O quarto escuro

Drama
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
O Riso

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O quarto escuro
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Era um quarto escuro e sem janelas, mas dava para perceber a fresta de luz vinda por debaixo da única porta. João vivia ali. Garoto tímido, cheio de recalques e com uns tiques nervosos provocados pelos constantes momentos de solidão e ansiedade. Vez ou outra ouvia sua mãe chamar de longe “João, vem almoçar!” ou “Já fez o dever de casa?”, mas cada vez a voz se tornava mais e mais distante. 

As memórias iam e vinham durante os dias e meses que se passavam, sem que se desse conta. Saiu o inverno e entrou a primavera, mas não reparou no vento frio ou sequer nas flores que brotavam nos canteiros. Sua alergia indicava que algo mudara no ar, mas também podia ser por causa do cheiro da tinta do vizinho pintando a casa para o Natal. Natal, uma data especial para os que creem. Todos ficam bonzinhos ou expurgam os pecados de um ano inteiro em pacotinhos de presentes, cujo valor dependerá do grau da infração cometida. Foi quando ele recebeu uma visita. 

Clara era uma garota tímida como ele, só que com sardas ferruginosas e um cabelo ruivo que lhe conferia um ar angelical. Entretanto, ela era um pouco diferente das outras garotas. Alguma coisa em seu olhar era perturbadora, entretanto, aparentemente, só João notava. Numa manhã de sábado ela batera em sua porta perguntando se podia entrar. Aquilo pareceu estranho. Nunca ninguém o havia notado e, talvez por isso, não se deu ao luxo de recusar. Ela queria brincar, mas ao invés disso, conversaram por horas e descobriram que tinham muitas coisas em comum. O pai dela também tinha saído para comprar cigarros e jamais voltara. Coincidências de uma cidade grande. Muitos pais fizeram isso na época da recessão. Sua mãe, no entanto, passava uma grande parte do dia fora fazendo faxina e ele tinha tempo de sobra para pensar sobre seus vazios. Clara veio ocupar esse espaço, e foi bom.

Todos os dias João corria para casa a fim de encontrar a amiga. Não a via na escola e tampouco sabia onde morava. Ela simplesmente aparecia e deixava os dias mais calmos. Aquele turbilhão que o agitava por dentro, simplesmente desaparecia quando ela estava por perto. Ele mal falava, pois Clara tinha assunto pelos dois. No entanto, a pré-adolescência pode ser uma coisa meio obscura. O corpo vai mudando e algumas sensações inoportunas acontecem quando estamos distraídos. Clara sumiu, depois disso.

João hibernou por dias em seu quarto escuro, e qualquer barulho vindo de fora reascendia a esperança que se frustrava pouco depois. Ele certamente a havia ofendido.

Um mês havia se passado sem notícias dela, até que numa certa manhã, ao ir para a escola, sentiu um soco nas costas. Era um menino mais alto e mais velho que o tinha jogado no chão. João olhou em volta para ver se alguém o poderia socorrer, mas ninguém estava por perto. Nenhum adulto. 

- Anda, levanta seu bastardinho.

- Prefiro ficar aqui mesmo, já que pretende me bater.

João se encolheu no chão enquanto o menino lhe deferia chutes e golpes, sem lhe dar motivo para tal. Seu cabelo avermelhado lembrava alguém.

- Não sei o que você fez pra minha irmã, mas o recado tá dado.

O garoto foi embora e João resolveu se arrastar de volta para casa. Ainda bem que sua mãe já havia saído e não veria seu estado. Resolveu tomar um banho quente, ir para seu quarto escuro e se enfiar debaixo das cobertas. Ninguém notaria sua falta. No entanto, passadas algumas horas o som insistente de batidas na porta o fez levantar.

- Posso entrar?

Era ela. Seus olhos estavam marejados e o aperto que pressionou seu peito foi do tamanho da saudade que não sabia estar sentindo. Era bem grande, do tipo que lhe rouba o ar dos pulmões.

