Prólogo
Epílogo
Conto
Desde criança, ao olhar para o céu, meus olhos se
encantavam com os helicópteros e os drones que sobrevoavam
a favela. Havia algo de maravilhoso, mágico, naquelas
máquinas acima de nossas cabeças, principalmente à noite.
Mas um dia, dos céus, dos objetos que eu tanto adorava
olhar a passagem, vieram fogo e morte.
Na época, não tinha como eu saber o que estava em
jogo. Hoje, sei que foi mais do que uma questão política.
Muita gente imaginou que o prefeito, pressionado
pelas empresas ou querendo agradar aos empresários, sancionou
leis duras de higienização.
Primeiro, policiais e bombeiros varreram das ruas
dos bairros nobres e de classe média os drogados; houve
inúmeras comemorações, mas também houve pequenas manifestações
dos direitos humanos, exigindo que as pessoas
removidas das calçadas e casas abandonadas fossem levadas
a centros de saúde especializados no tratamento de dependentes
químicos. No fim, ninguém nunca soube para onde
foi tanta gente — e nem mesmo a oposição política pareceu
preocupada em descobrir.
A seguir, muralhas foram erguidas, separando a cidade
das favelas. Medida polêmica, mas que encontrou apoio
popular absurdo. E a elite da cidade, claro, comprou muitos
apoios também. Foi durante essa etapa que chegaram o maquinário.
O projeto era nos cercar, impedindo que saíssemos ou
entrássemos. Então, antes de a muralha ser completamente
levantada, agentes da prefeitura começaram a nos “catalogar”
e controlar nossas idas e vindas. As demissões começaram:
de início, um ou dois dos moradores da favela por dia; em
uma semana, chegavam a quase trinta; no final do mês, eram
todos. Os homens, todavia, logo foram contratados para
trabalhar na construção do governo; salário baixo, condição
quase escrava, vigilância de robôs e androides-policiais; não
foram raros os casos de gente morrendo de exaustão ou acidente
de trabalho — e de famílias desesperadas, sentindo o
aperto da fome e as mazelas da injustiça.
Enquanto os adultos discutiam em assembleias as severas
mudanças, nós dávamos um jeito de ir espiar a construção
dos imensos muros que nos separaríamos do resto do
mundo. Ficávamos escondidos em terrenos baldios ou até
mesmo em cima das lajes de casas próximas. Samuel gostava
dos robôs, que eram grandões e mais lentos; ele nos explicava
— como se entendesse do que falava — que eram modelos
semelhantes aos entregados nas guerras nos países lá fora.
— Os Estados Unidos usam eles em diversos lugares
— dizia. — São excelentes para exploração e invasão. Vejam
os quatro braços! Os de cima, maiores, servem pra armas
pesadas e para derrubar ou vasculhar coisas bem, mas bem
grandes, sabe? Os de baixo, menores, costumam carregar fuzis
e metralhadoras. Tudo controlado por um piloto que fica
em segurança, numa salinha. Antigamente, segundo meu
pai, o piloto ficava lá dentro, todo apertado.
— Um dia, ainda vão usar robôs desse tipo para construir
as coisas — falou Josias.
— Já usam. Não aqui, pois tem... como é mesmo que
se chama?
— Mão-de-obra, Carlos — respondi.
— Isso! Mão-de-obra! Estão botando os moradores
para trabalhar. É mais barato que trazer todo o equipamento,
pois já devem estar gastando uma fortuna com a segurança.
Tínhamos, naquela época, entre doze e quinze anos.
Eu era o mais novo. Ainda não sentíamos totalmente os impactos
das cruéis mudanças impostas em nossa comunidade.
Víamos homens e mulheres comentando, o traficante e o
miliciano viviam propondo soluções aqui e ali, mas parecia
que o tempo de eles exercerem o poder tinha passado;
a prefeitura estava determinada a seguir em seu plano de
higienização. Pela televisão, acompanhávamos aquilo que o
governo queria que o resto do Brasil soubesse: não era uma
segregação, não era uma eugenia, era uma medida para oferecer
melhores condições de vida para os dois lados da muralha.
