Prólogo
Epílogo
Conto
Kaore agarrou o cabo emborrachado que saía do azulejo
do banheiro e o trouxe para perto. Levantou o seio esquerdo
e introduziu o plugue do tamanho de uma tampa de
caneta em um orifício na pele. Mesmo depois de tantos anos,
ainda não se acostumara com a sensação do metal invadindo
o corpo, realizando conexões eletrônicas, fazendo seu ventre
formigar.
Assim que o plugue encaixou com um clique, viu o
reflexo no espelho esmaecer, sobreposto por centenas de caracteres
azuis que diagnosticavam o coração artificial, capaz
de bombear seu sangue a trezentas batidas por minuto. Ela
acoplou outros dois plugues nas costas, abaixo das costelas, e
a tela se dividiu em duas, exibindo as condições do fígado e
da coluna vertebral artificiais.
Enquanto esperava o fim dos testes, acionou a realidade
aumentada em suas lentes de contato. “Resort luxuoso
na cidade suspensa mais alta da terra”, dizia um anúncio.
“Esse seu último vídeo ficou incrível!”, era o comentário de
uma colega em seu canal sobre próteses esportivas. “Está livre
esse sábado?”, perguntava um rapaz com quem saíra na
semana anterior. Kaore dispensou as mensagens com um
gesto displicente, mas uma nova comunicação surgiu diante
de seus olhos: “Relatório de genealogica.org”. Cogitou jogar
a mensagem fora sem abri-la, entretanto, seus dedos hesitaram
e ela leu: “Nenhuma correspondência genética encontrada”,
era a mensagem de sempre.
— Testes automatizados concluídos com êxito — falou
o espelho, onde um cursor verde piscava com indiferença.
— Nenhuma falha encontrada. Tenha um bom dia,
soldado.
— Soldada — murmurou Kaore, corrigindo a voz
masculina e antipática.
Ela se livrou dos cabos e sentiu um líquido morno
escorrendo pela barriga. Era uma mistura viscosa e escura
de óleo com sangue, que ela limpou com os dedos, fazendo
uma careta.
Uma última manchete restava em sua visão periférica,
ao lado da foto de uma modelo carregando sacolas com
roupas de bebê: “Depois de conseguir a autorização, Gisela
Sopicki realiza reprodução orgânica”. Kaore livrou-se daquela
notícia, revirando os olhos, e dispensou o sistema de
realidade aumentada.
Caminhou até o outro lado do banheiro e abriu
o chuveiro pressurizado e quente. “A melhor invenção da
humanidade”, pensou enquanto o jato massageava seus ombros.
Banhou-se até ouvir o pequeno bip dentro do ouvido
depois de exatos cinco minutos. Continuou debaixo d’água
até o registro se fechar sozinho, com um alerta luminoso
piscando em vermelho na parede, reprovando-a. Praguejando,
ela pegou uma toalha limpa na prateleira e se enxugou
rapidamente.
Debaixo da pia, abriu uma portinhola e puxou a pistola
de ar comprimido acoplada a uma mangueira. Sentou-se
no banco frio de aço, apontou para as canelas prateadas e
apertou o gatilho. O ar pressurizado com óleo atingiu sua
prótese e ela fez uma careta. Kaore passeou com o jato, a fim
de atingir cada reentrância do seu equipamento moderno de
velocidade, e depois se limpou com uma flanela.
Ao se levantar, os músculos reclamaram da rotina de
exercícios do dia anterior. Esticou-se em um alongamento
demorado, enchendo o peito de ar, e inclinou-se para tocar
os dedos dos pés, sentindo o joelho mecânico se ajustar aos
ligamentos estirados atrás da coxa. Por último, pressionou
um ponto atrás da orelha, então suas vértebras artificiais se
realinharam uma após a outra, reiniciando o sistema nervoso
artificial, o que produziu uma sensação curiosa de prazer à
medida que seus músculos e tendões se reorganizavam.
