Prólogo
Epílogo
Conto
Eu ensaiava Romeu e Julieta quando vi a face da Morte pela primeira vez. Adam, meu companheiro de cena, não pareceu notar a aflição que se apossou de minha expressão naquele momento — se a percebeu, certamente pensou que se tratava de mais uma das reações exageradas de minha versão de Julieta Capuleto.
A Morte se apresentou a mim de modo súbito, e em nada se parecia com a figura esquelética representada nas histórias ao longo dos séculos. Pelo contrário, tinha o aspecto de algo singelo e banal, um animal muitas vezes tido como símbolo de paz e prosperidade: uma borboleta branca.
Quando Adam me girou em seus braços enquanto declamava a fala que lhe competia dizer, eu a vi. Estava pousada sobre a cortina vermelha do teatro, imóvel e agourenta, e logo que pus os olhos em suas asas de cor clara um arrepio subiu por minha espinha dorsal. Foi como se uma voz soprasse ao meu ouvido, dizendo que meu tempo sobre a Terra estava contado, e um número se desenhou com clareza em minha mente, como se tivesse sido gravado nela de próprio punho por alguma força sobrenatural que me era desconhecida até então.
Três. Dentro de três dias, a Morte viria me buscar.
Terminado o ensaio, saí do teatro rapidamente, evitando meus colegas enquanto eles se reuniam para acertar os detalhes do espetáculo. Quando entrei em meu carro e dei a partida, minhas mãos estavam trêmulas sobre o volante. Segui até o apartamento que dividia com meu irmão por um atalho através de ruas menos movimentadas, onde havia poucos semáforos e quase nenhum pedestre à vista nas calçadas cobertas de folhas secas. O outono chegara mais cedo, de modo tão precoce quanto o anúncio de minha morte iminente.
Quando finalmente cheguei ao pequeno apartamento no segundo andar da rua Barrow, corri para os braços de meu irmão que, confuso, não soube como me confortar da aflição que me emudecia. Ele me envolveu num abraço forte e aguardou que eu fosse capaz de exprimir meus pensamentos com clareza.
— Mark — falei, por fim —, eu vou morrer.
Senti que seus braços se tornaram rígidos ao redor de meu corpo, como se, numa reação instintiva, ele tentasse me proteger de todo o mal. Mark e eu éramos dotados de uma sensibilidade com relação à natureza e ao mundo ao nosso redor; alguns diriam que éramos “bruxos” ou “sensitivos”, outros talvez nos acusassem de práticas demoníacas. O fato era que, desde nossa infância, estávamos muito além de ser pessoas normais.
— Como sabe disso? — ele perguntou com os lábios sobre os cabelos que me toldavam parcialmente a visão.
— Eu a vi — respondi. — Eu vi a Morte, Mark.
— Tem certeza de que era ela? — Meu irmão sempre foi um tanto teimoso, e costumava se recusar a acreditar em informações que não eram de seu agrado.
— Você também teria se a tivesse visto. — Movida por uma súbita impaciência, desvencilhei-me de seu abraço e fui até a janela, mirando a rua que se estendia logo abaixo.
Um casal passeava de mãos dadas, ambos com casacos quentes e echarpes envolvendo os pescoços. Aquela visão me trouxe uma sensação desagradável, o que fez com que me virasse novamente para meu irmão enquanto, ansiosa, torcia os dedos num aperto forte.
— O que você sugere? — exteriorizei a pergunta ansiosa que estava presa em minha garganta.
Mark sempre se mostrara melhor do que eu na resolução de problemas, e eu estava quase certa de que ele pensaria em um meio de driblar a situação na qual eu me encontrava. A ideia de morrer nunca me deixou amedrontada, até que a possibilidade se tornou real, dançando diante de meus olhos com uma nitidez que era ao mesmo tempo assustadora e magnética, difícil de se ignorar. Eu não estava disposta a comprovar as teorias de Epicuro, no entanto, eu pretendia me agarrar à vida com todas as minhas forças, fazendo uso de todos os artifícios que estivessem ao meu alcance.
— Vamos enganá-la — disse meu irmão simplesmente. Ele usava um pulôver preto e tinha a postura de quem conhecia segredos do universo que não eram revelados a qualquer mortal. Sempre admirei a certeza que parecia ter sobre todas as coisas, assim como o modo decidido com que pensava e agia, mas naquele momento sua ideia me pareceu abstrata demais, quase superficial.
