Prólogo
Epílogo
Conto
O que havia começado como um dia qualquer terminaria do mesmo modo, se minha curiosidade não houvesse falado mais alto. Talvez tenha sido o fardo da rotina que, corroendo-me aos poucos, fazia nascer a ânsia de algo mais. Ou talvez tenha sido apenas o destino.
Foi no final deste mesmo dia em que tudo isto se rompeu. Minha jornada de trabalho estava completa, meu estômago suplicava por qualquer coisa. No fim das contas, tudo acaba adquirindo o mesmo gosto quando se vive assim. Entretanto, qualquer lugar em que pudesse comprar algo já havia fechado horas atrás. A madrugada começava e eu percorreria o caminho até minha casa com a barriga vazia.
As lembranças do caminho agora se misturam em minha mente. Mas havia o vento gelado do outono. Voando com ele, folhas mortas rodavam pela praça. E no chão, deslocado de toda natureza morta daquele lugar, havia um parco brilho.
Não havia razão aparente para aquilo ter chamado minha atenção. Poderia ser apenas alguma pedra ou uma mísera moeda. Pelo menos, foi o que pensei inicialmente.
A luz azulada que o misterioso objeto emitia atraiu minha total atenção no momento em que coloquei meus olhos nela. Ele fazia com que meus pensamentos atravessassem lentamente por minha cabeça; o incômodo da fome já não era tão grande.
Eu precisava me aproximar mais daquilo. Meu corpo quase agia forçadamente para isso. Só agora começo a entender que sua influência sobre mim começou naquele momento.
Era uma pequena lente circular. Se assemelhava muito a de um monóculo, mas, em seu centro, um diminuto octaedro sobressaltava-se do cristal. Não creio, de forma alguma, que aquilo fosse um vidro qualquer. Era de um azul fluorescente que permanecia gravado na visão, mesmo ao se fechar os olhos.
Olhando diretamente para ela, notava-se que a luz que emitia provavelmente era causada pelo reflexo na lente. Não possuía brilho próprio, embora eu possa jurar tê-la visto brilhar várias vezes quando não olhava diretamente para a peça.
Ao levantá-la contra a luz do poste, a fim de analisar melhor a lente, notei que o que via através dela era uma imagem retorcida demais da paisagem em minha frente. Sombras cruzavam a luz do poste através da lente, fazendo-me abaixar por puro reflexo. O grasnar e o bater de asas me fizeram acreditar que fossem apenas as aves noturnas, embora o que vi através da lente fosse mais sinistro que apenas pássaros. Era ilógico ter visto a destruição da praça a minha frente. As árvores retorcidas e sem folhas estavam quebradas ou inclinadas, quase se desfazendo em pó. O chão de pedra era irregular e trincado, com fendas subindo pelas pequenas estátuas que estavam distribuídas pelo lugar.
É claro que, no momento, eu pude jurar que fora apenas minha imaginação.
Mais estranho que tudo isso foi a visão dos corvos. Ao apontá-la em direção às aves, eu as vi em várias formas de uma só vez. Eram feitas de sombras, ossos expostos e bicos deformados. Vi em cada corvo, mais três ocupando o mesmo espaço. Quase como se fossem translúcidos.
O coração, sem emoção alguma por tantos anos, agora estava disparado e o medo se apossava de mim.
Corri o máximo que pude, sem olhar para trás. Atravessei a praça apertando o objeto em minha mão como se minha vida dependesse disso. Entretanto, eu já não era um jovem havia muito tempo e, com quase cinquenta anos, meu corpo não aguentou manter a corrida por tanto tempo. Já na segunda esquina depois da praça, meu peito ardia e minha boca estava áspera de tão seca. Conferindo que a lente ainda continuava em minha mão, me escondi em um beco e esperei.
É claro que, naquele momento, eu não compreendia o efeito daquele objeto tão peculiar. Não tinha ideia de como toda aquela experiência afetaria minha essência, que agora tão desesperadamente tento salvar.
No restante do caminho até minha casa, curiosidade e temor batalhavam através de meus pensamentos, a fim de decidir o que fazer. No final, fui vencido pela curiosidade.
Só após garantir que cada janela estava devidamente fechada, cada porta trancada e cada luz externa extinta, me atrevi a olhar através da lente. Mais uma vez, todo o cenário se retorceu e consegui enxergar mais do que realmente estava lá. A escrivaninha de meu escritório se mostrava carcomida e podre, as cadeiras de ferro estavam enferrujadas e algumas até mesmo sem pernas. Eu apenas enxergava a destruição.