De volta ao espelho, Kaore escovou os dentes e penteou
os cabelos cor de laranja, com fios aparados para acompanhar
a linha da mandíbula e da base do crânio. Limpou o
vidro embaçado e escolheu uma maquiagem após percorrer
algumas opções que eram estampadas em seu reflexo conforme
ela interagia com a interface. Em seguida, o sistema
a orientou reproduzir o feito em seu rosto físico: um batom
rosa, olhos delineados com linhas grossas e uma sombra
combinando com a cor do cabelo.
Depois de vestir o uniforme — um tecido leve e elástico
que se ajustou ao corpo —, Kaore pegou um spray de
WD-40 no armário e espirrou no pé. Ela mexeu o calcanhar
e os dedinhos, ouvindo o zumbido discreto das microrroldanas
de titânio e ligamentos de nanotubos de carbono em
movimento.
• • •
Sozinha no refeitório, Kaore comia um biscoito de
aveia sem gosto quando reconheceu os passos firmes da comandante
Leonia. A mulher alta e de cabelos curtos entrou e
foi direto à máquina de café.
— Bom dia, Kaore — falou enquanto colocava uma
caneca no equipamento. — Recebi um relatório reclamando
do seu tempo de banho.
— Desculpe, comandante.
Leonia continuou encarando Kaore com as sobran-
celhas zangadas, esperava uma justificativa além do pedido
de desculpas.
— Dá muito trabalho limpar esses parafusos, comandante
— falou uma voz masculina.
Zac sentava-se à mesa, e Kaore nem sequer notara
sua aproximação. Ele apontou para a superfície metálica que
cobria quase metade da face e deu um sorriso irreverente
para Leonia, que balançou a cabeça, reprovando a atitude do
soldado. O olho biônico do rapaz era uma grande lente azul
cintilante que o deixava com aspecto de pirata, mas foi com o
olho natural que ele deu uma piscadela para Kaore, pegando
a caixa do cereal e despejando em uma bacia.
— Estou com fome — disse.
Alguns minutos mais tarde, outro homem, alto e
musculoso, chegou no refeitório. Seu braço mecânico trazia
a marca do fabricante — Ecto Mechanics — estampada na
pele artificial. Sério, ele cumprimentou a todos e, quando se
sentou, a cadeira rangeu, reclamando do peso.
— Sargento Aurala — falou a comandante —, está
atrasado.
— Meus exercícios matinais são demorados — ele
respondeu, mal-humorado.
A comandante bateu a caneca de café ao lado dele e
ralhou em sua orelha:
— Acorde mais cedo.
Ele fez uma careta, mas a comandante não percebeu,
pois estava atenta ao relatório que analisava em um tablet
com as bordas emborrachadas. Ela encostou no balcão, lendo
enquanto comia um sanduíche cheio de ovo e queijo. O sargento
preparava o cereal, enchendo a tigela de leite.
— O que houve com suas lentes de contato? — perguntou,
intrigado com o dispositivo de leitura externo da
comandante.
— Não consigo me acostumar com aquelas coisas.
Kaore também não gostava das lentes, mas as usava
mesmo assim. Ela olhou para a tigela de cereais com gosto de
ração e reparou no relatório nutricional indicado no canto
de sua visão, que recomendava acrescentar frutas ao prato.
Ela se levantou, pegou uma maçã na fruteira e mordeu.
— Pelo visto, hoje serão só as rondas de praxe — falou
o sargento, ao ver a comandante abandonando o tablet sobre
a mesa.
Leonia assentiu, entediada, e terminou de comer o
sanduíche. Zac dava a entender que se divertia com algum
jogo eletrônico, de olhos fechados e fazendo caretas. Ouviam
apenas o ressonar monótono do refrigerador, uma nota
constante no meio do silêncio. Quando o tablet da comandante
apitou, todos deram um leve sobressalto. Apressada,
Leonia pegou o dispositivo e leu a mensagem com os olhos
arregalados.
