O artista de rua

Drama
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
O Riso

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O artista de rua
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O sol mais uma vez alcançava o céu, junto dele o iluminar de um novo dia. Seus raios ultravioletas perfuravam a atmosfera terrestre e para as pessoas comuns, era mais um dia de trabalho, mais uma longa rotina de enfrentar o terrível trânsito, comer comidas prontas, trabalhar, se exaustar mentalmente e fisicamente, voltar para casa e dormir. Um ciclo vicioso que pega qualquer um dentro do sistema imposto pelo próprio ser humano. O sistema no qual muitos lutam para não fazer parte, mas dependem do que o sistema propõe: dinheiro.

Dinheiro é o novo Deus da sociedade moderna, homens traem seus ideais por esta benção. Outros preferem ficar calados para ganhar um pouco a mais. O humano prefere trocar o caráter por uma nota de cem reais ou cem dólares. O dinheiro é capaz de mudar completamente o ser humano, fazendo com que ele até mesmo mate, sem o menor dos receios. 

O sol, em sua imensidão mal sabe que ilumina um mundo totalmente imundo. Se eu fosse o sol, nunca mais voltaria novamente a me pôr neste mundo. 

A texto acima estava escrito à mão em um pedaço de papel amassado ao lado do meio fio, na praça da Sé na capital do Estado de São Paulo. O dono daquele pedaço de papel era um senhor já de meia idade que vestia uma touca preta com inúmeros furos. Sua camiseta preta da banda icônica de heavy metal Iron Maiden, estava manchada com respingos de tinta. Sua calça jeans já rasgada nos joelhos pedia por socorro para ser trocada e seus pés eram protegidos por um all star convencional totalmente sem sola. 

O homem estava ainda dormindo em seu cobertor improvisado feito de papelão. Sua cabeça estava apoiada em sua mochila. 

Com um barulho ensurdecedor das manhãs turbulentas da Sé, o homem acorda assustado. Sentiu um contato nada amigável do sapato de um transeunte que esbarrou em seu corpo. 

Aos poucos ele foi se levantando, vendo a aglomeração de pessoas que não parecia ter fim, ele respirou fundo. Como de costume, tirou uma foto velha do bolso, era uma de uma menina de aparente sete anos. Ela tinha um vestido colorido e era segurada por um homem, que lembrava o próprio homem, porém, bem mais apresentável. Ele lascou um beijo na velha foto e imediatamente a guardou novamente, levantou-se e olhou para os lados, precisava decidir onde sua vida naquela manhã começaria. 

Notou que havia um espaço calmo e tranquilo em meio àquela selva de pessoas apressadas do outro lado da rua. Um banco de madeira totalmente vazio e sem propósito ali na praça. 

Correu o quanto antes. O sinal estava vermelho, porém, uma SUV preta com cabine estendida passou e quase o atropelou. Os carros começavam a buzinar, as pessoas das ruas estavam assustadas pelo som que ecoava na avenida. Todos os olhos enxergavam o homem como culpado e a pessoa que dirigia era totalmente impune. 

Ele esboçou um sorriso e elevou sua mochila até as costas. Aquilo era totalmente rotineiro para ele. Minutos depois, chegou até o paraíso que ele tinha visto. O banco da praça. 

Sentou-se em seu precioso trono, colocou a mochila do lado e abriu cuidadosamente o zíper que já estava gasto e poderia travar a qualquer instante. Retirou de dentro da mochila dois cadernos. Apoiou um deles mais desgastado em cima da mochila, o outro ele apoiou em seu colo e começou a folhear.

Havia rascunhos de textos por ali. Esboços de personagens fantasiosos e diferentes da nossa realidade. Havia trechos de músicas até mesmo com cifras e partituras improvisadas na caneta. 

O homem parecia ser um artista nato.  Enxergou na esquina da avenida, uma criança com sua mãe apressada. A pequena levava consigo um sapo de pelúcia, sua mãe apenas a arrastava pela movimentação. Com rápidos traços e uma percepção quase perfeita da criança, ele desenhou em minutos a expressão entristecida da criança que era puxada pela mãe, quando na verdade, queria conhecer mais do mundo em questão. 

O desenho não lhe agradou tanto e resolveu arrancar com força o pedaço de papel, amassou-o e deixou ao lado da mochila. Ventava bastante por ali, era uma época da famosa frente fria que vinha do sul do país. 