Clara estava mortificada pelo comportamento de seu irmão. No fundo, João ficara feliz em saber que alguém se preocupava com ela a ponto de tomar uma atitude, mesmo que ele não tenha feito nada conscientemente.

- Por que você sumiu? Fiquei preocupado!

- Não sabia como reagir ao que aconteceu com você. Eu também senti coisas. Coisas que uma menina não deveria sentir.

- Entendo...

João não tinha comido nada durante todo o dia. Alimentara-se de Clara, que foi embora ao final da tarde, pouco antes de sua mãe retornar. 

A mãe de João era uma mulher muito ocupada, cheia de preocupações e tarefas para fazer e ele não iria incomodá-la com o acontecido. Ele já se sentia bem melhor. A surra tinha trazido Clara de volta, e isso era a cura que precisava.

Acordou bem disposto no dia seguinte. Os hematomas eram quase imperceptíveis sob a camisa. Algo em seu interior dizia que seu dia seria maravilhoso e até preparou um lanche a mais. Clara disse que viria na hora do almoço. Ele deixaria a porta de seu quarto escuro aberta.

Voltava da escola animado, quando viu um homem aguardando na soleira. 

- Boa tarde garoto. Você é o João?

- Quem quer saber?

O homem o olhou por alguns minutos, avaliando aquele pedaço de gente que o encarava desconfiado e sorriu.

- Sou um amigo da sua mãe. Ela está?

- Minha mãe não tem amigos. Ela é muito ocupada.

- Mas você gostaria que ela tivesse, não é mesmo?

O homem era hábil com as palavras e parecia simpático, mas João não o convidou a entrar. Se ele era mesmo um amigo de sua mãe, deveria saber que ela não se encontraria em casa àquelas horas.

- Não tenha medo de mim. Talvez não seja o momento adequado, mas queria te conhecer. Sua mãe fala muito bem de você.

- Fala é?

- Sim, fala. 

Sentados na escadinha da entrada, João e o homem ficaram conversando por horas e até contaram piadas. O dia só seria melhor se Clara também tivesse vindo.

- Quero que saiba que estarei sempre por perto, viu? Caso precise conversar sobre algo que ache importante - papo de homem -, não se acanhe.

João tinha um sorriso impresso nos lábios quando viu o homem ir embora. A casa estava silenciosa e vazia como sempre, mas seu coração estava cheio.

Aquela foi a primeira primavera que João percebera o cheiro das flores. Sua mãe mal teve tempo de notar sua mudança, exceto por um comentário perdido: “Você está crescendo rápido. Logo teremos que comprar roupas novas e nos livrar dessas que estão muito apertadas”. 

Ia completar quatorze anos em alguns meses, mas, provavelmente, não teria bolo. As coisas andavam muito difíceis. Sempre que levantava no meio da noite, via sua mãe na mesa da cozinha em volta de contas e mais contas e uma xícara de café. Numa dessas vezes ele a ouviu chorando e em outra, com uma garrafa de vodka pela metade. Ela parecia bem triste, e ele achava que o amigo dela não devia estar fazendo um bom trabalho. “Amigos deveriam servir para essas coisas; para deixar os dias menos pesados e nos lembrar de como sorrir quando a vida nos fez esquecer”. Conversaria a respeito com ele, assim que tivesse uma oportunidade.

Os dias estavam mais quentes, sinal que o fim do ano estava chegando. Mal via sua mãe, que pegara também alguns serviços durante os finais de semana. Não estranhou quando uma senhora gritou seu nome da varanda, dizendo que veio checar se estava tudo bem. Ela parecia muito velha, Devia ter uns cinquenta anos, pelos seus cálculos. Nunca conhecera sua avó. A mãe lhe contara que engravidara muito cedo e foi posta para fora de casa. Perderam contato. A mágoa faz dessas coisas com as pessoas que não sabem liberar perdão. Leu isso em algum lugar. Talvez em um livro da escola. O fato é que a senhora vinha dia sim, dia não, e sempre trazia uma coisa gostosa para ele comer. Quando Clara resolvia aparecer, a senhora dividia o lanche e contava histórias até o cair da tarde. Clara ia embora e ele entrava indo direto para o quarto. Quase nunca via sua mãe chegar e já estava se acostumando com isso. Tinha dias que nem se dava conta que tinha mãe. Seus espaços estavam sendo preenchidos por outras pessoas. 