— Atenção, soldados. Quero todos equipados para
combate ofensivo. É uma violação do CISE 447.
Kaore conhecia as leis internacionais, mas não fazia
ideia do que seria o artigo 447. Tentou consultar a Internet
em suas lentes de contato, contudo, a comandante já havia
iniciado o protocolo de combate e estava com os olhos repletos
de instruções, um checklist de equipamentos e diagramas
com procedimentos de segurança.
Kaore foi a última a se retirar do refeitório, depois de
jogar o que sobrara da maçã no lixo. Antes de sair, o alerta
vermelho que piscava sobre a mesa chamou a sua atenção.
Na pressa, a comandante esquecera o tablet, e a mensagem
que chegara há poucos minutos continuava na tela. Kaore
se aproximou, curiosa, e leu o código destacado de amarelo:
RONA-0017954.
Ela franziu a testa e sentiu um embrulho no estômago.
Virando o próprio punho para o alto, releu a tatuagem,
já desbotada pelo tempo, que lhe acompanhava desde a infância:
RONA-0009001.
• • •
— Kaore, toma — gritou Zac ao jogar uma pistola
preta e comprida para o alto.
Ela agarrou o objeto no ar, segurando-o com firmeza,
entrou na cabine cilíndrica e apertada ao lado e apertou o
botão vermelho no painel. O zumbido da porta se fechando
atrás dela se somou ao da haste de aço, a qual descia do teto
até o chão feito uma broca em câmera lenta. O formigamento
nas costas indicava que suas vértebras estabeleciam conexões
sem fio com os sensores da haste, e poucos segundos
mais tarde, as pernas mecânicas foram imobilizadas.
A cabine ganhou vida quando dezenas de braços
articulados saltaram das laterais e iniciaram uma atividade
meticulosa. Encaixavam as muitas partes do exoesqueleto
de Kaore como se fosse um quebra-cabeça há muito tempo
conhecido. Tudo que ainda era humano ficava bem protegido
pelas placas quase impenetráveis de uma liga leve de
aço-carbono e fibra de hirsuto-plasma. O sistema se encarregou
de adequar a armadura do braço à arma que segurava,
deixando-a recolhida no antebraço. Bastaria um pequeno
movimento dos dedos e a pistola saltaria para a mão em uma
fração de milissegundo.
Por último, os braços magricelas trouxeram o capacete
em formato de cabeça de peixe, com respiradores que
pareciam guelras e antenas externas que lembravam os bigodes
de um bagre. As lentes de contato de Kaore se conectaram
ao equipamento e começaram a controlá-lo para maximizar
o contraste da visão da soldada.
Terminada a transformação, Kaore encontrou os
outros três colegas vestidos como ela. O braço mecânico do
sargento parecia ainda maior, equipado com pelo menos três
armas de alto calibre. O capacete de Zac era o único diferente,
pois acoplava uma lente telescópica retrátil a seu olho
biônico. O rifle comprido que ele carregava dava a sensação
de que seu braço ia até os joelhos. A comandante levava uma
pistola em cada braço, uma delas emitia um brilho fluorescente
e púrpura.
Desceram as escadas de ferro para a plataforma de
embarque, em um hangar aéreo que lembrava uma colmeia.
A nave estava presa sob seus pés, um veículo oval suspenso
no vazio com a cabine inundada por fluido retardador
de inércia, transparente e viscoso. Eles prenderam o ar e
submergiram até seus assentos. Os cintos de segurança rapidamente
os envolveram e tubos de oxigênio saltaram dos
bancos para se conectarem às armaduras. A cabine se fechou
sobre suas cabeças como um grande ovo transparente, e o
nível do fluido subiu até ocupar todo o espaço vazio do interior
da aeronave. Logo em seguida, os motores ligaram.
Apesar de silenciosos, podiam sentir a vibração das turbinas,
e bastaram alguns segundos para a nave atingir os incríveis
cinco mil quilômetros por hora.
