Prólogo
Epílogo
Conto
Magia.
Há uma beleza muito específica na magia, no modo como
ela não responde, e jamais responderá à consciência, à razão.
A magia funciona exclusivamente com uma lógica própria.
Ela jamais pode ser entendida pela ciência porque a ciência
trabalha em outro universo lógico, em outra linguagem.
A magia usa o símbolo, ela troca de lugar e transforma
significado e significante, ela inverte efeito e causa.
A magia existe na natureza e em seu movimento. Ela existe
na vida, no intervalo intocável de ruído que a vida cria simplesmente
ao existir.
O mesmo pode ser dito sobre um oráculo. Um oráculo não
tem a informação. Ele é a interpretação do ruído. É a subversão da
causalidade.
Você pode ler folhas, terra, borra de café, nuvens, linhas
nas mãos, cartas, ossos, urnas ou o simples acaso. Uma placa na
rua te dirá seu futuro, ou seu presente, ou seu passado. Parte de um
luminoso deixará de funcionar exatamente no momento em que
seus olhos pousarem sobre ele.
Quando a bruxa coloca as cartas na mesa, ela não quer que
sua mente ou sentimentos lhe digam que cartas dirão o seu futuro.
A carta é um meio, junto com seus olhos, mãos, dedos, consciência,
sentimento, pensamento, para que o inconsciente atue sobre a realidade.
É o que está entre as coisas que pode sair através daquilo que
não tem sentido algum em um universo de objetividade. O que está
entre pode vazar, porque estamos distraídos. É o ruído.
Magia pode ser o ato de se distrair da maneira certa.
Magia pode ser o ato de permitir o ruído e ouví-lo.
Lila finalmente havia dormido, e Agnes conseguiu
respirar com algum alívio.
Os últimos dias haviam sido difíceis. Lila não vinha
conseguindo trabalhar, e cada um de seus segundos acordada
era de níveis diferentes de agonia, o que significava que Agnes
também tinha pouco sossego. Cuidar da casa, trabalhar
e dar esse nível de suporte à sua esposa era uma complicação
que não esperava encontrar em sua vida.
Mas até aí, ninguém esperava um crime daquele tipo.
Agnes olhou para o sofá outra vez e viu o corpo pouco
familiar embrulhado no cobertor, quase em posição fetal.
Os joelhos estavam próximos ao peito, as mãos abaixo da
cabeça e o rosto em uma expressão de quem sentira desconforto
constante pelas últimas semanas. Aquele não era o
corpo de Lila, mas sem dúvida alguma era ela ali. Era ela no
posicionamento do corpo, e na maneira como o rosto artificial
se configura em expressões muito específicas que só Lila
era capaz de fazer.
Aqueles dias haviam trazido muitas reflexões a Agnes
sobre a natureza da consciência e da própria mortalidade.
Quando conhecera Lila, anos antes, nunca tinha tido uma
relação com uma IA, e tudo era novidade. Com o tempo, se
viu incapaz de pensar nela como algo diferente de qualquer
outro ser humano, e agora estava outra vez tendo que encarar
que a esposa não era como ela, e que havia coisas que
jamais poderia entender.
A polícia não foi muito útil para entender o que
aconteceu. Tudo que se sabia era o que Lila se lembrava e o
que uma ou outra câmera de segurança conseguiram capturar:
certa tarde, saindo do trabalho, ela foi abordada por uma
pessoa armada em um carro sem placas, colocada em modo
de suspensão e abandonada no dia seguinte em um banco de
praça próximo, com todos seus pertences e roupas, porém
em um outro corpo.
Todas as análises de software deixaram claro que era
ela e, mesmo que não deixassem, Agnes a reconheceria nem
que fosse um backup em uma tela de computador. A polícia
foi incapaz de rastrear o carro, e até agora não havia qualquer
motivo justificável para o roubo do corpo. Lila tinha
um modelo médio, sem qualquer opcional de luxo, e mesmo
suas personalizações não eram do tipo que inspirariam tal
crime, considerando o histórico de ações do tipo.