O susto inicial havia passado. Agora, sozinho e com aquele instrumento em mãos, usei de todo o tempo que possuía para testá-lo. Confesso que atravessei aquele resto de noite acordado, descobrindo mais e mais destruição em tudo que me atrevesse a botar os olhos.
Vi cada livro de minha estante ser desgastado pela lente. Escrevi páginas e mais páginas apenas para vislumbrar a tinta de minha caligrafia se dissipar pelo efeito do monóculo.
Depois de três dias com o tal objeto em mãos, já não sabia fazer outra coisa se não gastar minhas horas vagas usando-o. Se dormia, era apenas quando, já esgotado, meu corpo se entregava ao sono.
O tom ciano que a lente atribuía a tudo aos poucos foi se tornando comum à minha visão. Eu já não via cor no mundo se não o visse através daquele místico objeto.
Levou uma semana para que me atrevesse a olhar para outro ser vivo novamente. Cego pela experiência, eu levei para casa um gato de rua. Atraí-o com comida até que entrasse em minha casa, trancando-o lá. Beirava a insanidade o que eu me sentia capaz de fazer com aquele objeto em mãos. Afinal, para um morto-vivo sem expectativa nenhuma de vida, a pequena dose de emoção que a lente influía em mim se tornara um vício.
Naquele momento, compreendi qual era realmente a função daquela lente sinistra. Ao olhar para o gato, depois de tanto enxergar o mundo através do objeto, compreendi o que havia tanto me assustado na primeira vez em que a usei.
Através dela eu poderia ver todos os caminhos que levariam à mesma coisa. A lente era apenas uma porta para a morte.
Vi naquele gato todas as faces do fim, por mais estranho e incomum que ele transcorresse. Entretanto, perturbador ou não, ao olhar com mais atenção, eu conseguia vislumbrar mais. No fundo de todas as mortes, eu via a essência da vida. Uma pequena chama, oscilando e fraquejando. Mas nunca se apagando.
Eu havia descoberto o princípio vital de todo e qualquer ser vivo.
O preço que aquilo me custara, afinal, foi mais do que eu suportaria pagar. Havia gastado todo meu tempo empenhado em sobreviver das possibilidades de vida dos estranhos. Vendo a chama da vida se apagando em todos ao meu redor.
Dali em diante, todas as noites eu repetia o mesmo ritual. Perambulava pelas ruas à procura de vidas a serem observadas. Lembro de uma noite em que segui um homem até sua casa. Sem a lente, via em sua expressão o mesmo cansaço que marcara meu rosto nos anos passados. Andava encurvado e abatido até onde morava. Com a lente, o via dali algumas semanas, entrando em casa e apanhando o revólver escondido em seu escritório. Sentava em sua poltrona e estourava os miolos. Achei curioso o fato de que sua morte era sempre igual, variando apenas de data.
Destinos assim me motivavam a viver mais e mais através da lente.
Porém, ao gastar meus dias admirando os caminhos de cada vida no mundo, não me ocorrera olhar para a minha. Foi por acaso que vislumbrei meu fim.
Observava as crianças que atravessavam meu caminho no mesmo parque em que encontrei a lente. Suas mortes eram imprevisíveis. A cada brincadeira, cada salto que dava, cada vez que corriam, seus destinos mudavam bruscamente. Vi garotos que não viveriam mais um dia ganharem anos de vida quando evitavam de cair no chão.
Estava deslumbrado e distraído quando, por mera casualidade, vi-me refletido em uma poça d'água. Ali, tive consciência da morte.
Corri para casa, tentando de todo modo evitar a desgraça que cairia sobre mim. Em alguns minutos o fôlego já me escapava, mas continuei correndo. Porém, não havia escapatória. O que quer que eu fizesse, cada atitude que tomasse, me faria chegar no mesmo lugar.
Inutilmente, havia gastado meu tempo de vida. E agora não me sobrava mais nada. Toda angustia que agora tomava meu corpo era inútil. Tudo que pude vislumbrar através da maldita lente fora tão pouco tempo, que nada poderia ser feito para evitar tal desfecho.
Embora eu observasse com deleite a morte alheia, em meu interior queimava a vontade de viver.
Na tentativa de não deixar este mundo de forma tão insignificante quanto vim a ele, apanhei folhas e caneta, no intuito de registrar tudo que fosse relevante. Uma atitude desesperada de alguém que espera a própria morte. Foi a mesma atitude que me fez entender que o fato mais substancial em todo o tempo que vivi foi a forma que encontrei meu fim.
Encontrei a maldita lente, apenas para ter consciência de que em alguns minutos meu coração falhará.