Minha mãe afirmava que as palavras ditas pelo prefeito,
um homem de boa conversa e aparência elegante, eram um
amontoado de mentiras e quem acreditasse naquilo tudo era,
no mínimo, trouxa.
A tensão ocorreu quase um ano depois do início das
obras.
Zé Fumaça, o traficante mais famoso de nossa favela,
não estava feliz com as perdas consecutivas de renda. Os moleques
dos bairros ricos, filhos de empresários e até mesmo
empresários, haviam parado de comprar maconha, cocaína e
outros entorpecentes; o que era vendido na favela mal pagava
os empregados.
Atacaram à noite, quando menos da metade do maquinário
estava em operação. Muitos homens morreram,
porém Zé conseguiu se apossar de alguns robôs e uma dúzia
ou mais de androides. Os caminhões transportaram tudo
para seu esconderijo, que ninguém sabia onde ficava — e
nem as batidas policiais conseguiram localizar.
Foi como um chamado para a guerra civil.
A opinião pública nem precisou ser comprada ou
manipulada. Ninguém que considerava cidadão de bem gostava
de bandido afrontando a ordem e o progresso, ainda
mais sendo um traficante de uma favela tida há muito tempo
como um incômodo social.
Dos drones e dos helicópteros que antes sobrevoavam
a comunidade apenas para monitoramento, veículos
que me faziam sonhar com a liberdade que em breve a muralha
me tomaria, veio a morte. Não foram as luzes que piscavam
em vermelho, azul e amarelo que vimos naquela noite.
Alguns, claro, sequer viram o que eu e meus amigos vimos.
As bombas explodiram sobrados, destroçaram ruas
e mataram muitos moradores. Os que conseguiram escapar
do bombardeio causado pelos drones, coitados, mal tiveram
chance de nutrir qualquer esperança de fuga: atiradores de
elite estavam nos helicópteros e, precisos e letais, não deixaram
ninguém fugir.
Pela manhã, os telejornais noticiariam a notícia já
pronta antes do extermínio. Até a quantidade de mortos já
estava determinada. As crianças foram efeito colateral da
guerra ao tráfico; poucas pessoas sentiriam pena de filhos
de bandidos. O mundo se chocaria por uma semana ou duas,
mas depois focaria em seus próprios problemas. O pobre
brasileiro, portanto, era o menor dos temas de países capitalistas
tão bem desenvolvidos.
Eu só tomaria conhecimento dos dias seguintes muito
tempo depois.
Por ora, parte de mim morreu contemplando as luzes
piscando, luz, vermelho — como meu sangue —, amarela e
laranja — queimando um céu negro.
• • •
“Somos a resistência.”
Foi com essa frase que minha segunda vida começou.
“Vida” é um termo genérico e bastante vago para o
que me tornei, mas uma parcela de mim ainda vivia dentro
da máquina que escolheram para abrigar o que se salvou de
meu corpo.
Fui achado moribundo pelos milicianos. Um dos
poucos que sobreviveram num estado de quase morte.
Por dias, ficamos no limbo da existência, nem mortos,
nem vivos, sendo cuidados por cientistas que residiam
na favela destruída. Zé Fumaça e Fábio, o chefe da milícia,
entraram num acordo de cooperação mútua nunca antes
imaginado. Financiaram pesquisas, apoderam-se de maquinário
e acompanharam o desenvolvimento de uma tecnologia
completamente experimental.
Os que foram achados ainda vivos lá em cima foram
as cobaias.
Inclusive eu.
Na verdade, fui o único que teve a sorte de ser transformado
em ciborgue. Não havia mais outro sobrevivente
tão bem preservado, com o cérebro intacto e o corpo com
percentual suficiente para não ser enclausurado completamente
num robô ou num androide. Josias, por exemplo,
acabou como androide e teve sua capacidade cerebral tão
ampliada que ganhou espaço na oficina, onde ajudou ativamente
a aprimorar modelos e melhorar armamento. Uma
moça, cujo nome nunca descobri, tornou-se um dos potentes
robôs de artilharia.