O verão chegou implacável. Dias quentes demais para uma casa pequena e um quarto sem janelas. As férias exigem muita criatividade para quem não tem dinheiro, mas João não estava muito preocupado com isso. Sua mãe havia recomendado que não saísse de casa e que procurasse algo para fazer. Clara vivia dizendo que ele tinha muita imaginação. Entretanto, foi ela quem o surpreendeu ao trazer seu irmão. O ruivo que tatuara hematomas em suas costelas.

- Tem algum problema João?

- Desde que ele não me bata... Tudo bem.

- Desde que você fique longe da minha irmã...

Os olhares trocados não foram nada amistosos, mas, por Clara, ele faria o esforço. Ainda mais porque seu amigo também viria e a vovozinha faria o lanche para eles. Parecia que o dia seria bom e teriam uma trégua, mas não foi isso que aconteceu.

Estavam jogando bola no quintal dos fundos e a vovozinha tinha ido preparar uma jarra de limonada, quando uma moça entrou correndo pelo portão lateral e trombou com a senhora. Havia sangue no chão e João morria de medo de sangue. Os braços da moça estavam cortados e alguns cacos de vidro ficaram presos em suas coxas e antebraços. Algo feio de se ver, ainda mais porque ela estava grávida. 

Estavam preocupados com o estado da moça que só chorava, sem dizer palavra que fizesse algum sentido. A senhorinha a acolheu com carinho e a levou para dentro. João ficou com medo de que sua mãe chegasse e tivesse um chilique com toda a confusão, ainda mais pelo sangue que sujou todo o caminho até o banheiro. O amigo se ofereceu para levá-la até o hospital, mas a senhorinha disse que os cortes eram superficiais, nada com o que se preocupar, exceto pelo estado emocional da moça que parecia bem abalada. A barriga não estava muito grande, mas era visível que a idade era pouca para uma responsabilidade daquele tamanho. Ela tinha uma mochila cor de rosa, do tipo que as garotas usam na escola, mas não haviam livros dentro, apenas umas mudas de roupa e documentos. Nada de dinheiro. 

João não sabia o que fazer, apenas olhava para a idosa que a abraçava com carinho, como se ninasse uma criança pequena. Clara foi arrastada para casa pelo irmão. Previsível. A essas alturas, João já chamava o amigo de sua mãe de tio, e foi ele quem tomou conta da situação. Parecia mesmo um homem de bem, daqueles que chega e resolve. Assim que ela se acalmou, o tio e a vovozinha pegaram a moça e a levaram para o hospital, mesmo sob protestos. João no fundo se sentiu aliviado, apesar de ter ficado com a bagunça para limpar. 

Quando sua mãe chegou, já estava tudo em ordem, mas mesmo que não estivesse, seria difícil que o cansaço a deixasse reparar. Jogou os sapatos em um canto, largou a bolsa sobre a mesa da cozinha, fez um carinho em sua cabeça e foi dormir com a garrafa de vodka. Coisa triste de se ver. Os horários dela não estavam coincidindo com os do tio. Talvez, por isso, ela estivesse tão triste. 

A mãe de João aprendera a ser durona. Uma mulher com culhões, como ela mesma dizia. Não aceitava caridade. Aprendera do jeito mais difícil a ter a tal da dignidade. Às vezes era difícil manter a cabeça erguida com tantas contas a pagar, mas ela sustentava um sorriso ao sair todos os dias para trabalhar. À noite, ele a ouvia chorar, de seu quarto escuro e sem janelas. Seu coração adolescente ficava tão apertado, que de vez em quando era difícil respirar. Não sabia como ajudar. Não conversavam muito. Evitava trazer problemas porque ela já tinha muitos com que lidar, mas a vida os estava afastando e ela parecia cada vez mais sozinha. O riso tinha sumido daquele rosto bonito há muito tempo. A cidade grande engoliu ele, assim como seus sonhos.