Ele tentou novamente procurar algo para esboçar. Notou uma mulher grávida que estava passeando por ali. Não era esse perfil que buscava. Um homem engravatado com uma maleta também lhe chamou a atenção, mas também não tinha o perfil que buscava. Viu então um cachorro parado e cheirando o lixo da rua. Começou a desenhá-lo. 

Enquanto ficava distraído com o desenho, nem percebeu que o papel amassado havia sido levado pelo vento e acabou caindo ao chão daquela praça. 

Um homem, usando calça, camisa e tênis comuns, pegou o pedaço de papel do chão e jogou no homem sentado, rispidamente.

- Além de não fazer nada, ainda suja o planeta! 

O homem saiu dizendo barbáries sobre ele que apenas desenha seu cachorro, mas que agora havia perdido um pouco da vontade de continuar. 

As pessoas que perambulavam pela área mais uma vez que presenciaram aquilo, tiveram como criminoso o mendigo que supostamente estava sujando o planeta, enquanto eles mesmos jogavam restos de cigarro, papéis de bala, pacotes plásticos e até mesmo garrafinhas pet de água na rua. 

O homem seguiu pleno em sua arte e conseguiu caracterizar o pequeno cachorro morador de rua como ele com exatidão. O mendigo era um artista nato, mas totalmente desconhecida pelos holofotes da sociedade, inclusive, ele não fazia questão de mostrar seu trabalho. 

Agora já era próximo do horário de almoço, o mar de pessoas inundava as calçadas, os cardumes exagerados de carros lotavam as ruas e avenidas. O mundo moderno e seu excesso de quantidade era um problema, mas não para o mendigo, que conseguia passar tranquilamente por entre os carros e também por entre as pessoas, já que a maioria delas o evitava por completo. 

Parando em frente a um restaurante e sentindo que o cheiro era realmente maravilhoso vindo de lá, decidiu entrar, bateu a mão no bolso esquerdo de sua calça e sentiu que havia algumas cédulas surradas, o almoço estaria garantido. 

Imediatamente dois garçons vieram ao seu encontro.

- Não temos nada para o senhor aqui! Por favor se retire! – Disse um deles, um jovem de não muito mais quinze anos.

- Volte mais tarde, talvez tenhamos algum resto! – Completou o outro. – Aí a gente monta a marmita para o senhor.

- Mas eu tenho dinheiro para pagar. – Retrucou o mendigo, retirando do bolso seus incríveis vinte reais. 

- Mas mesmo assim o senhor não pode comer aqui! Agora por favor, vá lá para fora. – O garçom se aproximou e o agarrou pelo braço com certa força. 

- Tudo bem. – O homem abaixou a cabeça e se virou. Era possível notar que as pessoas que almoçavam ali torceram o nariz para ele. Neste momento, o herói do recinto era o garçom de quinze anos e o vilão o mendigo que gostaria de comer. 

Sem rumo e com fome, percorreu os quarteirões intermináveis da capital do Estado. Trombando com pessoas, ouvindo blasfêmias sobre sua pessoa e sendo julgados por todos que notavam a sua presença. Ele seguiu forte, até encontrar o seu almoço: uma barraca de salgados.

A singela barraquinha feita em um trailer totalmente artesanal pelo proprietário, era bonita e atendia à todos. O homem se aproximou com seus vinte reais em mãos para a atendente.

- Quero dois salgados e alguma coisa para beber. – Disse ele com sua voz rouca. 

- Se você está procurando pinga, aqui nós não vendemos! – Gritou a mulher que cuidava do caixa. 

- Não, não, quero apenas uma coisa para beber. O que vocês tiverem. – O homem foi gentil e tentou mais uma vez.

A mulher não gostou do que o homem disse, mas não recusou os vinte reais que ele tinha, pegou dois salgados qualquer que havia no expositor e pegou uma garrafinha de Dolly Cola que estava por ali e entregou para o rapaz. 

No troco, a mulher entregou uma nota de cinco reais. 

- Pronto, agora pode ir. – Disse ela.

- Obrigado. – Ele pegou os salgados, o refrigerante e guardou seu troco no mesmo bolso de sua calça surrada. Não havia mesa ou bancos disponíveis para se sentar ali por perto, então ele resolveu ir andando e comendo sua única refeição até agora. 

Antes que pudesse sair de perto da barraca, ouviu mais um comentário preconceituoso sobre seu respeito, o condenando por ser um usuário de drogas e que agora sente fome, mas o dinheiro é para consumo dessas substâncias químicas prejudiciais. Mais uma vez, o homem segue. 