Kaore ouviu a voz da comandante dentro do capacete:
— Vamos visitar uma zona morta. São dois indivíduos
em um conjunto habitacional abandonado.
— Achei que não havia mais ratos em Brasília — falou
o sargento, examinando o mapa.
— Eles se escondem nos locais mais inesperados —
explicou a comandante. — Estávamos atrás deles há dez meses.
— Ouvi falar em empresas na deep web que oferecem
segurança e privacidade nas zonas mortas — ponderou Zac.
— Qual é o plano?
— Não sabemos a localização exata dos indivíduos,
pois a área é pouco sensoreada — informou a comandante.
— O objetivo é expor os meliantes e eliminá-los. Estou carregando
o plano detalhado no sistema. Terão ele em breve
em seus monitores.
Kaore ouviu o bip em seu ouvido e o ícone laranja no
canto da tela indicou que o plano da comandante chegara.
Ela o abriu e estudou o mapa cuidadosamente. Após alguns
segundos, ouviu a voz do sargento:
— Aqui diz que eles podem estar equipados com mecânica
medra-exógena.
— São rebeldes — respondeu a comandante, com indiferença.
— Não usam membros biônicos. Vestem exoesqueletos
frágeis e antiquados, comprados no mercado negro.
— Mas podem ser velozes — retrucou o sargento.
A comandante riu e deu uma olhadela para trás.
— E quem consegue ser mais rápido que a Kaore?
— Pernas de última geração — provocou Zac, olhando
para as coxas de Kaore com a lente telescópica de seu olho
artificial.
Kaore virou pra ele e mostrou o dedo do meio.
• • •
Saíram da zona militar, fria e escura, perto da superfície,
e subiram até se afastarem da neblina cinzenta e tóxica
que cobria o mundo. Kaore admirou a paisagem com o sol
nascente a iluminar as muitas ilhas suspensas no horizonte,
todas envoltas em redomas de plasma e abastecidas por pesados
filtros de ar, construídos nos grandes pilares de fibra
e aço que as sustentavam. Eram muitas delas, de diâmetros
variados e diferentes alturas. Amparavam prédios, parques
e hospitais.
A aeronave acelerou mais uma vez e logo imergiram
no mundo obscuro da superfície. Chegavam na zona morta,
na qual o sol não conseguia penetrar. Era apenas aquela
luz lúgubre e cinzenta, difusa na neblina, riscada pelos faróis
neons da nave. O capacete de Kaore ajustou-se automatica-
mente, ativando os filtros que traduziam frequências infravermelho
e ultravioleta em formas fluorescentes e fantasmagóricas.
A nave reduziu a propulsão e as luzes até vagarem
como um fantasma silencioso pela neblina cinzenta. Os sonares
de alta resolução desenhavam a topografia e os contornos
das ruínas sob seus pés, até que estacionaram no alto de
um edifício. Kaore checou o mapa e viu que ainda faltavam
cinco quilômetros até o alvo. A comandante pareceu adivinhar
seus pensamentos e a voz dela surgiu nos seus ouvidos:
— A aproximação será por terra.
O nível do líquido viscoso desceu e a cúpula da nave
se abriu. Junto aos outros, Kaore se soltou dos cintos e emergiu
como um anfíbio na superfície do veículo. Ela saltou para
o lado de fora e as pernas mecânicas amorteceram a aterrisagem
com perfeição, sem ruídos. Os demais não foram tão
silenciosos, mas não havia ninguém ali para ouvi-los, pelo
menos era o que relatavam os sensores.
Desceram pela parede externa do edifício, presos pelos
finos cabos de aço que saíam das costas de suas armaduras.
Quando chegaram ao solo, o fio se soltou do alto do
prédio e se recolheu com um zunido discreto.
— Camuflagem — ouviram o sargento murmurar.
Instantaneamente, todos ativaram o sistema que estampou
suas armaduras com um vídeo monótono da neblina
cinzenta, deixando-os invisíveis até para olhos bem atentos.