As fotos não negavam. Ela era mesmo bonita. Tinha quinze anos quando engravidou. Contava que era de família religiosa e cheia de preconceitos. Nada de shorts, nada de biquíni, nada de maquiagem. Era filha única, portanto, deveria ser professora e o que mais eles tivessem traçado para ela ser. 

Lembrava-se de sua mãe cantando... Tinha uma voz maravilhosa. Nos cultos de domingo a chamavam para dar uma palhinha, mas ela dizia que não gostava. João achava que seus avós viram futuro nisso, que talvez ela devesse ser uma cantora gospel. “Cantar pra Deus, pode aumentar pontos no céu. Por que não mamãe?” “Porque não se chega a Deus por coação”. – dizia ela. 

João achava que alguém assim, tão oprimido, devia se sentir igual a um sabonete molhado. “Quando a gente aperta, ele pula das mãos”. Não foi diferente com ela.

Foi um professor estagiário da escola dela que fez o “estrago”. Ele até passou a frequentar a igreja, conquistou seus pais e, em pouco tempo, créu!

As coisas no interior ainda eram feitas conforme o jeito de interior – Ou casa ou leva chumbo! -, e casaram na delegacia. Uma vergonha! Por pressão do diaconato, a jovem foi banida da comunidade eclesiástica, aquela que vende uma imagem de amor e compaixão pelo próximo. Ela também interrompeu os estudos. Era sempre apontada e referência constante para as coisas ruins. As amigas se afastaram e o ar ficou estagnado. O casamento, no entanto, durou mais tempo que a tolerância do povo do lugar.

Quando o jovem casal decidiu se mudar para a cidade grande, acharam que se diluiriam nos grandes problemas cosmopolitas, mas encontraram outros. Ninguém prepara ninguém para os sortilégios da vida, onde o caráter, a dignidade e a ética só são dispensados conforme o que você carrega no bolso. A pressão foi grande. O pai de João passou a fumar, um gasto a mais, e numa dessas saídas para comprar um novo maço, nunca mais voltou. João tinha uns cinco anos. 

Pensando bem, dada as circunstâncias, até que durou muito. Talvez porque tivessem vindo do interior. Talvez porque estavam casados no papel. Talvez até porque se amassem, mas é difícil viver sem referências e sem suporte. Os dias eram e ainda são assim.

João tirou a garrafa quase vazia de suas mãos. Ela não acordava; então a cobriu do jeito que estava. Deu um beijo em seu rosto, apagou a luz e voltou para o seu quarto escuro e sem janelas, mas não conseguiu dormir. As cenas do dia se repetiam em sua cabeça. Vozes, gritos, as badaladas do sino no campanário de uma igreja e muitos dedos apontados. Tinha um bebê chorando sem parar, provavelmente ele, não era muito claro. Mãos o puxavam de um lado para o outro e suas roupas estavam cada vez mais apertadas. Os dedos dos pés escapavam de seus sapatos e se viu correndo descalço por um enorme corredor branco, mas eles o estavam esperando no final – Clara, o tio, a vovozinha e a moça grávida. O nome dela era Estela.

Foi com um pulo que acordou com Estela sussurrando ao seu ouvido. “Como ela tinha entrado?”. Checava sempre as portas e janelas antes de dormir, coisa que antes era feita por sua mãe. Não mais. 

- Venha. Você precisa me ajudar. Está quase na hora.

- Hora de quê?

- O bebê vai nascer! Você quer ver? O tio já está lá fora esperando no carro e eu quero que você esteja lá.

João não tinha ideia do que ela estava falando. O que ele tinha a ver com aquilo? Provavelmente ainda estava sonhando, mas tudo parecia tão real. Dava até pra sentir o hálito de menta dela; daquelas gomas de mascar baratas que vendem nas bancas de jornal. 

- Vou chamar minha mãe. Com certeza ela vai te ajudar! – disse sentando-se.

- Não, ela não está em condições. Tem que ser você!