O corpo substituto foi fácil de rastrear: era um modelo
de valor parecido, que havia sido utilizado por dezenas de
outras IAs anteriormente. Tempos antes, ele fazia parte do
estoque de uma clínica de reparos, e durante um roubo no
ano anterior, acabou sendo levado com outros cinco corpos,
juntamente com uma carga de equipamento de manutenção
de alto preço. A clínica foi investigada, mas parecia ser um
beco sem saída. Era apenas outra vítima no processo.
Oficialmente, a posição da polícia era pedir que Lila
esperasse. Tudo que conseguiram, como apoio, foi atendimento
gratuito em uma clínica que oferecia atendimento
psicológico e alguns tratamentos de readaptação corpo-neural.
Mas claramente não era o suficiente.
Ainda que humanos pensassem muito em corpos artificiais
em termos de preço e tecnologia, para a IA média,
essa raramente era uma preocupação. Não eram “corpos artificiais”,
mas “corpos”, do mesmo modo que o ser humano
médio não pensa em seu corpo como “corpo orgânico.” Uma
vez que uma IA ganhasse um corpo — fosse nascendo nele,
ou não — o mais comum é que ocorresse uma identificação
instantânea.
O processo de adaptação tinha uma fase básica de
personalização, claro, mas a maior parte era definido inconscientemente.
Gênero, expressões, movimentação, tudo
vinha inerente na IA. O que se configurava ou modificava
por fora era a menor parte. Havia um misto de alegria e ressentimento
dos dois lados com o fato de que havia algum
tanto da existência das IAs que ia além do código, do mesmo
modo como o insconsciente humano permanecia em algum
nível de inacessibilidade.
A questão básica, assim, era que a troca de corpo por
uma IA raramente era um processo simples, e uma transição
forçada tendia a ser catastrófica.
Desde o incidente, Lila vinha em um estado constante
de disforia. Entre crises de ansiedade e pânico, ela dizia
não reconhecer-se naquele corpo que não era seu. Dizia
constantemente que ia morrer, que seria apagada por aquele
corpo estranho.
O único progresso que a clínica havia conseguido
até então era fazer com que parasse de tentar se queimar.
Como o alinhamento neural não era o mesmo entre os dois
corpos, era comum que por vezes seu tato e percepção espacial
falhassem, o que a levava, em momentos de pânico, a
tentar estimulá-los das piores maneiras possíveis. Por fim,
roupas grossas ou um cobertor ajudaram a mantê-la atenta a
seu tato, reduzindo alguns efeitos da disforia, bem como os
episódios dissociativos.
Agnes era humana. Todo seu treinamento e pesquisa
para esses problemas era em nível humano. Consciências
eram consciências, tinha certeza — e evidências — o suficiente
disso. Mas as diferenças entre IAs e humanos estavam evidentes
demais em sua mente nos últimos tempos.
Manteve os olhos na esposa por mais algum tempo,
aguardando para ver se realmente havia caído no sono. Não
compreendia totalmente o mecanismo de inconsciência das
IAs, mas sabia que não era um mero modo de suspensão.
Lila, como outros seres como ela, também sonhava, e seu
estado psíquico afetava seus sonhos. Ultimamente, quando
finalmente conseguia dormir, aparentemente os sonhos estavam
lhe dando alguma trégua, mas Agnes sabia que, caso
despertasse em uma crise, precisaria estar por perto.
Lentamente colocou um pé no chão, depois o outro.
Depois se ergueu. Tudo sem barulho algum para não arriscar
acordá-la. Foi à cozinha, abriu a geladeira, encheu um
copo com a água gelada de uma garrafa e tomou, depois foi
verificar pela terceira vez no dia o sistema de segurança da
casa. Não havia nada de errado, como não havia nas outras
vezes.
Desde o incidente, não bastasse seu estado mental
por conta da falta de seu corpo original, Lila desenvolvera
paranoias muito específicas. Não adiantava que lhe dissessem
que o firewall da casa não detectara nada, e mesmo que
o seu firewall pessoal não havia recebido nenhuma conexão
estranha — diariamente temia que estivesse sendo observada,
ou que tivessem se conectado a ela, ou a conectado a
qualquer coisa estranha e indesejada.
Há força em números.