Um ícone de exclamação apareceu diante dos olhos
de Kaore, apontando-a como a incumbida da próxima tarefa.
Os sensores terminavam de construir o mapa do terreno e
desenhavam as ruínas em seu visor, sobrepondo a monotonia
da neblina densa. Depois de ativar o módulo de corrida
silenciosa, a soldada disparou um quilômetro à frente dos
demais em apenas cinquenta segundos. Ela parou, ofegante,
seu coração mecânico pulsando com força. Automaticamente,
os sensores iniciaram as medições com o sonar e a
ressonância de campo geodésico. A inteligência artificial da
armadura processou os dados e classificou o risco em menos
de 0.1%. Ela compartilhou os resultados com os demais e
correu mais alguns quarteirões.
A somente um quilômetro do alvo, Kaore leu uma
mensagem de Zac: “assumindo posição ostensiva”. Logo em
seguida, um quadrinho com a transmissão em vídeo gravada
pelo olho biônico do colega apareceu no ecrã de Kaore e ela
o ampliou para espiar o conjunto habitacional sob a mira telescópica
de alta resolução. Parecia vazio como todo o resto
ao redor.
Kaore se aproximou dos portões do condomínio
abandonado e enviou novamente o relatório gerado pela
inteligência da armadura. A mensagem da comandante, alterando
o plano, veio poucos segundos depois: “repita a cada
50 metros”. Kaore obedeceu e prosseguiu vagarosamente
pelo estacionamento abandonado até ler “pare” flutuando na
caixa de mensagens.
A comandante enviou uma análise manual das medições,
em que destacava uma anomalia no sinal. “Nossos chips
de IA não sabem lidar com esses dados… Enviando para o
Werbos”, foi a mensagem que apareceu no ecrã dos capacetes.
Werbos era a central de inteligência artificial da rede
militar, treinada constantemente com os conjuntos de dados
mais ricos do planeta sob a supervisão de centenas de cientistas
de dados e peritos.
Bastaram três segundos para o relatório devolver
uma resposta simples: “supressor de presença”. Kaore nunca
ouvira falar de um supressor capaz de enganar os sinais da
ressonância, mas a tecnologia evoluía numa velocidade incontrolável.
Depois de outros três segundos, receberam um
novo relatório com a predição da localização do supressor,
a qual, provavelmente, levaria a equipe aos indivíduos que
procuravam.
“Assumindo posição ostensiva” foi a mensagem que
apareceu duas vezes na tela de Kaore, vinda da comandante
e do sargento. Ela viu as manchas quentes de seus corpos
passando diante do visor, indo em direção ao terceiro bloco
do conjunto habitacional. Ela os seguiu de perto, mas permaneceu
no térreo, conforme o plano. Se alguém tentasse
fugir, era ela a responsável por perseguir e neutralizar. Zac
estaria observando à distância, dando cobertura, pronto para
disparar se fosse necessário.
Os vídeos capturados pelos capacetes da comandante
e do sargento apareceram no canto do ecrã, logo abaixo
da transmissão de Zac. Eles subiram as escadas até o quarto
andar. O preditor apontava o final do corredor como ponto
mais provável para encontrarem o equipamento. A comandante
foi na frente e o sargento ficou na retaguarda, espiando
os cômodos que deixavam para trás.
Mesmo próximos do alvo predito, os sensores da comandante
não indicavam qualquer sinal de vida. Ela parecia
intrigada com o papel de parede e ampliou a imagem para
verificar alguma coisa. Kaore se assustou quando a textura
ganhou vida e um vulto fantasmagórico começou a atirar.
“Droga, um camaleão sentinela!”, Kaore pensou. As balas
resvalaram na armadura da comandante, que se escondeu
em uma das portas do corredor. Um alarme começou a tocar.
O sargento ativou a escopeta em seu braço mecânico
e disparou contra a sentinela que serpenteava pela parede.