Pela primeira vez, em semanas, João achou que algo estava errado no paraíso. Até então, aquelas prometiam ser as melhores férias em sua vida. Estava indo bem na escola, tinha feito amigos, com o bônus de uma possível futura namorada, mas onde Estela se encaixava? Não se encaixava!

- Vou voltar a dormir e você vai desaparecer!

- Não vou, não! Você tem que vir comigo!

Por mais surreal que pudesse parecer, ele decidiu dar-lhe o benefício da dúvida. Colocou uma roupa qualquer, calçou seus tênis e a seguiu para a porta da sala que estava escancarada, mas escorregou numa poça de sangue.

- De quem é esse sangue? Eu limpei a casa! Isso não era para estar aqui!

- Olhe seus braços!

João olhou, e seus braços estavam cheios de cortes. O tio e o ruivo com cara de limão azedo surgiram na porta e o carregaram nos braços.

- E o bebê? Ela disse que o bebê vai nascer!

- Não se preocupe João, no hospital eles vão cuidar de você e dela também. – explicou o tio.

João foi colocado com cuidado no banco de trás de uma van branca, ao seu lado estavam a vovozinha e Clara.

- Quem chamou vocês?

- Você! – responderam a uma só voz.

Ele estava sonolento. As vozes pareciam como o barulhinho da água daquelas fontes de Feng Shui, irritantemente calmas. Falavam com ele como se estivesse desperto, como se estivesse entendendo, como se fosse uma criança.

- Calma. Vai ficar tudo bem.

Alguém fazia carinho em sua mão, enquanto outra pessoa enfaixava seus braços. Não se recordava de ter se ferido daquele jeito. Não tinha se cortado quando a jarra de limonada foi ao chão. “Foi com Estela!” 

Quando a van parou, pode perceber que o colocaram sobre uma maca. O trepidar das rodas sacudia sua cabeça, o que aumentava o desconforto. Um cinto prendia seu tórax e outro tracionava suas coxas. Apertados demais. As luzes fluorescentes cegavam seus olhos numa constância hipnotizante. “O que me deram...?”. 

Não havia sentido o pico em seu pescoço, mas certamente haviam feito isso, pois o local estava sensível. A droga devia ser bem forte, pois não conseguia mover um dedo. 

Após um longo corredor com paredes brancas, uma porta de correr se abriu e ele foi colocado numa cama confortável, onde Estela instalou um soro na área que não estava sob ataduras. João apagou.

Uma semana se passou depois daquele dia e João, enfim, estava melhor. Ninguém havia lhe contado sobre como a jarra de suco o havia cortado, sobre o nascimento do bebê da Estela, ou como sua mãe devia estar morrendo de preocupação. Tudo que ele não queria dar para ela. Contudo, para sua surpresa, o irmão de Clara foi visitá-lo.

- E aí cara, como é que você está se sentindo hoje?

- E-eu acho que tô legal. Mas, você sabe o que houve? Você estava na van, não estava? Tá tudo meio desfocado na minha cabeça...

- Olha quem veio te ver? Esse é o cara que vai te esclarecer as coisas.

O sorriso nos lábios e olhos de João não podia ser maior. Enfim, alguém que o entendia. Seu tio de consideração estava ali e ele se sentia seguro com ele.

- Tio, que bom te ver! Minha mãe veio com você?

- Vamos conversar sobre isso depois de seu café da manhã, ok?

Sim, um café da manhã era tudo do que precisava, pensou. Não sabia quanto tempo tinha ficado fora de combate, mas já era hora de pensar em voltar às aulas e seu aniversário estava perto. Imaginava que esse ano seria diferente. Não precisava mais ser furtivo, ou esconder suas misérias pessoais por trás da máscara da timidez. Dessa vez teria com quem e porque comemorar.

Após o café, Estela também veio visitá-lo, mas João percebeu que ela estava com a barriga murcha. “Deve ter sido parto normal pra ela já estar passeando assim. A vovó deve ter ficado tomando conta do bebê pra ela” – pensou.

- Tudo bem João? Vamos ver o tio?

- Cadê seu bebê? Foi menino ou menina?