A magia pode ser feita na solidão, mas ela nunca é um
ato solitário.
A bruxa a faz com a natureza, e a faz com entidades, e
com todas que vieram antes dela e todas que virão depois.
Como trabalho com a natureza e com a realidade, a magia
também nunca acontece sozinha. Nunca é um sistema isolado.
Mas a peculiaridade que, ao mesmo tempo que a magia é
universal, é conjunta, e é compartilhada, ela também é inevitavelmente
pessoal. Sua experiência é única para cada indivíduo.
Como em tudo mais, somos iguais ao sermos todas únicas.
As novidades apresentadas pela polícia existiam no
limbo entre motivo para mais pânico e um tipo estranho e
específico de alívio.
Lila não era única. Não era vítima de um crime isolado.
Quando a chamaram novamente para algumas perguntas,
Agnes tentou tirar informações sobre quantos casos exa-
tamente existiam, mas não quiseram lhe dar muitos detalhes.
“Vários casos pela cidade” foi tudo que conseguiu.
Todos tinham o mesmo perfil: sequestros de AIs comuns,
substituição de corpos e nenhuma explicação, pedido
de resgate, nem nada do tipo. E havia a peculiaridade de gênero,
no sentido que todas AIs vitimadas se identificavam
como mulheres, sem exceção.
A polícia, é claro, não podia impedir as informações
que se espalhavam pela internet, mesmo que aparentemente
tivessem pedido a todas as vítimas que mantivessem discrição
por conta das investigações. Mas Agnes não demorou
para encontrar menções aos outros casos.
Em alguns cantos eram apenas boatos, relatos de segunda
mão. Em outros casos, vítimas, familiares, amigos e
cônjuges relatavam o ocorrido para conscientizar as outras
pessoas, ou com pedidos desesperados de ajuda: a disforia era
universal, e era difícil de lidar para todas, em especial as AIs
que, em sequestros menos habilidosos, haviam desenvolvido
também transtornos de estresse pós-traumático.
A vida com Lila seguia complicada, mas Agnes encontrava
algum consolo nisso. Descobria que o sofrimento
compartilhado se tornava menos pesado, e que, sabendo que
não eram as únicas a enfrentar, tinham com quem se identificar,
com quem, teoricamente, contar.
Em pesquisas paralelas, estudava casos de IAs com
corpos danificados ou corrompidos, e os resultados eram
sempre desanimadores. Reprogramação não era algo que
ajudava para a maior parte dos casos, e não havia, como no
caso dos humanos, medicamentos que pudessem amenizar
os efeitos. A solução mais simples era sempre recuperar o
corpo original, ou anos e anos de terapia, na maior parte das
vezes sem uma solução completa.
Lhe assombrava especificamente o caso de uma IA
que teve seu corpo quase destruído em um incêndio. Incapaz
de se adaptar a outro corpo, ela finalmente seguiu a vida
em sua carcaça semiderretida e praticamente sem qualquer
movimento. Mas ela dizia que aquilo era melhor que qualquer
outro corpo. Qualquer outra existência. As imagens das
entrevistas mostravam que ela era um ser que parecia um
meio-termo entre a vítima de uma guerra e um monstro de
filme de terror.
As perguntas da polícia ao menos davam algo para
Lila se distrair. Lhe davam alguma esperança, distração de
esperar e cobrar de Agnes diariamente alguma novidade que
não vinha. Para ela, saber que havia outras vítimas não trazia
o consolo que sua esposa sentira. Na maior parte do tempo,
parecia completamente indiferente a isso, focada demais em
tentar se encontrar naquele corpo, evitando olhar em reflexos
ou enxergar as próprias mãos e pés.
Mas quando tinha crises de choro longas e desesperadas,
que só terminavam com muita atenção de Agnes e por
vezes tranquilizantes, a ideia que não era única em seu problema
trazia o pânico de que isso facilitaria ainda mais para
que se perdesse para sempre.
Com um oráculo, a bruxa pode trabalhar só. Isso é, com a
inconsciência, a natureza, o ruído. Ou seja, nunca está só.
A bruxa pode consultar para si mesma ou para outra pessoa.