Enfim, o início do meio da tarde se aproxima. As ruas se tornam menos movimentadas, o silêncio aparece com mais frequência e até mesmo o próprio ar parece mais respirável. Ele caminha até onde ele achar que deve ir. Seu destino é incerto, sua vida uma caixinha de surpresas.

Olhou com o canto dos olhos um ponto de ônibus. Havia cobertura para se proteger do escaldante sol e poltronas azuis feitas de material vagabundo que as empresas governamentais pagam um absurdo pela qualidade inexistente desses assentos. 

Acomodou-se na poltrona pública e lá mais uma vez retirou seus bens mais preciosos: seus cadernos. Desta vez, pegou o segundo caderno. Este tinha letras, versos de poemas e até mesmo contas matemáticas de algo que não mais importava neste instante. Pelos meios das folhas, haviam outras soltas que provavelmente eram cartas. Até mesmo tinham envelopes endereçados para uma pessoa chamada Belle, mas as cartas nunca foram enviadas pelo visto. Recordações. 

Folheou até achar uma página toda com gravuras e letras. Parecia como um gráfico, anotou ali alguns números, olhou para o sol e ficou a observar quantas pessoas passavam por ali. O homem era desempregado, tinha bastante tempo livre e porque não otimizar este tempo com algo? Ele contava qual era o fluxo de pessoas de cada ponto de ônibus da cidade e marcava para si mesmo.

Durante duas horas ficou ali. Neste período ele foi capaz de perceber que a cada cinco minutos ônibus passavam por ali. A média de pessoas que subiam no veículo de transporte público era sempre superior ao número de pessoas que desciam naquele ponto, ou seja, o ônibus sempre continuava lotado e pior, ficava ainda mais. A maior parte das pessoas vestia-se de um jeito comum. Nada de ternos, gravatas, maletas ou sapatos caros. Camiseta, calça jeans e tênis. Crianças não eram tão comuns também e grávidas menos ainda. Idosos quase que raramente aparecia um para pegar ônibus. Sua pesquisa naquela tarde fora finalmente terminada. O sino da catedral da Sé anunciava o horário que todo trabalhador saía. Era a famosa hora do rush, 18h. 

O fluxo de pessoas triplicava, pessoas apressadas para irem embora, voltar para suas residências ou mesmo conseguir o mais rápido possível saírem daquele inferno. O homem se tornava invisível naquele momento, era como se as pessoas nem se importassem. Se ele estivesse parado na frente de alguém, provavelmente seria um alvo para as pessoas trombarem nele, por sorte o homem já conhecia aquela sina. 

Se camuflou durante a tal hora. Era fácil, bastava usar roupas sujas e rasgadas que ninguém o enxergava. Agradecia por estar naquela situação, naquele momento. Ninguém o incomodava, ninguém o julgava, apenas passavam por ele. 

A noite finalmente chegou. Junto dela os ventos gélidos que atingiam os prédios enormes da cidade. O homem seguia pelas ruas e seu estômago começou a anunciar que estava com fome.

Pela noite, era mais difícil conseguir alimento. Os restaurantes mais chiques barravam a entrada dele e qualquer bar ou boteco não era um lugar muito bem frequentado. Apesar da má aparência e viver nas ruas, seu medo de ser espancado, assaltado e até mesmo judiado era constante. O terror de viver nas ruas, não sumia em nenhum momento quando o céu ficava escuro. 

Ele era guiado pelos mais variadores odores que passeavam pela noite surdina das ruas do Centro. Pela avenida principal, a famosa Avenida Paulista, os mais variados ambientes existiam, tentou achar algo mais simples nas travessas da famosa avenida, mas nada que ele pudesse adentrar. 

Na frente de um condomínio de alto escalão a sua salvação: uma barraca de cachorro quente. O trailer bem pintado e chamativo tinha mesas e banquetas para seus clientes se sentarem e comerem. O homem foi se aproximando e a clientela, a maioria moradores do condomínio, já começavam a sentir receio. 

O homem tinha apenas seus cinco reais no bolso. Se aproximou da pessoa do caixa e perguntou com simpatia.

- O que eu posso comprar com cinco reais? 

- Nada! – Disse com rispidez o homem que cuidava do fluxo de dinheiro da barraca. 

- Nem mesmo um doce? Estou faminto. – Insistiu o mendigo.

- Nem mesmo um doce. – Ele falou com ar de deboche. 