Estela olhou apreensiva para “o tio” que vinha logo adiante, e se afastou.

- Venha João, tem uma sala de visitas logo mais a frente e lá a gente vai poder conversar com calma.

Enquanto seguia seu tio, João viu ao longe sua vovozinha por trás de um balcão e imaginou se ela trabalhava ali. Flashes de imagens estranhas apareciam em sua cabeça e ele ficou um pouco agitado. Até então, não tinha se dado conta de que o irmão de Clara vinha logo atrás, e ele estava mais alto e mais velho do que se lembrava.

- Pera. Cadê a Clara? Por que ela ainda não veio me visitar?

- Ela está a sua espera na sala da qual lhe falei.

- Ah...

Dois corredores brancos se seguiram, onde João pôde ver, por pequenos vidros nas portas, homens e mulheres com roupas brancas, algumas delas amarradas pelas mangas.

- Que lugar é esse? Isso aqui é um hospício?

O ruivo que o seguia o pegou pelas mangas para também o amarrar, mas o tio não permitiu. 

- Entre, João. – disse abrindo a porta de uma grande sala pintada de um azul clarinho. Uma música suave saía de uma caixa de som embutida no teto. Era um noturno de Bach. Havia também um janelão, por onde entrava a luz natural e de onde se via um lindo jardim com plantas e flores coloridas. 

- Que lugar bonito!

Um enorme sofá ficava de frente para duas confortáveis poltronas, de onde uma cabeleira ruiva se virou ao ouvi-lo falar.

- Clara? Não pode ser! Você envelheceu!

- Isso não foi muito gentil. – disse ela com um sorriso condescendente.

João foi orientado a deitar no sofá há muito conhecido. Aquela era sua vigésima internação.

Havia um espelho na sala e, quando João foi se sentar não foi seu reflexo que viu passar por ele, mas de um homem com cerca de quarenta anos. Aquilo o abalou. Seus olhos angustiados corriam do tio para Clara e dela para o ruivo, que passou de repente a vestir um uniforme com um crachá pendurado no pescoço.

Seu mundo virou de ponta a cabeça e teve que sentar no bendito sofá que estava ali certamente para amparar sua vertigem. O ruivo fungava em seu cangote, como se fosse um jaguar pronto para atacar, se fosse preciso.

Ninguém falava nada, apenas o observavam como a um rato de laboratório, esperando que, depois do choque, pudesse descobrir onde o queijo foi escondido. Seu cérebro parecia um queijo completamente derretido. O tio, certamente não era seu tio e Clara, aquela doce menina, na verdade era um mulherão com um crachá pendurado no pescoço. Aliás, todos tinham um, menos ele.

Perdeu a conta de quantas vezes levantou e foi até o espelho. Alisou sua barba por fazer e checou as ataduras novas, que ainda enrolavam seus braços e pernas. Ele realmente havia se cortado profundamente, mas isso ainda era um mistério para ele. 

- Como isso aconteceu? – perguntou aleatoriamente.

- Com uma jarra que você quebrou – informou Estela.

- Ah, então foi mesmo um acidente.

- Não, não foi. - o “tio” respondeu.

- Entendo...

Não, ele ainda não entendia. Seu cérebro fazia força para lembrar, mas as sinapses pareciam mais com curto circuitos que geravam faíscas, ao invés de produzir cognições.

- E o bebê da Estela? Por acaso o nome dela é Estela? – apontava para a enfermeira.

- Sim, mas não há nenhum bebê. Ela só está um pouco cheinha e achamos que você associou com a gravidez de sua mãe. - foi a vez de Clara responder.

- Sei...

O “tio” e Clara iam se revezando para responder suas questões. Ele a havia substituído quando João, em um surto, tentou agarrá-la. Motivo pelo qual o ruivo lhe deu umas porradas. Estava mais para segurança do que para profissional de saúde, mas interveio quando foi necessário. Um lugar daqueles devia precisar de alguém com aquele perfil.

- Posso fazer mais uma pergunta?

- Quantas quiser. – o “tio” respondeu.