— E como pretende fazer isso? — indaguei, desconfiada.
Mark desviou o olhar, mirando o chão entre nós. Ele costumava fazer isso quando queria evitar que seus pensamentos ou ideias fossem postos a julgamento. Naquele momento, contudo, eu não estava disposta a julgá-lo, apenas a ouvir qualquer sugestão que se mostrasse útil diante da velocidade com que a areia dos meus dias escorria pela ampulheta da Morte.
— A Morte precisa de uma alma — observou Mark, e pude notar que uma ruga de reflexão surgiu entre seus olhos que eram tão azuis quanto os meus. — Vamos dar isso a ela.
Ponderei durante um breve momento.
— Quem? — Deixei que a pergunta ganhasse o ar por mera formalidade, afinal ambos sabíamos qual seria a alma escolhida a fim de substituir a minha rumo ao além-vida.
Com um aceno mútuo de cabeça, concordamos sem que um nome precisasse ser dito em voz alta. Começava naquele instante a nossa missão, que consistia em algo simples, porém incerto e perigoso: virar a ampulheta da Morte.
Primeiro Dia
A Morte apareceu novamente para mim, mas em sonho. O pesadelo fez com que eu despertasse em plena madrugada e, virando-me na cama que dividia com meu irmão, sacudisse seu corpo com firmeza. Ao acordar e ouvir minha respiração ruidosa, Mark me envolveu em seus braços e sussurrou palavras de alento ao meu ouvido. Não pude ouvi-las com clareza, afinal, a borboleta branca ainda rondava minha mente, impedindo-me de absorver o que me era dito.
O fantasma da morte se tornou mais presente em minha consciência naquele dia. Eu não era capaz de me concentrar plenamente nos textos que tinha de decorar, e não conseguia me sentir protegida sem Mark por perto. Ele se manteve ausente durante boa parte da manhã e, quando retornou ao apartamento, tinha em mãos um saco de papel que não permitia divisar seu conteúdo.
— Isolda — chamou-me enquanto ia até nosso quarto e fechava as cortinas de tecido vaporoso, deixando que o ambiente imergisse em meia-luz —, ajude-me com isso.
Segui-o para o quarto, onde nos sentamos sobre a cama e avaliamos os itens por ele trazidos. Havia sal, folhas de mirra, uma pedra de aspecto áspero e um pequeno vidro com um líquido transparente.
— Tire suas roupas — pediu ele.
Eu prontamente obedeci. Não havia segredos entre nós, e Mark conhecia meu corpo tão bem quanto conhecia a tragédia de Macbeth. Como atores, não tínhamos os pudores que convinha desenvolver em uma sociedade como aquela em que habitávamos, e seria compreensível que nosso comportamento horrorizasse as pessoas ditas “normais”.
Nua, deitei-me quando meu irmão pediu com um sinal que eu mantivesse a posição de repouso sobre a cama coberta com um lençol branco. Sem perder tempo, ele distribuiu por cima do meu corpo os elementos que havia trazido, colocando a pedra sobre meu umbigo, as folhas de mirra entre meus seios e um pequeno monte de sal sobre a palma de minha mão.
O líquido foi cuidadosamente espargido por toda a minha pele, umedecendo-a de modo a me provocar ligeiros arrepios. Mark se mantinha concentrado em sua tarefa, mas não pude deixar de notar a luminosidade que perpassou seus olhos quando encontraram os meus. Era claro que ele não acreditava que a Morte chegaria para mim; não naquela idade — 21 anos e alguns meses —, não enquanto ele pudesse me proteger dela.
Meu irmão era um exímio conhecedor das artes da natureza e do oculto, das forças que podiam ser usadas tanto para a cura quanto para a destruição. Evitava usá-las para o segundo propósito, salvo quando não via alternativa. Eu, ao contrário, não hesitava em utilizar os poderes que me competiam para propósitos mais frugais — conquistar o protagonismo das peças de que participava, por exemplo.
Naquele instante, ambos tínhamos nossas forças voltadas para um propósito comum. O peso do sal em minha mão era significativo, representava um bom agouro, e eu podia sentir em minhas veias a troca de energia que os minúsculos grãos mantinham com meu corpo desnudo.
