Sinopse
Estamos preparando e revisando este conto, em breve o publicaremos aqui. :DMemórias são aquilo que nos fazem ser quem somos, elas forjam nossa realidade e fazem com que sejamos vivos todos os dias. Elas fazem de nós seres capazes de compartilhar o que a vida nos ensinou, mas o que acontce se elas são tomadas de nós para sempre?
Prólogo
Epílogo
Conto
Absolutamente ninguém notara o vulto cinzento cruzando os corredores limpos e adentrando o quarto hospitalar, atravessando o limiar fechado como se seu corpo fosse feito de alguma substância imaterial. Nem mesmo a enfermeira, que checava uma última vez os aparelhos do paciente que dera entrada dois meses antes, trazido pela família, apercebera-se da vinda do estranho recém-chegado, que a observava trabalhar. Assegurando-se de que tudo estava em seus devidos conformes, a mulher uniformizada finalmente partiu, apagando a luz atrás de si e deixando o velho Haskel Ostapiej tal como o encontrara: repousado em profundo estado de coma – do qual nenhum dos médicos que o consultaram sabia ao certo se algum dia sairia.
Encarando o homem deitado na cama de lençóis claros com seus grandes olhos de íris completamente brancas, o misterioso ser estalou a língua, como se com ela sentisse o ar do ambiente, aspirando o forte odor de álcool e produtos de desinfecção presentes na sala. Sem nunca desviar o olhar do homem inconsciente, a criatura buscou algo com suas garras longas dentro do manto que trajava, uma espécie de capa de penas brancas, pretas e cinzas. Quando sua mão voltou do interior de sua peculiar vestimenta, ela segurava um molho de chaves – não chaves do tipo comum, nos típicos formatos encontrados tão facilmente nas fechaduras polonesas, que Haskel Ostapiej provavelmente reconheceria de pronto, mas exemplares extraordinários, de uma feitura única, impossível de se encontrar em qualquer lugar na dimensão humana. Presas por um grande e fino aro de pedra, as elaboradas peças metálicas rebrilhavam à luz dos monitores ao lado do leito, cada qual tão diferentes entre si quanto poderiam ser. A estranha figura então, habilmente selecionando uma feita em chumbo com uma gema de quartzo cravada em sua base grossa e estrutura ondulada, apontou-a diretamente para a cabeça de Haskel. De repente, respondendo ao movimento do objeto, emergindo entre os cabelos grisalhos do velho operário das linhas do trem, um pequeno feixe de luz surgiu, à princípio do tamanho de uma fechadura, mas depois aumentando, até assumir a forma de um limiar extravagantemente enfeitado, repleto de curvas como o desenho de uma criança, a primeira porta: a Porta da Felicidade. Girando a chave num gesto delicado do pulso macilento, o Mnemófago desapareceu, instantaneamente teleportado para seu interior.
Quando viu-se num belo parque gramado, perante um banco de mármore, olhando uma jovem e formosa mulher empurrando de volta um carrinho de brinquedo a um garoto de seis anos de idade, que ria ruidosamente em seu gorro azul, ele não precisava que lhe dissessem que aquela criança alegre era ninguém menos que o próprio Haskel, revivendo sua lembrança mais feliz ao lado da mãe, que meses depois daquele dia sofreria um grave acidente, perdendo ambas as pernas numa das linhas ferroviárias da estação central de Varsóvia. Encarando a criança sorridente como se quisesse gravar seu rosto para a eternidade, o Mnemófago levantou seu fino braço para o alto, elevando a chave com o quartzo como se ostentasse uma espécie de troféu. Estalando a língua bifurcada para fora do grosso bico que era sua boca, todo o cenário começou a dissolver-se, quebrando-se em mil fragmentos, como um espelho se partindo. Num piscar de olhos, nada mais restava daquela memória, inteiramente consumida pela criatura.
Quando tudo se apagara e a paisagem fora substituída por um manto de trevas, um feixe de luz refulgiu, vindo de uma rachadura no teto negro, dando origem a uma nova porta, uma que o Mnemófago particularmente conhecia muito bem. Escolhendo uma chave de prata com um rubi, cravejada por cerdas espinhosas de aparência hostil, a entidade cruzou o limiar deformado daquela que era a Porta do Trauma.
Uma lareira singela queimava num canto do quarto cinzento e desarrumado, que rescindia a um forte cheiro de mofo e sujeira humana. Na cômoda, ampolas vazias de morfina jaziam espalhadas, entre roupas usadas e toda a sorte de utensílios e louça por lavar. Estendida entres os lenções, com grossas suturas nos cotos onde deveriam estar suas pernas e marcas de lágrimas secas nos olhos fundos, Ksenia Ostapiej, mãe de Haskel, jazia desacordada e inalcançável ao mundo – ao mundo e ao seu pequeno filho, que a observava desamparado aos pés da cama.
Repetindo o processo que realizara anteriormente, o Mnemófago estendeu sua chave e fez com que todo o cenário desaparecesse, escoando para sua bicanca aberta como grãos de areia escoando por uma ampulheta.
Selecionando então uma chave de ouro enfeitada como uma polida ametista, a criatura abriu aquela que seria a Porta do Amor, encontrando agora não mais uma versão infantil de Haskel, mas já um rapaz no auge de sua juventude, revivendo o dia que levara Ewa – a garota que anos depois concordaria em ser sua esposa – para um passeio romântico no parque temático de Magiczne Ogrody, realizando seu sonho de infância, mesmo ele secretamente detestando os brinquedos pueris do lugar, e que a moça fazia questão de experimentar.
Esse pequeno reino do amor, que abrigava não somente esta memória, como muitas outras ao lado uma Ewa mulher, uma Ewa mãe e uma Ewa avó, demorou-se mais para desaparecer, ainda se prendendo a ele alguns teimosos momentos de alegria, que não haviam sido sugados completamente da primeira vez, deixando, finalmente, apenas um conjunto escasso de Portas para o banquete do Mnemófago.
O Mnemófago certamente poderia escolher um portal mais branda, que trancado ou ausente não fosse tão essencial, mas, talvez tocado por um inusual sentimento de misericórdia – ou simplesmente satisfeito –, o misterioso ser avicular decidiu-se por escancarar a pesada Porta da Tristeza, desfechando-a com uma grossa chave de ferro, onde uma rústica ônix exibia-se, rachada.
Atravessando o limiar sombrio, a criatura viu-se diante de um Haskel agora já envelhecido pelos anos, com três filhos que mudaram-se para longe, indiferentes à família, e que para pagar o tratamento de sua esposa cada vez mais doente obrigava-se, em vista de sua aposentadoria de valor insuficiente, a trabalhar no único local que o aceitara, devido sua idade avançada – como zelador noturno das mesmas linhas de trem que destruíram a vida de sua mãe, muitos anos antes.
Enquanto alimentava-se de copiosos desgostos e mágoas, o Mnemófago analisava com atenção a figura fragilizada de Haskel Ostapiej, assistindo suas feições antes carregadas pela angústia modificarem-se numa expressão de paz, pois nada mais o prendia ao seu corpo físico, nenhuma pendência, nenhum assunto inacabado – e ele finalmente estava livre.
Quando os aparelhos que mantinham o velho homem vivo eventualmente informaram seu falecimento, o Mnemófago deixou a sala, andando calmamente até o outro lado do corredor hospitalar para uma sala exatamente igual a anterior, na qual seu residente compadecia de condições semelhantes à Haskel. No prontuário ao lado do leito, lia-se o nome do paciente: Ewa Ostapiej.