- E minha mãe...? Sei que tenho uma mãe, aliás, todos devem ter uma, não é? Onde ela está? Está muito velhinha? É aquela senhora lá fora?

A esse ponto, João estava novamente ficando agitado e o auxiliar ruivo logo se aproximou.

- Olha cara, não tenho a menor vontade de saber seu nome, mas se você encostar um dedo em mim de novo, vai se arrepender! – vociferou para o auxiliar.

- Sente-se, João. – disse-lhe o médico, mas olhando com ar de reprovação para o auxiliar. - A propósito, meu nome é Marcus, doutor Marcus. Substituí a doutora Clara quando você se alterou, por isso eu não tinha um crachá na hora pra você associar.

- Faz sentido...

- Sua mãe, infelizmente, não se encontra mais entre nós já faz alguns anos.

- Co-como assim? Ela morreu?

O doutor Marcus explicou que o alcoolismo a debilitou muito. Ela não se recuperou da profunda depressão e das consequências do excesso de trabalho. O câncer surgiu como uma resposta ao estado debilitado dela. Foi nesse período de luto que João surtou.

- Ela trabalhava muito... Tentei trabalhar duas, dez vezes mais que ela.

- Ela já não trabalhava há muito tempo, João. Você, por sinal, se tornou um homem bastante rico e acionista desta rede hospitalar.

- Não pode ser! Eu vivo numa casinha modesta, em um quarto escuro, sem janelas. Não posso ser dono disso aqui. Se for assim, aquele cara ali tá na rua! – disse apontando para o ruivo.

O auxiliar retirou o crachá e saiu lentamente da sala, enquanto Clara se levantou e foi até João, abraçando-o sob o olhar de reprovação do doutor Marcus. Era evidente que havia uma ligação entre os dois, motivo pelo qual teve que ser afastada.

- Quem não tem um quarto escuro e sem janelas pra chamar de seu, João? Eu também tenho um, mas prefiro deixar a porta aberta. São tantas coisas que nos empurram pra lá que, às vezes, achamos melhor trancar a porta pelo lado de dentro, só que tem vezes que não conseguimos mais abrir. 

- Tem muita dor aqui do lado de fora. A gente perde muita coisa tentando agradar todo mundo, suprir necessidades, corresponder expectativas... Não sobra muita coisa da gente mesmo.

- Mas, você estava procurando um equilíbrio, por isso criou um quadro alternativo. Numa hora aparece uma fresta pra deixar a luz entrar, basta pedir ajuda quando estiver doendo demais.

- E o que eu faço agora? Não sei se quero sair do meu quarto, lá é seguro.

- Não, não é. Mas posso tentar te ajudar a sair de lá, se você me deixar entrar. Nos aproximamos quando tratei de sua mãe e nos afastamos durante seu luto, mas agora você tem a mim novamente. – disse Clara.

 O doutor Marcus observou a cena com melancolia. Desconhecia haver uma história entre Clara e João e viu que suas chances com ela entravam em um lugar escuro e sem janelas. Deu um sorriso para camuflar o que sentia e saiu. João estava em boas mãos.


>>> Final alternativo.


- Doutora Clara, recomponha-se. – rosnou Marcus, consternado.

- Você está encarregado do paciente, Marcus. Não há motivo para eu continuar a reprimir meus sentimentos.

- Você vai abrir mão de um relacionamento comigo por esse arremedo de romance improvável? Ora, faça-me o favor! Será que você é tão instável quanto ele?

Clara voltou os olhos para Marcus, tão surpresa quanto ele demonstrava estar. Aparentemente, a empatia do médico era mera cordialidade que escondia sua verdadeira natureza. Clara então teve uma epifania, como se um raio tivesse caído sobre sua cabeça. Lembranças de relatórios médicos estranhos, folhas suprimidas do prontuário e doses excessivas de medicação, pareciam pedaços de uma moldura que revelavam o caráter obscuro do doutor. Clara olhou incisivamente para ele e Marcus percebeu o que se passava pelo olhar dela, a desconfiança. Bingo!

- Como você pôde?  

- Não sei do que você está falando. – Marcus afirmou contundente.