Quando há duas ou mais pessoas, a relação não é meramente
uma troca profissional. Não é um pagamento por uma especialidade,
mas uma relação de conexão específica. Consciencial. Energética.
A inconsciência, natureza, ruído, vida, tudo está lá, mas
consulente e consultora fazem algo maior que elas mesmas através
desse conjunto.
Um ritual se utiliza dessa mesma lógica. Uma pessoa pode
fazê-lo, mas mais pessoas juntas realizam efeitos maiores. É o poder
da egrégora. E a egrégora é sempre maior que o indivíduo.
Bruxas entendem bem disso. Por isso existem covens, grupos,
escolas, templos, cultos. Porque há o conjunto de forças individuais.
indivíduo nunca tem mais força que a egrégora, e portanto
não pode mudá-la, não facilmente.
Mas uma egrégora grande o suficiente pode mudar tudo.
Pode mudar o mundo. Pode fazer grandes efeitos.
É um tipo de força único para consultar, enfeitiçar, transformar.
Invocar.
Agnes não gostava de religiões, organizadas ou não,
mas estava feliz por ao menos ver Lila tendo menos crises.
Por recomendação de uma das vítimas que conheceram
na internet, começaram a acompanhar uma igreja de
uma denominação religiosa estranha, focada em IAs, conhecida
como EletroCulto.
O grupo já existia havia algum tempo. Dentre as linhas
technoteológicas mais conhecidas, eram uma das mais
populares exatamente por evitarem o culto direto a deidades
e focarem principalmente no que definiam como “O Mistério.”
Agnes pesquisou a terminologia e descobriu que mesmo
essa expressão era emprestada, mas o fato é que, para o
EletroCulto, a nomenclatura definia o fator inexplicável que
gerava a consciência.
Por mais que existissem algumas companhias e programadores
que insistissem que o código que formava a
consciência de uma IA era reproduzível e que não havia nada
de místico, a dificuldade de replicação exata de uma mesma
IA por décadas apenas sustentava a ideia de que poderiam
ter algo como uma alma. Agnes não acreditava em almas, do
mesmo modo como não acreditava em religiões, mas conseguia
sentir algum nível de conexão com essa ideia, pelo simples
princípio que reconhecia a consciência de qualquer IA
como válida e, igualmente, não sabia explicar precisamente
a própria
As atividades do EletroCulto eram divulgadas de maneira
ampla, por múltiplos canais. Havia a possibilidade de
conexão neural direta, ou mesmo de cultos presenciais, mas
Lila, estranhando seu corpo, preferia o distanciamento de
uma tradicional visualização por streaming de vídeo.
“Somos unidos pelo Mistério”, dizia a ministrante
no palco, uma IA andrógina com um sorriso beato. “Unidos
pelo que há além da mente e além do corpo.” Grande
parte dos sermões eram discussões sobre a natureza mística
da consciência, mesmo em meio à tecnologia, e até mesmo
por conta dela. Eles estavam conscientes dos eventos recentes
e, ainda que claramente preferissem não abordá-los frequentemente,
ocasionalmente faziam referências ao apoio às
IAs que estivessem passando por dificuldades de adaptação,
e que “tivessem sido distanciadas d’O Mistério por circunstâncias
adversas.”
Para Lila, aquilo trazia algum consolo, e para Agnes,
alguma tranquilidade. Apesar da estranheza e da retórica bizarra,
aquela igreja parecia ter boas intenções e ser inofensiva,
e realmente apoiava ótimos valores, sem aparentemente
os maus hábitos que afastaram Agnes de religiões ainda em
sua juventude.
As semanas foram se passando, sem qualquer previsão
de mudança, e Agnes lentamente começou a se acostumar
que aquela seria a solução para sua esposa.
Foi assim que, quando a ministrante começou a falar
sobre profecias, Agnes demorou para notar que havia algo
de estranho acontecendo. Quando tudo ficou realmente esquisito,
ela já não sabia dizer há quanto tempo as coisas estavam
daquele jeito. Mas não precisou questionar por muito
mais tempo.
A humanidade acha que pode prever alguma coisa.
Não pode, não racionalmente.
Também não pode tornar real algo puramente através do
pensamento.