Por ser meio homem, meio máquina, coube a mim
a liderança da tropa. Nunca tive a menor aptidão para tal
função, mas éramos a resistência — como o tempo todo a
programação nos lembrava, todos no complexo subterrâneo
deixam claro e eu já acreditava. Lutávamos por uma causa
maior do que nossas existências. Lá fora, ainda havia favelas
sofrendo com as construções das muralhas — após o “incidente”
conosco, ficou “evidente” para todos que todas as
favelas brasileiras precisavam ser isoladas e, se necessário,
expurgadas.
A lei antes municipal galgou a passos largos para a
escala federal.
Ainda estávamos na fase de planejamentos e aprimoramentos
quando, certa manhã, Josias me procurou em
meu quarto. Ainda que fosse um androide e não possuísse
qualquer emoção, havia um tom de excitação em sua voz
eletrônica.
— Escute-me! — pediu. — Estamos vivendo uma farsa.
— Como assim?
— Não vamos ser resistência contra nada! É tudo
uma farsa!
— JS01, explica essa merda direito!
A explicação era simples: o acordo entre o traficante
e o miliciano envolvia também o prefeito.
— Filhos da puta! — esbravejei.
Minha parte humana ainda tinha todas as emoções,
mas a frieza da máquina prevaleceu.
— Você é nosso líder — falou JSOI, ou Josias. — Deve
decidir o que faremos. Nossa programação é lutar contra a
tirania e obedecer ao seu chamado.
— Os demais já sabem?
— Os androides, sim. Os robôs ainda não por serem
máquinas menos racionais, mas acredito que nos seguirão.
— Haverá um treinamento hoje à tarde. Usaremos
armas letais. Desative as diretrizes de não ferir os humanos
do complexo. Corte as comunicações externas, igual cortaram
as da nossa comunidade. Vamos dar a esses filhos da
puta o mesmo tratamento que nos deram.
O salão de treinamento era largo. Pela primeira vez,
questionei seu tamanho e como parecia tão bem construído.
Tinha um quê militar, governamental; não era uma simples
gambiarra de um grupo de milicianos. Na verdade, tudo ali
era luxuoso e limpo, belo e caro.
Como nunca prestei atenção a nada disso? Estava tão
cego em agradecer aqueles que — supostamente — me salvaram
que não percebi a discrepância entre nossa vida na
favela e a que bancou aquele complexo?
Sim, estava.
JS01 era mais esperto do que aparentava. E estava tão
determinado quanto eu a pôr um fim naquela farsa. Motivos?
Não tínhamos. Éramos apenas máquinas, resquícios do
que um dia foram garotos que soltavam pipa em cima das
lajes e sonhavam com seguir a carreira, com sorte, de cantor
de funk. Mas estávamos convictos de que devíamos essa
vingança a cada um que não chegou ali — nossos pais, nossos
amigos, nossos vizinhos, nossos irmãos.
Não notei a mesma determinação vingativa nos outros
androides. Eles pareciam tão frios, tão insensíveis à dor
que nos foi causada...
Como podiam ser assim?
Nossa comunidade foi usada como experiência social,
milhares de pessoas sendo cobaias para a criação de biotecnologia
proibida. Servimos como protótipos para a criação
de soldados perfeitos, uma vez que uma inteligência artificial
não poderia tomar decisões e executar determinadas ações
que somente a mente humana era capaz.
E ainda assim, frios e insensíveis, todos eles testavam
o equipamento diante dos olhares empolgados e aprovadores
dos homens e das mulheres que armaram para nós!
Senti a sensação de derrota em cada parte de meu
corpo biomecânico. Lutar, sem o apoio ao menos dos androides,
não me levaria a lugar nenhum; era um cálculo matemático
e lógico tão certo que sufocou toda a revolta que
meu cérebro humano nutria. Então, derrotado pelas probabilidades,
fiz os testes normalmente, com extrema precisão.
Notei alguns gesticulando em minha direção, enquanto sussurravam
entre si. Com certeza eu era um sucesso entre as
cobaias.