João já tinha se soltado do abraço de Clara, dando espaço para a divergência dos dois, analisando o que escapava das entrelinhas. Uma fresta de luz entrava em seu quarto escuro e, ao que dava para ver, não era tão escuro quanto Marcus fez parecer.

À medida que a discussão se acalorava, a máscara do bom doutor caia, expondo alguém cínico por traz de um sorriso calculado e com um propósito. 

- Esse cara veio sei lá de onde e vira um dos maiores acionistas deste hospital, sem ao menos ter formação médica! Eu estava fazendo um favor para todos!

- Você estava fazendo um favor para si mesmo! Como pude me enganar tanto a seu respeito?

- Não se culpe. Não é porque você é mulher ou má profissional, eu apenas alimentei o que você esperava de mim. Dei a você material para a melhor escolha, e sua melhor escolha sou eu! – gritou Marcus.

- Aparentemente, o doente aqui é você, canalha. – disse o homem que entrou pela porta acompanhado por dois seguranças em ternos pretos.

- Isso aqui virou uma feira? Quem é você? – Marcus elevou o tom.

O homem grisalho e bem vestido, andou timidamente até João, que estava agachado a um canto com as mãos sobre a cabeça. Ele estava controlado, mas visivelmente abalado pela desconstrução de suas certezas.

- Perdão, meu filho. Acho que voltei um pouco tarde demais, mas se me der uma chance... – disse o homem agachando-se ao lado de João.

- Pai?

- Levem ele para o quarto, e garantam que fique confortável até descobrirmos o que esse charlatão fez com ele. – ordenou a Estela e a vovozinha que, atônitas, obedeceram. 

- Charlatão? Quem você pensa que é? 

Marcus gritou pelo segurança do hospital, mas o ruivo já tinha ido embora.

- Pode parar com o show. Já tenho provas suficientes contra você. – anunciou o homem.

Nesse ponto, os seguranças cercaram o médico e o fizeram sentar em uma das poltronas, intimidando-o ao mostrar o volume do coldre por baixo do paletó.

- Há muito tempo cometi um erro. Fui comprar cigarros, mas minha mala já estava aguardando em um armário alugado na estação de trem. Era jovem, imaturo e não estava preparado para as responsabilidades de uma família. Roubei o sorriso da minha mulher e do meu filho. E-eu... – suspirou derrotado. – Perdão. Isso foi o que ensaiei para um reencontro, mas é mentira. Fugi porque era um covarde. Caí e levantei tantas vezes, até acreditar que estava sendo castigado. Quando voltei, dez anos depois, não os encontrei. Corri atrás do tempo perdido e fiz fortuna na indústria farmacêutica. Comprei o primeiro hospital e alguns outros depois dele. Reencontrei os dois por meio de registros médicos e, desde então, tento lidar com as consequências. O fato de João ser o administrador facilitou para eu abrir os caminhos dele. Criei ações indenizatórias para compensar meu filho. Algumas drogas que foram aplicadas em minha esposa estavam em fase de testes e prolongaram sua vida, mas não tempo suficiente para que eu pudesse me redimir.

Marcus ouvia temeroso e exasperado, enquanto Clara tentava adivinhar o que mais viria da revelação espontânea.

- Acho que também sou responsável pelo estado de João e esperava que ele recebesse o melhor dos tratamentos, até que esse infeliz me fez sair do anonimato. – apontou para Marcus. – Sumam com esse traste da minha frente e garantam que ele não chegue mais perto de nenhum paciente enquanto viver.

- Ora, ora, ora, então a fortuna do maluquete veio do papai arrependido. Que tocante. – rosnava Marcus, enquanto era arrastado para fora da sala.

Poucas semanas depois, João já estava de alta. Clara o esperava na recepção com duas malas prontas para um período de férias. João olhou para trás e deu um aceno tímido para o pai que o olhava do lobby, contudo, ao lado dele também pode ver Estela carregando um bebê e a vovozinha com um prato de doces. Seu quarto escuro ainda estava lá, mas ao olhar para Clara, percebeu que agora ele tinha janelas.


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