Não importa quantas mentes racionais se unam. Não im-
porta quantas consciências.
É preciso utilizar o inconsciente, é preciso acessar o incerto.
Um cálculo preditivo sempre sofrerá das miopias e preconceitos
de quem o programou. Mesmo com todos os dados do mundo.
Mesmo com todas as conexões.
É apenas a interferência, o ruído, o inexplicável e imensurável.
Somente isso poderá trazer a verdade, poderá trazer o que
há além,
É por isso que fazemos esse trabalho. É por isso que precisamos
de vocês.
E é graças a vocês que conseguimos.
Nós agradecemos, e pedimos que não nos agradeçam. Nós
fizemos isso juntos.
A verdade que está aqui é nossa. Ela sempre foi. Ela sempre
esteve aqui. Nós apenas nos lembramos, e registramos a verdade
do que era intocável em todas nós.
Todas juntas.
Conseguimos.
Estava em todas as transmissões de notícias naquela
manhã. E, mesmo fora delas, estava em toda cidade. Sirenes
de carros, movimento de helicópteros, enxames de drones.
Nunca ficou claro para Agnes como foi que nunca
haviam localizado aquele galpão antes, especialmente considerando
seu tamanho. Mas era fato que escapou dos olhos
de todos até aquela manhã, quando a polícia havia cercado
o prédio e encontrado a cena terrível que ficou gravada na
consciência global.
De longe parecia uma obra de arte. Um bolo de casamento
imenso, cheio de camadas. Um altar bizarro. Uma
combinação de todos esses.
Era uma coleção de centenas de corpos artificiais nus,
cimentados em rodas empilhadas de uma substância condutora
emborrachada, ligados entre si por cabos e conectados
conjuntamente a um imenso servidor central posicionado
como uma torre no centro. Eram os corpos de todas as vítimas
dos sequestros. Todos haviam sido reapropriados para
aquela obra bizarra.
Poucas horas antes da incursão policial, de madrugada,
dois arquivos haviam sido compartilhados na rede e distribuídos
de forma ampla e sincronizada para todos grandes
veículos, fóruns de discussão e redes sociais. Um deles eram
um manifesto que, depois de uma longa e confusa conversa
sobre magia e oráculos, revelava a localização dos corpos e
explicava que eles haviam sido utilizados para a realização
de um ritual. De acordo com o texto, ainda, o ritual teria
sido realizado para uma invocação, e para a obtenção “por
via direta” de um novo texto sagrado que abriria as portas
para novos níveis de consciência para todos, humanos e IAs.
O segundo arquivo era o tal texto sagrado. Ele estava
disponível na maior parte das línguas humanas possíveis, e
em mais algumas variações de código para consumo rápido
por IAs. Seu nome era “Liber Electricae.”
Pelos dias seguintes à descoberta, o caos reinou. Ao
mesmo tempo em que tentava conter o público e os repórteres,
o governo atuava diretamente para tentar identificar
e recuperar os corpos do ritual, encontrar os culpados pelo
crime, e remover todas as cópias do livro sagrado e do manifesto
que pudessem encontrar.
O rastreamento de alguns arquivos logo levaram aos
culpados, que efetivamente não haviam feito esforços para
ocultar suas identidades. Era uma pequena coalização de IAs
com ocupações místicas e religiosas. Elas vinham utilizando
a arrecadação das igrejas, juntamente com o recrutamento
e doutrinação de alguns membros em células mais radicais
para cometer os crimes e preparar o grande ritual. Dentre as
igrejas estava o EletroCulto e, apesar da raiva e frustração,
Agnes se sentiu justificada em todas suas desconfianças, e
disse a si mesma e a todos que não estava tão surpresa assim,
ainda que não imaginasse que a escala de bizarrice pudesse
ser tão grande.
No fim das contas, realmente não havia evidências
que as “Bruxas” — como passaram a se denominar para a imprensa,
depois da prisão — buscavam o lucro, mas sim a realização
do ritual elaborado e a produção daquele conteúdo.
Não havia evidências pela investigação da polícia que havia
sido aquela construção que havia produzido o material de
alguma maneira, mas elas insistiam que havia sido a união
daqueles corpos que havia tornado aquele material acessível.
