Prólogo
Epílogo
Conto
— Droga! – gritou, com os pulmões já exaustos da
constante tosse que o afligia desde a última sexta-feira. – Não
dá pra ter sossego?
O notebook foi jogado na pilha de travesseiros, emitindo
um clique ao apagar a luzinha azul perdida entre as
entradas para diversos cabos diferentes.
Puxando o carregador do celular, o garoto desconectou
o aparelho do computador e vestiu depressa os chinelos,
antes que pisasse no chão frio. O roupão pendurado ao
lado da cama serviu bem como uma capa para protegê-lo do
vento vindo do corredor. Abrir a porta para o resto do prédio
costumava ser aquele arrependimento imediato: paredes
extensas, vizinhos silenciosos e a natureza em constante batalha
atravessando a janela quebrada do jardim de inverno.
Com as pontas de seus dedos já inchadas com o frio, a
simples tarefa de trancar a quitinete foi um desafio. Girando
as chaves duas vezes, assim garantido que a noite não lhe
pregaria nenhuma armadilha, seguiu para o andar de cima,
depois para mais um, e então encontrou o lance de escadas
da saída de emergência e, ao lado dele, os pequenos degraus
garantindo acesso à porta da casa de máquinas.
Bastaram dois solavancos para que as trancas internas
se desfizessem em ferrugem e a poeira – ilustre habitante
dos cabos e CPUs sem manutenção – lhe afagasse os cabelos,
dando boas-vindas. A placa na porta encostada despencou,
o alerta de “ENTRADA RESTRITA” tiniu nos ouvidos do
jovem, arrebatando-o com um arrepio que percorreu a espinha.
Os modems estavam alojados em um compartimento
fixo à parede mofada, de acesso perigoso a quem tinha
qualquer problema respiratório. Ansioso por reiniciar aquela
parafernália e enfim ter uma internet decente para baixar
seus jogos, o rapaz tirou os fios de alimentação e desligou o
modem conectado ao primeiro andar, religando-o. A espera
pelo retorno da sequência de luzes do aparelho pareceu uma
fração de eternidade.
— Ah – suspirou, tocando no celular para ativar a
lanterna integrada. – A gente paga condomínio pra quê?
Com o cabo amarelo entre os dedos, notou em sua
superfície mordidas pequeninas, feitas por presas de uma
praga mais antiga que o próprio edifício – ratos, grandes, do
tipo que precisam sofrer três ou quatro inspeções sanitárias
para caírem por terra. Enquanto estivessem correndo pelos
canos, pelo visto, o wi-fi demoraria a ter paz.
— Pronto. – Notando o reforço da frequência no
celular e as luzinhas acendendo uma por uma no modem,
amarrou melhor o roupão e virou a lanterna para baixo, cauteloso.
– Melhor voltar sem sangue de bicho no pé.
A auréola branca emitida de suas mãos para o piso
cinzento o guiou das prateleiras até a porta com a placa caída,
projetando a sombra das chaves que carregava entre os
dedos. Aproximando-se dos degraus, o aparelho vibrou, exibindo
uma notificação na tela.
TROCAR DE REDE. SINAL FRACO.
— Tá brincando com a minha cara – reclamou, e a
borracha dos chinelos soltou um ruído agudo com a meia-
-volta até o compartimento.
Inspirando fundo, prestes a preparar o discurso que
faria para o síndico na segunda-feira, ergueu a lanterna para
pegar o rato. Estava certo de que haveria um encontro com
o maldito, e o faria pagar por cada centavo gasto com a in-
ternet ineficaz.
O clarão afastou a cortina de pó e exibiu presas grudadas
aos cabos do modem, mas não era uma ratazana que
os apertava com duas mãos esquálidas e de unhas compridas
feita de ferro velho. Encarando-o sem mover as pupilas, o
par de olhos submersos em neon-azulado pediu por silêncio.
A tosse tomou conta do peito do garoto e ele cuspiu o
catarro para fora. Deixando que o celular caísse, correu para
a saída, sem conseguir desengasgar o socorro preso na garganta.
Antes de alcançar a porta, sentiu a presença atrás de si.
Seria mais uma madrugada sem downloads concluídos.
Atônito, correu pela escadaria silenciosa do prédio
chegando em frente à porta do síndico. Socou a madeira até
as mãos doerem, mas não teve sucesso em conseguir resposta.
Tentou os vizinhos do térreo, nada.
O garoto segurou a tosse, diminuta em meio aos
trovões do lado de fora, e pensou na solução mais óbvia –
sair do prédio, se esconder em algum lugar debaixo daquela
tempestade até que aquilo… Aquele ser desistisse de pegá-lo.
Não podia se juntar ao quadro de vítimas que se acumulava
na cidade, mas das quais ninguém falava a respeito. Demorariam
a notar seu desaparecimento, nunca foi alguém
que acumulou muitos seguidores nas redes sociais, porém, o
pouco que tinha gostaria de preservar, e não seria um vampiro
o responsável por destruir o mínimo de relações que
possuía.