As balas estilhaçaram o revestimento do corredor, mas a
sentinela não parou de atirar. Urrando de raiva, o sargento
correu e, após um salto, agarrou o robô invisível com o
braço mecânico. Ele o despedaçou com um único golpe. Sem
perder tempo, correu até a última porta do corredor e a destruiu,
usando o braço mecânico como um aríete.
Só então Kaore viu a mancha vermelha no vídeo, que
indicava o corpo quente de um humano. A imagem pós-processada
mostrou as roupas plásticas que ele vestia e a máscara
com filtro de ar. Ele se escondia atrás de um sofá e atirava
sem parar, obrigando o sargento a recuar para o corredor.
Com a amostra do vídeo do apartamento invadido, Werbos
calculou a posição do atirador mascarado. A comandante sacou
sua pistola fluorescente púrpura e ajustou um pequeno
botão na lateral, girando-o. Ela firmou as pernas, mirou por
trás das paredes enquanto seguia as coordenadas de Werbos
projetadas na tela, e apertou o gatilho. O disparo luminoso
fez um furo preciso no concreto e silenciou o corredor. O
vídeo do sargento mostrou a checagem dos sinais vitais do
homem mascarado atrás do sofá, com um orifício chamuscado
no meio da testa.
A comandante esperou o sinal de positivo do sargento
para explorar o restante do cômodo, mas ouviram um barulho
e escutaram a voz de Zac:
— Alvo fugindo pelo corredor!
A comandante e o sargento voltaram correndo, mas
a figura mascarada já havia alcançado as escadas. Em poucos
segundos, já estava no térreo, corria numa velocidade sobre-
-humana.
Kaore começou a persegui-la. Os sensores indicaram
que o fugitivo usava um exoesqueleto nas pernas. O indivíduo
esgueirava-se com agilidade pelos carros abandonados e
Kaore tentava mirar.
— Kaore — ela ouviu a voz da comandante. — Neutralize.
Numa fração de segundo, Kaore conseguiu um ângulo
propício e disparou. A figura caiu no chão, imóvel, encolhida
em torno do próprio umbigo. Kaore pensou ter ouvido
um ruído agudo, mas a comandante e o sargento passaram
na frente dela e fizeram um sinal para que não se aproximasse.
— Pode voltar para a nave — falou o sargento. — Os
drones cuidam do resto.
Kaore já conhecia o protocolo. O código internacional
proibia a neutralização de seres humanos com o uso de
drones. Entretanto, assim que as questões de caráter humanal
se encerravam, eram os pequenos robôs voadores que
varriam a área para coletar evidências e implantar novos
sensores. Ela caminhou em direção à nave e viu o enxame de
drones vindo fazer o trabalho, causando um zumbido alto e
incômodo. Quando chegou ao veículo, encontrou Zac sentado
na beira do prédio.
— Belo tiro — elogiou.
— Eu hesitei — Kaore respondeu, chateada. — A comandante
percebeu.
— Relaxe, é normal. Você ainda está se adaptando.
Kaore sentou ao lado dele, sentindo-se desconfortável.
Não era a primeira pessoa que neutralizava, mas a vítima
de hoje a deixou incomodada por uma razão desconhecida. A
memória do relatório que espiou mais cedo voltou aos seus
pensamentos. “RONA”, repetiu ela enquanto olhava para o
punho coberto do uniforme. Sabia que por baixo da armadura
havia a mesma sigla gravada.
— Você sabe o que é o artigo 447? — ela perguntou.
Zac balançou a cabeça, sinalizando que não.
— São muitas leis — ele disse —, muitas siglas e números.
Deixo essa parte para a comandante.
