar o aviso
sonoro. E enfim, há Cooler a encarar-lhe de olhos arregalados
em um cômodo que parece ter vindo diretamente do
Internet Archive, cheio de quinquilharias como smartphones,
facas de cozinha, xícaras de cerâmica e óculos de grau.
— Última vez que eu vou perguntar isso — geme Matriz
entre ofegos, tremendo sob os arrepios que vão da cabeça
até a ponta dos pés contorcidos. — Eu vou levar. Quanto
você quer?
• • •
Na rotina de criar trojans induzidos para a resistência
dos Araguaias há muitos anos, Matriz se acostumou a ver
o jeito como corpos podem sentir — ódio, raiva, fúria —,
mas desde que os estabilizadores de humor pararam de rodar
em seu sistema, tem percebido que experimentar na prática
a doença é muito diferente de criá-la para fins de tumulto
social.
Não há antidepressivos comprados clandestinamente
que consigam domar o desespero e a agonia que lhe correm
pelas veias enferrujadas; era assim que as pessoas viviam antes?
Nos seus piores momentos, arrancando com os próprios
dedos as fibras elásticas que lhe decoram a cabeça, Matriz
sente saudade da apatia. Os ebooks de história que tanto custou
para adquirir, em leilões milionários de fóruns criptografados,
destacam que é necessário paixão para uma revolução
acontecer, mas ninguém fala do medo ou da paranoia.
Dos surtos… Da vontade de desistir. Será por isso que os
Araguaias lutam? Pela infelicidade?
Matriz. Você tem certeza disso?
Matriz dispensa a mensagem que aparece no display
e segue. Carrega uma marreta Afonso Pena abaixo, na principal
hora de hibernação; Belo Horizonte no seu momento
mais vazio. O céu segue púrpura, como é o tempo todo, embora
desde a última atualização o holograma tenha apresentado
problemas, dando a ver, durante um ou outro delírio,
o azul que se encontra acima. Aquele citado nos livros, talvez,
ou nas lendas que entretêm os protótipos enquanto são
atualizados para se tornarem seres funcionais em sociedade.
Um prédio anuncia o novo chip de memória RAM da Amazon;
outro, os novíssimos sensores gustativos da Coca-Cola.
Mais ao fundo, a Nestlé anuncia suplemento alimentar cuja
novidade é variar, aleatoriamente, entre aspectos de cores
do RGB, além de aumentar a atenção e o aproveitamento
de energia.
Uma vez protótipo, conseguia se lembrar de sonhar
com essas coisas, caras demais para que pudesse acessar. Sua
própria existência era um erro de cálculo de um progenitor
desesperado; antes de transformá-lo em trojan, Matriz
tivera acesso às suas memórias. Um homem desesperado
no hospital, sem dinheiro para pagar os sistemas absurdos
de atlanita, o minério inoxidável do futuro, descoberto nas
profundezas do oceano Atlântico, implorando por uma alternativa,
qualquer uma; o médico cedendo e concordando
em implantar no protótipo o último sistema de ferro que
sobrara na Belo Horizonte inteira. E então o aviso: o protótipo
ficará ultrapassado em poucos ciclos e, se não atualizado,
poderá se corromper. Ou coisa pior.
Matriz, é muito arriscado. E se eles te pegarem?
Você já pensou na quantidade de informação
que vão extrair de ti antes de colocarem o cérebro
na usina?
Em algum lugar, provavelmente nos bancos de dados
do Google, a dívida que Matriz herdou ao nascer permanece
em aberto, sentada confortavelmente na pilha de seus próprios
juros. E ali morrerá, não sendo a primeira, mas provavelmente
uma das últimas do Aglomerado da Serra a fazê-
-lo; já faz ciclos e ciclos que a atualização geral automática
atrofiou todos os úteros, sendo necessário comprar novos,
especialmente desenvolvidos pela Apple, no desejo de se gerar
um protótipo.
Mozilla reclamava disso sempre que possível; estar
nos Araguaias era chance que via de criar um mundo onde
as pessoas pudessem nascer e viver. Mas Matriz, agora arrastando
a marreta pela Afonso Pena, as faíscas dançando no
concreto porque lhe falta bons músculos para fazer o trabalho,
percebe que a luta certa é por algo diferente. Viveram
Mozilla, Ubuntu, Gimp, Gephi, Audacity… Viveram até que
viesse a obsolescência programada e, sem o dinheiro necessário
para atualizarem-se, terminassem se corrompendo
— trojans tal como esses que Matriz vê enquanto caminha,
abatidos no chão da Praça Sete, apenas esperando que os antivírus
cheguem e terminem sua varredura.
E então, como se o castigo de um sistema de saúde
caro e absurdo não fosse suficiente, continuaram escravizados
à existência — sinapses neurais reaproveitadas na usina
de energia que mantém funcionando as pessoas, tantas
pessoas, cumprindo funções lineares em um grande prompt
de comando, o maldito céu roxo, as ADs coloridas, os hologramas
das árvores, as cabines de sites e os antivírus, cujos
scanners varrem o corpo de Matriz por inteiro sem que o reconhecimento
aconteça. Como é fácil atravessar a segurança
de uma sociedade que só olha para o futuro — se o passado
não existe, que diferença faz nele prestar qualquer atenção?
Matriz. Você está colocando pelo menos quatro
ciclos de resistência dos Araguaias em risco
por conta própria. Qual é o seu problema? Responda!
No centro da Praça Sete e de seu moderníssimo colar
de proteção, está o Obelisco — a placa-mãe. Quando protótipo,
Matriz se lembra de achá-lo belo: feito com a primeira
rocha de Atlanita extraída do oceano, decorado com circuitos
lilases, exibindo orgulhosamente as cicatrizes daqueles
que lhe deram a vida. Google, Coca-Cola, Apple, Amazon,
Samsumg, McDonald’s… Mais do que a sua utilidade prática,
era o símbolo de tudo o que todo protótipo belorizontino
devia almejar.
Você ainda pode voltar atrás. Por favor,
repense só um pouco. Nós podemos planejar isso
melhor...
A marreta pesa nos braços e todas as articulações
rangem quando Matriz a levanta do chão. O mundo, escurecido
pela dor, resume-se num instante pelo sangue laranja
vomitado no asfalto e pelas notificações que se acumulam
a ponto de uma sobrecarga. O corpo ferve — é como se o
ferro estivesse derretendo sob a pele que se enche de bolhas
—, mas está tudo bem, tudo tão bem quanto nunca esteve,
porque o movimento que gira a marreta no ar e atinge o
obelisco em cheio é a euforia que adocica a língua, é o som
que invade os ouvidos, é o cheiro que de tão forte nauseia, é
a tontura, a dor de cabeça, o prazer, o orgasmo. É tudo.
Só aí as sirenes tocam. Siga com o plano agora, responde
Matriz para as mensagens que continuam a se acumular
no display. E então, segurando a marreta para cima
com os braços trêmulos, deixa-a cair na própria cabeça com
a certeza de que a vida pode ser um peso eternamente forçado
a todos os habitantes de uma Belo Horizonte perfeita,
mas que a morte terá sido uma escolha unicamente sua — a
única escolha que importa.
• • •
04h30 - Dia 239 do 22º ciclo
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