O homem se virou, um pouco desanimado. Ele não era um mendigo analfabeto, estava visível que os preços dos doces e até mesmo de um salgado era menos do que tinha em dinheiro. Comprar uma discussão? Jamais passou isso pela sua cabeça. Apenas aceitou a negação e deu passos para se distanciar da barraca. 

- Ei! – Gritou uma moça que comia por ali. – Senhor! Senhor! 

O homem virou-se assustado.

- O que o senhor quer? Pode pegar. É por minha conta. 

- Não, não. – Ele negou com a cabeça. – Está tudo bem. Nem estou com tanta fome assim. 

- Você vai me fazer esta desfeita, senhor? – Ela apelou para o lado psicológico. – Vou ficar chateada se negar! E então? 

Ele parou e olhou para ela. Observou que ela era jovem, poderia ter a idade para ser sua filha. Notou no dedo anelar da mão esquerda uma linda aliança de casamento, pulseira de prata e aço estavam enfeitando seus braços e suas roupas não eram de uma grife conhecida, porém, estava elegante. 

- Tudo bem, eu aceito. – Deu um sorriso singelo para ela. Tentando evitar os dentes, pois lhe faltava alguns.

- Ótimo!  - A moça ficou feliz com a aceitação do mendigo. Ela se direcionou ao caixa e pediu o cachorro quente mais bem caprichado do cardápio. 

No tempo de espera do preparo da refeição, eles conversaram muito pouco. A jovem era quem mais fazia as perguntas para o morador de rua. Ela questionava como era no frio, como ele vivia pelas ruas, como era a madrugada, assaltos e coisas deste tipo. O homem sempre lhe dava respostas curtas, tentando evitar falar muito.

Em poucos minutos o lanche estava pronto, o cheiro era realmente incrível e o homem começou a se deliciar com seu alimento. 

- Tava faminto, hein? – Brincou a moça. – Bem, vou deixar o senhor a sós agora com sua comida e outro dia se o senhor quiser mais um pode vir aqui que eu estarei por aqui. Sempre pego cachorro quente aqui para mim e para meu filho.

- Obrigado. – Disse ele, mastigando. 

- Meu nome é Jullie. – Ela esticou o braço para um aperto de mãos para selar aquela amizade. 

- Meu nome é Noah. – Apertou as mãos dela com cuidado e ambos se olharam. Por um momento ele sentiu algo diferente, uma conexão. Ele já sabia quem era aquela moça.

- Até mais então, Noah. 

A moça foi embora e assim que ela partiu, os preconceitos novamente vieram para cima do velho morador de rua. O pessoal da barraca de lanches se incomodava com o forte odor que ele emanava e o expulsou o quanto antes ali, além da clientela que já estava incomodada com aquilo.

Rumou em busca do desconhecido, não tinha sequer um destino. Precisava apenas se acomodar em um banco da praça, do qual, vândalos, arruaceiros, bandidos e membros de gangues passassem bem longe dali. 

Em uma pequena praça achada por acaso entre os bairros da grande capital do Estado. Ele se sentou, retirou o caderno de dentro da mochila e em todo o percurso até ali, ele havia pensado em algo para escrever ou melhor, compor. 

A lua mais uma vez alcançava o céu, junto dela o iluminar de uma nova noite. Seus holofotes lunares perfuravam o céu escuro e as nuvens carregadas e para as pessoas comuns, era mais uma noite de descanso, o ciclo iria se repetir mais uma vez. Alguns jantando com suas famílias, outros se distanciando ainda mais, o trânsito deu uma leve melhorada, porém, o fluxo de pessoas se perdendo é ainda maior. Bares, Casas Noturnas, pessoas perigosas durante o fim do dia. O ciclo vicioso nunca parava, todos ainda rodeavam o dinheiro. 

Dinheiro é o novo Deus da sociedade moderna, o dinheiro faz com que os homens libertem quem realmente são. Soltam suas feras interiores, escondem seus demônios, libertam seus monstros e contratam os bichos-papões debaixo da cama. O dinheiro não traz felicidade, de fato, mas ele pode trazer hot dogs.

A lua, em sua imensidão mal sabia que estava ali iluminando um mendigo, que fora expulso de sua casa enquanto sua filha ainda era pequena. A mesma luz da lua fazia o reencontro de pai e filha. 

Se eu fosse a lua, continuava a iluminar apenas reencontros e começava a ensinar ao sol como se faz de verdade. 

- Noah R. Chevalier.

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