Naquele instante, ouviram o zumbido perturbador
das hélices e viram o enxame de drones retornando. Os robôs
voadores se auto-organizaram e embarcaram no compartimento
de carga da aeronave. Seria perfeitamente costumeira
aquela cena, se não fossem quatro drones especiais,
mais robustos, carregando uma caixa grande e lacrada. Dentro
do capacete, Kaore franziu a testa e olhou para Zac para
ver se o colega também estava curioso. Porém, o rapaz estava
distraído, ouvindo música, e ignorou a chegada dos robôs
voadores. Assim que a comandante e o sargento retornaram,
imergiram na nave e decolaram com um lampejo.
• • •
Livraram-se das armaduras nas mesmas cabines de
horas atrás. Quando a agulha se aproximou do orifício em
seu braço, Kaore apertou o botão e cancelou a aplicação de
meta-serotonina. Detestava a ideia de que era um camundongo
ganhando uma recompensa após realizar uma tarefa
bem sucedida. Zac e os outros pareciam não se importar e
saíam de suas cabines sorridentes, como se estivessem embriagados.
Depois de trancarem suas armas em um cofre embutido
na parede, saíram em direção aos dormitórios. Apenas
Kaore ficou na zona de embarque, observando os drones
depositarem pequenas caixas em uma esteira abaixo da plataforma
em que estavam. A última que transportaram foi a
caixa maior, e Kaore acompanhou intrigada quando a levaram
pelo grande vão do hangar até o outro lado da estação
militar, desviando-se habilmente de outros drones e naves
que circulavam por ali. Ela acionou a aproximação digital de
sua lente de contato e espiou quando uma comporta distante
se abriu para permitir a entrada dos drones. Olhou ao redor
para procurar alguma pista e viu a cruz vermelha em uma
janela. “A divisão hospitalar”, concluiu.
Kaore voltou para o quarto depois de mais um banho
rápido e deitou-se na cama. Fechou os olhos e começou a navegar
pela internet através das lentes de contato. A primeira
coisa que buscou foi o código internacional de sobrevivência
da espécie — o CISE. Ela rolava o documento com impaciência,
tentando encontrar o artigo 447. Quando finalmente
alcançou a página, moveu os lábios, lendo as palavras em silêncio:
“Inseminação embrionária intrauterina através da
fertilização por meio de cópula natural não autorizada, não
supervisionada e sem a devida pesquisa e modificação gené-
tica. Imputação de crime por elevar o risco social. Reprodução
Orgânica Não Autorizada (RONA).”
O estômago de Kaore se revirou, e ela olhou assustada
para a tatuagem em seu punho. Carregava aquela sigla
desde pequena e nunca tivera a curiosidade de pesquisar seu
significado ou origem. Perguntava-se se aquele desinteresse
não seria fruto do excesso de meta-serotonina que lhe aplicavam.
Lembrou-se da caixa que os drones descarregaram e
decidiu que precisava saber o que havia dentro dela.
O interfone do quarto tocou e ela se assustou com
a voz de Zac lhe chamando. De longe, abriu a porta e viu
o rapaz com uma calça larga e uma camiseta sem manga. A
camuflagem digital cobria sua face biônica com uma textura
idêntica à da pele, e Zac escolhera a íris de um felino para
decorar o olho artificial.
— Vou na cidade espairecer — ele falou, exibindo a
chave eletrônica do carro. — Quer ir comigo?
Kaore caminhou até ele em silêncio, agarrou-o pela
camisa sem mangas e o beijou de surpresa. Quando o soltou,
Zac olhava para ela espantado, com a bochecha humana rosada.
— Preciso da sua ajuda — sussurrou para ele.
• • •
Zac foi na frente, usando os sensores de olho biônico
para verificar se havia alguém por perto. Caminhavam agachados
entre tubulações e dutos de ventilação no pavimento
de manutenção que ficava entre os andares habitados da estação
militar.
— Isso pode nos colocar na cadeia — Zac sussurrou
para Kaore.
A jovem apenas fez sinal para seguirem adiante. Na
ala hospitalar, Kaore perguntou:
— Preciso que localize a caixa. Você tem ressonância?
— E se detectarem o sinal? Vão nos pegar!
— Larga de ser medroso. Aqui dentro não vão suspeitar
de nada.