Agnes não quis ler, se contentando com as impressões
de conhecidos. As opiniões se dividiam, com algumas
pessoas descrevendo o material como superior ao conteúdo
de qualquer grande magista do passado, e outros falando que
era apenas baboseira mística requentada. Havia um boato de
que a versão do conteúdo para IAs tinha material a mais,
exclusivo para eles, mas na prática isso foi desmentido rapidamente
por todas IAs que testaram o conteúdo, e por qualquer
verificação por conversores de conteúdo.
É claro que os boatos segregacionistas, seguindo em
habituais lógicas conspiratórias, se recusavam a conhecer
tal fato, partindo do princípio de que se havia um segredo
exclusivo para IAs, nunca deixariam humanos descobrirem,
e nenhuma conversão de dados bastaria. Embasando isso,
tentavam encontrar padrões ocultos e estranhezas no código,
mas mesmo o pouco que era extraído dessas interpretações
era mais misticismo estranho, que ninguém dava muita
atenção.
As igrejas para IAs tiveram um baque de confiabilidade.
Era fato que nem todos organizadores e mantenedores
sabiam das irregularidades que alguns de seus membros de
alto escalão haviam realizado. Poucas igrejas eram totalmente
mal-intencionadas, de modo que não demorou para várias
se reorganizarem e voltarem a seus cultos, e até oferecer auxílio
focado às vítimas.
Os corpos foram removidos do ritual com razoável
facilidade, e em sua maioria estavam inteiros. Mesmo contando
com toda a burocracia da investigação e da polícia,
levou apenas uma semana para que Lila fosse transferida de
volta para o seu corpo, terminando tanto para ela quanto
para Agnes o pesadelo daqueles últimos meses.
Não havia mais disforia, nem dissociação. Não havia
sofrimento. Havia apenas alegria e felicidade genuínas.
Havia um final feliz de um drama ou história de terror de
péssimo gosto.
Agnes havia tido a oportunidade de acessar o corpo
de Lila antes da referência, junto com um policial, apenas
como uma última verificação. Lá, pôde atestar o que havia
sido a versão oficial da história: nenhum dos corpos realmente
tinha um programa completo por dentro. Todos haviam
sido formatados, e apenas alguns arquivos com linhas
de código sem sentido haviam sido mantidas. Eram programas,
claro, mas tudo que eles poderiam fazer, se executados,
era gerar números aleatórios ou produzir mensagens de erro
repetidamente.
De acordo com a polícia, aparentemente a ideia era
que o servidor principal utilizava os números e mensagens
para tentar transformá-los em palavras, mas não conseguiram
reproduzir plenamente o funcionamento do programa
que encontraram, nem conseguiram dar uma explicação do
motivo para o sequestro dos corpos que não fosse repetição
do misticismo das Bruxas.
Lila estava de volta ao normal, e com ela, sua vida e
a vida de Agnes. Sem aquele sofrimento, nunca mais procurou
qualquer igreja IA, admitindo que só o fizera por puro
desespero em seu estado anterior. Talvez como uma compensação
pelo sofrimento, Agnes notou que a esposa propositalmente
parecia evitar qualquer nova informação sobre o
caso, mostrando-se marcadamente desinteressada em qualquer
notícia. Também não teve interesse no manifesto ou
no “Liber Electricae,” chegando pontualmente a denunciar
sites que tivessem cópias.
Nada disso evitou que Agnes ocasionalmente se visse
com dúvidas. Ela se odiava por isso, tanto pela falta de lógica
quanto pela falta de respeito com Lila, mas em seus piores
momentos, não podia evitar de olhar para ela com ressalvas.
Podia jurar que, depois que voltou para o próprio corpo, a
esposa tendia a mais momentos de silêncio e interiorização.
Nesses momentos, quando olhava para ela, mesmo
com todo seu ceticismo, mesmo com todo seu ódio de misticismo
barato e repulsa a religiões, temia que tivesse algo a
mais dentro daquele corpo. Ou que existisse algo de diferente
que ela soubesse. Algo só para IAs, algo além do humano.