Uma vez terminado nosso breve ritual, Mark depositou o sal que eu segurava dentro de um pequeno saquinho de cor escura e deu um nó na corda que o acompanhava. Um elemento ao mesmo tempo tão banal e tão precioso, que precisaria ser guardado com cuidado até o momento em que cumpriria com seu propósito.
Pondo-o no bolso interno do casaco, aquele que ficava diretamente sobre seu coração, meu irmão sorriu e, levando a mão até meus cabelos, tomou uma mecha entre os dedos e a acomodou atrás de minha orelha.
Partilhamos então do enlevo que só a esperança podia proporcionar.
Segundo Dia
Era a véspera de Romeu e Julieta, e eu estava ansiosa. Não pelo espetáculo em si, cujas falas eu tinha gravadas em minha mente com toda a clareza do mundo. Uma preocupação mais pungente se avolumava em meu espírito, afinal se aproximava a data marcada de meu encontro com aquela que para alguns poderia representar alívio e consolo, mas que para mim era nada mais do que uma indesejável visita precoce.
A Morte não se revelou para mim naquele segundo dia, mas a cor branca estava por todos os lugares. Para onde quer que eu olhasse, podia vê-la diante de meus olhos: nas flores que cresciam sob a janela do prédio ao lado, no sabonete sobre a pia do banheiro, no copo de leite que bebi pela manhã e até mesmo na camisa escolhida por meu irmão Mark.
— Não use essa — pedi, indicando a roupa que ele mal acabara de abotoar.
Por um momento, ele não soube a que eu me referia, mas logo compreendeu meu pedido. Sem hesitar, foi até o armário e trocou sua camisa, retornando à cozinha logo em seguida para tomar seu café da manhã ao meu lado.
— Você sabe o que tem de fazer — disse enquanto me olhava de modo veemente, certificando-se de que eu havia compreendido a tarefa que tinha de executar.
Assenti.
— Como tem certeza de que vai funcionar? — Não pude evitar perguntar, embora meu coração confiasse plenamente nos conhecimentos de meu irmão sobre as forças ocultas e o mundo sobrenatural.
— Ela não se oporá a uma troca. — Por “ela”, eu sabia que Mark se referia à Morte. — Precisa de uma alma, e levará uma alma. Não qualquer espírito, mas um que mantém um laço fundamental com você. Ela se dará por contente com nosso escolhido, tenha certeza disso.
Nunca invejei meu irmão por suas habilidades que eram claramente superiores às minhas, mas naquele momento o admirei por sua sabedoria. Ele falava com uma propriedade que eu estava certa de que jamais alcançaria em toda a minha vida — caso sobrevivesse ao evento que se daria no dia seguinte —, e desejei ter seus dons, ainda que apenas em parte. Os meus não se manifestavam com aquela intensidade, e muitas vezes me julguei aquém do espírito privilegiado que tinha junto a mim, considerando-me quase indigna de ser sua irmã.
— Eu tenho — disse-lhe com um pequeno sorriso. — Tenho certeza absoluta.
Terceiro Dia
Eu estava extremamente nervosa, e minha apreensão não se dava ao frio na barriga que era comum aos atores antes da representação de um espetáculo importante. Mais do que a data prevista para a encenação de Romeu e Julieta, aquele dia representava a aproximação da sombra da morte sobre meu espírito.
Apesar do conforto trazido pelo saquinho de sal que eu carregava comigo para onde quer que fosse, não podia evitar que imagens terríveis assaltassem minha mente enquanto tomava banho antes de seguir para o teatro.
A ideia de morrer me amedrontava, não pelo que eu poderia encontrar do outro lado da fronteira que separava a vida da morte, mas sim porque, após atravessá-la, seria privada da companhia de meu irmão até que chegasse sua hora de se juntar a mim mais uma vez. Eu não suportaria uma existência longe de Mark, mesmo que minha nova morada fosse o mais desejável e sublime dos paraísos.
— No que está pensando? — ele me perguntou quando nos dirigíamos ao teatro para os últimos preparativos do espetáculo que se daria naquela noite.
— Que eu não poderia viver sem você — respondi. — Nessa ou em qualquer outra vida.