Um pouco a contragosto, Zac acionou o equipamento
e começou a mapear o andar embaixo deles. Compartilhou
o vídeo do resultado com Kaore, que começou a analisar
as imagens em alta resolução. Ela explorou cada cômodo
da ala hospitalar até encontrar a caixa que os drones haviam
trazido. Puxou Zac pelo punho e avançaram naquela direção.
Kaore se debruçou em uma fresta da calha de iluminação
da sala abaixo. Havia algumas pessoas conversando, e
ela viu a caixa misteriosa aberta e vazia sobre a mesa.
— Os relatórios genéticos não mostraram nada grave.
Risco de câncer abaixo de um por cento. Propensão a miopia
e glaucoma.
— Podemos substituir os globos oculares — falou outro
homem, tomando nota em um dispositivo eletrônico.
O primeiro homem concordou com um aceno e voltou
a dizer:
— A análise musculoesquelética indica baixa estatura
e propensão a desgaste nos ligamentos do ombro.
— OK. Substituição do equipamento articulado ósseo
dos membros superiores — o outro homem balbuciou
enquanto digitavam no equipamento — e terapia hormonal
de crescimento.
Kaore ouviu um grito agudo e lembrou-se do momento
em que neutralizara o humano na missão mais cedo.
O berro estridente era insistente e ela engatinhou na direção
do som. Deslocou-se para a calha de iluminação de outra sala
e observou pela fresta o que estava causando aquele estardalhaço
incômodo.
— Um bebê — sussurrou Zac, com a voz embargada
de espanto.
Kaore nunca tinha visto uma cria humana e ficou admirada.
A criança chorava aflita, recusando o objeto cheio
de leite que tentavam lhe colocar na boca. “Sente saudades
da mãe”, pensou, o peso da culpa esmagando-lhe os ombros.
— O que está escrito no bracinho? — Kaore cochichou
para Zac.
Depois que ele ajustou o olho biônico, ela leu no vídeo
compartilhado:
RONA-0017954
Kaore tomou uma decisão. Virou-se para Zac outra
vez e disse:
— Obrigada.
Então o beijou uma segunda vez. O rapaz se derreteu,
novamente surpreso, e respondeu o afago. Sem que ele notasse,
Kaore deslizou os dedos pela nuca de Zac e apertou o
pequeno botão perto da orelha dele. Ela o manteve pressionado
por cinco segundos até ver o sistema nervoso artificial
do colega se desligar e o corpo cair em seus braços. Deitou
Zac no chão sujo e sussurrou um singelo pedido de desculpas.
Depois, surrupiou a chave do carro e a pequena pistola
que ele escondia dentro das calças.
Com um chute certeiro, Kaore destruiu a calha de
iluminação e saltou para a sala do hospital. Os funcionários
gritaram assustados com a escuridão repentina e o barulho
inesperado. A soldada arrebatou o bebê no colo, ainda envolto
nos panos do berço, e apontou a pistola para as enfermeiras
assustadas. “Quantos segundos até a segurança chegar?”,
ponderou ela.
— Dê-me isso — Kaore pediu enquanto apontava a
arma para a pequena garrafa cheia de leite que ela desconhecia
o nome.
Assim que a enfermeira lhe deu a mamadeira, Kaore
correu pelo corredor numa velocidade surpreendente, satisfeita
com o desempenho de suas pernas mecânicas de última
geração. Ela usava o mapa resultante da ressonância que Zac
havia feito e que copiara para si. Escutou os gritos alarmados
já distantes. Embora soubesse que ninguém a alcançaria,
precisava fugir antes que ordenassem o bloqueio das saídas.
Voltou para o seu setor, correu até as garagens e entrou
no carro de Zac. O bebê pareceu se acalmar com o passeio
em alta velocidade. Kaore aconchegou a cria no seu colo
e teve a impressão de que o bebê sorria para ela. Ativou as
turbinas e partiu.