Ele apertou o botão para destravar a porta do prédio,
mas nada funcionou. Empurrou-a com o próprio corpo,
tentando ver se de algum modo ela abria. Nenhum efeito.
Passos ficavam cada vez mais próximos, o barulho dos dentes
afiados do vampiro rangendo pela escadaria, elétricos,
deliciando-se com todo o sinal de internet sugado do condomínio.
Se aquela boca repousasse em seu pescoço perderia
centenas de seguidores em um minuto, depois, deixaria de
existir no mundo virtual. Precisava escapar, nem que de fato
levasse a frente o único plano que passava pela cabeça.
Olhando o reflexo no vidro espelhado e encharcado
do hall de entrada, viu o vampiro em sua totalidade. O corpo
magro em uma malha de pele humana e placas de metal.
Os caninos prateados para fora dos lábios escuros, reluzindo
com os resquícios de sinal de Wi-Fi presos à arcada dentária.
A cabeleira platinada e arrepiada aparecia quando os relâmpagos
marcavam presença, em contraste com a tez azulada,
adquirida ao longo dos anos em que se tornara uma praga
do mundo real – insaciável em sugar tudo que fosse possível
do virtual.
Sem pestanejar, o garoto tomou impulso e se jogou
sobre a porta envidraçada do prédio, rolando para fora com
vidro, ferro e toda estrutura que havia por perto. Os cacos
penetraram o roupão azul, fincando-se à sua carne. Os ferimentos
eram quase indolores em meio ao desespero, mas
o sangue ficava evidente conforme a luz púrpura de emergência
era acionada na rua. Levantando-se do chão, viu o
vampiro pulando do degrau, voando na sua direção.
Carros passaram ao longo daquela corrida desenfreada
pela própria vida. Ninguém tinha coragem de descer para
ajudá-lo. Ouvia os gritos das blogueiras que fotografavam a
chuva incessante, o pânico dos comerciantes que fechavam
suas portas enquanto o vampiro passava como um furacão
diante deles. A simples presença da criatura já parecia tirar
cada centavo investido pelas empresas em divulgação, alcance
e marketing.
Quando o rapaz virou uma esquina, deixando um
rastro de sangue para trás, percebeu que o vampiro não estava
nas proximidades. Foi quando pôde, pela primeira vez,
encostar-se à parede e retomar a respiração. Abriu um pouco
o roupão, já ensopado de chuva, e verificou os ferimentos
abertos na pele. O vidro havia transformado seu corpo em
um mosaico rubro. Lágrimas percorreram o rosto, mas o
coração batia aliviado de ainda estar com os seguidores intactos.
Com o celular molhado, não foi possível acionar nenhum
serviço de emergência. Precisou se arrastar pelo beco,
até achar um antigo telefone holográfico projetado na parede.
A imagem digital do aparelho se desfigurava conforme
as gotas vinham do céu. Ele discou os números na polícia,
os dedos ensanguentados sobre as teclas digitais. Cada zero
pressionado acelerava seus batimentos e mantinha a reputação
intacta nas redes sociais. Enquanto aguardava, olhou
para a pulseira subcutânea no pulso direito, havia recebido
uma notificação.
Na microtela imunda sob a sangueira da pele, viu o
FOTOGRAM o alertando: “você ganhou um novo seguidor”.
— Qual a emergência? – disse a moça do outro lado
da linha.
Farejando o novo dígito que entrava na lista de seguidores
do garoto, o vampiro surgiu, puxando-o para perto
de si. A projeção telefônica ficou muda.
O bafo de fibra óptica e metadados invadiu a respiração
do rapaz, até desaparecer quando a boca escura aproximou-
se de seu pescoço, sugando cada seguidor do FOTOGRAM.
Em seguida, os amigos do FACELOG e por fim os
posts de maior sucesso e alcance. Quando a vítima já estava
apática e pálida, ele largou o corpo debaixo da chuva, desaparecendo
como um holograma que não funcionava mais.
Ao ver que não havia mais sinal do vampiro, uma
garota saiu de dentro de seu carro e correu até o beco, encontrando
o corpo desfalecido, fitando-o sem choque algum.
Ela ergueu o celular, escaneando o jovem. Ao encontrar seu
usuário online, não conteve o grito de desespero. Tamanho
foi o alarde que até os policiais tiveram coragem de chegar
para verificar o local. Desesperada, ela voltou para seu automóvel
e chorou por cada dezena de seguidor que ainda tinha
nas redes sociais, uma vez que, o menino, pobrezinho, estava
completamente zerado.
Em uma prece, ela torceu para que nunca encontrasse
um vampiro. Não queria aquele mesmo destino. Então,
com um chacoalhar do celular, ligou a função de stories do
FOTOGRAM, e registrou em uma série de vídeos curtos
toda a bagunça que havia sido aquela noite de tempestade.