A seguir, os robôs foram testados. Imensos, eram
como besouros antropomórficos de metal. A eles cabiam as
armas mais pesadas, as bazucas, as gigantescas metralhadoras
giratórias. Eram lentos, porém letais em seu poder de fogo.
Nem dez androides derrubariam um colosso daquele!
Abaixei os olhos — o direito ainda era humano, castanho-
escuro; o outro, infravermelho —, cogitando se viveria
na farsa ou morreria defendendo a verdade.
Uma explosão.
Ergui a cabeça. Onde antes estava um pequeno grupo
de milicianos restava apenas corpos despedaçados e muito
sangue e fogo. Um dos robôs disparou uma granada antes
que alguém compreendesse sua intenção. Os demais, posicionando
em um círculo, protegiam os androides.
— Somos a resistência! — bradaram todas as máquinas
de combate.
— Sim! — gritei, eufórico, em resposta. — Somos a
resistência!
Agarrei dois facões, que eram os objetos letais mais
próximos de mim, e pulei sobre homens armados com fuzis.
Minhas pernas robóticas eram poderosas e firmes, o salto foi
alto e as lâminas desceram cortando braços; chutei o joelho
de um, golpeei com meu cotovelo o crânio de outro e concluí
minha investida em pose de um dos fuzis.
Os outros androides, comandados por JS01, derrubavam
humanos indiscriminadamente. Eram exímios atiradores
e formidáveis lutadores.
— Fábio e Zé Fumaça! — exclamou JS01, apontando
para dois sujeitos que escapavam por uma porta.
Assenti.
A rota de fuga era conhecida. Não foi difícil chegar
até eles.
Zé foi o primeiro que alcancei. Segurança um bastão
de choque. Tentou me acertar duas vezes, desviei, desarmei-
-o. não previ ele sacar a pistola e tentar me acertar na barriga.
Tiro à queima-roupa. A bala ficou presa na couraça metálica.
Meu soco foi fatal: atingi o pescoço, ossos se quebraram, o
traficante morreu sufocado pelo sangue e pela falta de ar.
— Parado aí! — gritou Fábio ao me ver me aproximar.
Ele estava ainda no primeiro degrau da escada que o
levaria para a superfície.
— Parado ou eu explodo tudo! — tornou a gritar,
mostrando um celular.
— Você é humano. Tem apego à vida. Não vai se matar.
O miliciano pareceu hesitar um pouco, mas estava
com medo. Muito medo. Perder o controle da situação fazia
qualquer homem, por mais corajoso que se achasse, a se sentir
um animal indefeso e acuado.
— A gente salvou vocês, porra! — esbravejou. — Vocês
o que são por nossa causa! E é assim que nos agradece?
Sorri.
— Claro que não. Quero agradecer de outra forma
— respondi.
Tudo se concluiu em três momentos. Andei em sua
direção. Ele deu um grito desesperado e apertou o botão do
aplicativo. E não houve explosão.
• • •
— E agora?
— Não sei, Josias.
Estávamos de pé sobre o que sobrou de uma casa com
laje. Era noite e víamos, lá longe, abaixo do morro, as luzes
da cidade cheia de humanos. Na favela arrasada por bombas,
apenas os grilos cantavam entre os escombros. Quase dois
anos haviam se passado. A muralha não foi concluída, mas
era alta o suficiente para intimidar excursões tanto de lá para
cá quanto de cá para lá, se houvesse alguém tentando viver
em meio ao cenário de destruição e morte.
— Não vai demorar muito para perceberem o que
houve lá embaixo — falou o androide. — Podemos trabalhar
para escavar novos túneis, achar outro abrigo...
— E continuarmos nos escondendo? — inquiri, encarando-
o.
— O que sugere?
— Temos o cérebro ainda vivo do Fábio. Podemos
arrancar informações. Achar outros como nós, reuni-los em
prol de nossa causa. Somos a resistência, não somos?
JS01 ficou alguns segundos em silêncio, processando
as informações.
Minha pele humana sentia o frio da noite. Olhei para
o céu. Sem luzes coloridas, sem estrelas.
— E qual é a nossa causa? — perguntou ele, por fim.
— O extermínio da raça humana.