Nunca deixei de exprimir meus pensamentos ou sentimentos quando estávamos a sós, e lhe confidenciei o que se passava em meu íntimo com toda a naturalidade do mundo. Mark então apertou meus dedos entre os dele e, em silêncio, caminhamos até o Pan’s Theatre de mãos dadas. Apesar da máscara de calmaria usada por meu irmão, eu podia sentir certa insegurança e temor através de seu toque. Assim como eu, ele não estava certo quanto ao desfecho do espetáculo que se daria muito em breve.
Mark se manteve em algum lugar dos bastidores enquanto eu tratava de me virar com meu figurino e a pouca maquiagem utilizada na caracterização de minha Julieta. Meus dedos estavam firmes enquanto eu cobria meu rosto com o pó que ressaltava minha palidez, e, uma vez terminados os preparativos para a peça, peguei o saquinho de tecido escuro e despejei a porção de sal sobre a palma de minha mão, fechando-a e segurando seu conteúdo com firmeza.
Era chegada a minha hora.
O teatro não estava lotado; tínhamos um público pequeno naquela noite. Tão logo pisei no palco e disse minhas primeiras falas, passei o olhar pelas cortinas vermelhas em busca da borboleta de asas brancas. Ela não estava lá, mas isso não me tranquilizou nem um pouco. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, a Morte viria me buscar.
Adam, aquele designado para ser meu Romeu, estava especialmente inspirado naquela noite, recitando suas falas de modo enérgico e apaixonado. Eu gostaria de fazer o mesmo, mas meu coração palpitante e meus temores quanto ao meu próprio futuro me impediam de interpretar uma Julieta à sua altura.
Apertando o punhado de sal com firmeza, apoiei a mão livre em seu ombro na cena em que Romeu girava Julieta em seus braços antes de beijá-la com a doçura que só conhecem os amantes dos amores proibidos, impossíveis.
Então eu a vi. A borboleta branca passou diante de meus olhos, com suas asas agourentas flutuando no ar como se anunciassem que meu tempo sobre a Terra estava completamente esgotado.
Sem pensar duas vezes, ergui a mão que continha o sal amaldiçoado e, abrindo-a, soprei o pó sobre a face de Adam.
— A vida é um sonho e a morte o despertar — eu lhe sussurrei a frase que não fazia parte do texto original, de modo que apenas meu companheiro de cena pudesse ouvi-la.
Os olhos do rapaz se fecharam de imediato e, em meio aos suspiros de uma plateia que acreditava que sua morte não passava de um ato encenado, seu corpo inerte caiu ao chão e nele permaneceu, imóvel e plácido como que envolto num sonho que se dava em plena noite quente de verão.
— Meu amor está morto — declamei a plenos pulmões. — Que me resta, além de segui-lo pelas profundezas do mar salgado da Morte?
Mark então saiu de seu lugar nas coxias e veio me fazer companhia no palco. Ele usava uma túnica negra que cobria seu rosto parcialmente, e nas mãos carregava uma ampulheta prateada. Como em nosso ensaio particular, ele se aproximou de mim e me tomou em seus braços, envolvendo-me de modo a arquear minha coluna enquanto, certeira, sua boca descia para se unir à minha.
O beijo marcou o fim de nossa batalha contra minha morte iminente. Quando nossos lábios se separaram, meu irmão esboçou um pequeno sorriso vitorioso sob a sombra do capuz. Eu estava prestes a lhe sorrir de volta, mas uma visão agoniante me impediu de fazê-lo.
A borboleta branca nos rondava, e quando a vi pousar sobre o ombro de Mark, foi tarde demais.
Aterrorizada, vi meu irmão sucumbir ao seu toque à semelhança de Adam com o pó maldito que soprei ao rosto. Sentindo uma onda de pavor começar a me dominar, voltei meu olhar à plateia, percebendo que todos os rostos convergiam em minha direção enquanto esperavam pela próxima fala.
Muda, não consegui esboçar qualquer reação além do choro copioso que fez meu corpo estremecer por inteiro. A borboleta de asas brancas não estava mais à vista, afinal já havia cumprido sua missão ali.
Mark e eu tentamos enganar a Morte, e ela não nos perdoou por isso. Em vez de levar apenas a mim, levaria ambos.
Em meio aos aplausos ruidosos, eu soube que morreria em breve. Não seria capaz de viver em um mundo onde meu irmão não estivesse mais presente.
O sal de minhas lágrimas ditou o sabor daquele último ato.