Telmah

Fantasia
Outubro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Nas Mãos da Morte

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Telmah
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A luz branca encandeou meus olhos como brasa. Tentando enxergar o cenário em volta, se descortinando aos poucos, percebi um corredor. Longo como um túnel subterrâneo. Ao fim, a luz parecia mais forte. Aquela luz tinha força suficiente para refletir em cada ladrilho das paredes. Qualquer corredor teria cadeiras, móveis, texturas. Ali, não. O que sobrara era um caminho abandonado, como se alguém tivesse saído às pressas. Mas tudo estava limpo. Limpo demais. Se não havia o suposto cuidado de quem saíra, existia a preocupação com acolhimento dos recém-chegados.

Respirei fundo e caminhei, apertando a maleta que trazia comigo. Preta e lacrada, só acessível com senha. Tive dificuldades de mover as pernas e braços. Pareciam ter vida própria, ou alguém os controlava. Sem aviso, uma ansiedade atacou meu peito, como se o coração agora bombeasse sangue suficiente para fazer zunir meus ouvidos. Zuniam como encanamento velho, cuja água em alta pressão produzia um leve tremor. Respirei fundo e continuei até o final do corredor.

Tentei prestar atenção ao redor, tentando ouvir algum barulho. Nenhum sinal de pessoas, movimento, vida. Apenas um ar-condicionado central estremecia as paredes.

A luz ficara amena e, como se uma brisa leve sufocasse os fótons em brilhantina, uma porta se fez presente. Era dali que saía a luz, mesmo à portas fechadas. Por um segundo, pensei que estivesse numa espécie de filme hollywoodiano, cujos efeitos especiais de sonho juntamente com uma trilha sonora angelical de harpas e lira orquestrava a montagem e os cortes em minha visão.

Pronto, chega. Eu precisava parar com tanta imaginação. Por que me dispersava tanto? Estava decidido. Eu não havia chegado de tão longe para desistir. Meu destino já estava selado.

Agora, a poucos metros da porta, encarei uma moldura perto do trinco. No centro, em vez de uma foto típica de um possível diretor de empresa — afinal de contas, eu estava ali para encontrá-lo —, havia os dizeres:


“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez.” – William Shakespeare.


Quanta ironia. Se aquele sinal era alguma espécie de aviso para que os clientes deixassem suas tendências suicidas, não havia funcionado comigo. Era incrível como morte e Shakespeare estavam ligados. Hamlet e Romeu e Julieta sempre foram clássicos sobre como a morte de homens e mulheres despedaçados na existência ressoava como alívio. Os personagens morriam não como uma espécie de punição celeste — como acontecia nas tragédias gregas —, mas porque precisavam convencer a si mesmos de que não havia mais redenção.

Respirei fundo e pus a mão no trinco. Com um leve rangido, a porta se entreabriu e a luz incandescente invadiu outra vez. Me senti como um nadador que tem os olhos violentados pelo cloro e, mesmo esfregando cada pedaço do globo ocular, ainda enxerga tudo como um míope com cinco graus na lente. Outra vez meus olhos se acostumaram e o manto branco de luz se desfez, abrindo espaço para um escritório de médio porte, organizado e cheirando a crisântemo.

— Não quer sentar? — perguntou uma voz.

Levei um susto, admito. Por detrás da escrivaninha no centro do ambiente, um senhor de olhos puxados sorria de volta. Por ser muito baixo, a superfície da mesa fazia com que ele se parecesse com uma criança pequena olhando por cima de um muro ao ficar na ponta dos pés.

— Por favor — insistiu ele.

Não havia ninguém na sala, com exceção daquele senhor. Um ambiente perfeito.

Puxei a cadeira e sentei-me para me acalmar. Não sei por qual motivo achava que ele era um secretário, alguém que a partir de um diagnóstico me recomendaria ao doutor Kim. Mas, para minha surpresa, a criança-senhor abriu o mesmo sorriso da foto que eu tanto fixara em memória na semana anterior. Era o doutor Kim em pessoa. Eu falaria sem rodeios com o homem que me conduziria para a morte. Repousei a maleta ao meu lado, apoiando-a em uma das pernas da cadeira.

— Não irei perguntar o motivo de estar aqui, pois nos parece óbvio, não? — começou o doutor Kim, em tom conciliador.

— Meus motivos são diferentes.

— Todos dizem isso. Acham que têm experiências únicas de vida, como se fossem abençoados e tivessem destaque existencial. Todos são iguais.

O tom do doutor Kim mudou para sério e severo. Ele me encarou como um adulto repreendendo uma criança. Os papéis haviam se invertido — a criança-senhor agigantara-se nos ânimos enquanto meu coração batia ainda mais forte, quase deixando-me surdo com a pressão sanguínea da aorta.

— Mas não vamos apressar as coisas, está bem? — continuou o doutor Kim. — Veja que nem nos apresentamos direito. Não sei seu nome e, para falar a verdade, não me interessa por enquanto. Se encontrou minha empresa significa que está decidido.

— Quero morrer, doutor Kim — finalmente disse eu.

— Ora, todos querem.

Estendi o braço e peguei a maleta. Quando repousei-a em meu colo, pus a senha e a abri num movimento rápido. Encarei cada uma das notas sem um pingo de dúvidas de que tudo iria transcorrer conforme o planejado. Coloquei a maleta em cima da escrivaninha e virei-a no próprio eixo para que o doutor Kim encarasse o conteúdo. Seu semblante se fechou.

— O que significa isso? — indagou ele.

— Quero morrer.

O doutor Kim respirou fundo. 

— Não faço esse tipo de coisa. Nosso projeto tem cunho social. Criamos mortes falsas com os clientes para que tenham consciência sobre a vida e deixem suas tendências suicidas.

— Estou oferecendo uma recompensa pela morte definitiva.

— Saia daqui! — exclamou o doutor Kim. Reação mais do que esperada.

— Quantas pessoas o senhor atende por mês? Cem? Duzentas? Duzentas e cinquenta e quatro?

Os olhos do doutor Kim ficaram atentos. Sua sabedoria talvez já reconhecesse que o caminho era sem volta.

— Sei tudo sobre a empresa. Sei de todo o discurso de conscientização, de homem fragmentado, de gente infeliz que deixa de se suicidar por causa de seus rituais. Mas eu não quero voltar atrás, doutor Kim. Estou interessado em morrer. E essa quantia o senhor jamais verá em vida. E com certeza Sun Hee e Yang Mi se beneficiariam.

O doutor Kim deu um sobressalto. Sabia que fora um golpe baixo.

— Deixe minha família em paz.

— Faça o que estou pedindo e nunca mais nos veremos. Literalmente.

— Por que veio até mim? Por que não tira sua vida, se assim deseja?

Por um instante, aquele questionamento me pegou de surpresa. De fato, eu poderia subir numa ponte e atirar-me lá do alto. Faria parte de uma estatística estereotipada de como o estresse acaba com as pessoas a ponto de não aguentarem mais a vida cotidiana. Mas uma coisa era tirar a própria vida jogando-se para a morte violenta. Outra, era ter o maior especialista no assunto conduzindo todo o processo com a perícia inequívoca do resultado certo. Pelas estatísticas, era grande o número de suicidas que fracassavam em suas tentativas solitárias.

— Já passei por sofrimento demais para criar mais um — disse eu.

— Pelo que você passou?

Ele queria me manipular.

— Aceite o dinheiro. Quero uma morte limpa, sem deixar pistas. Não quero ressurgir como seus clientes ao final do expediente. Eles te pagam para ver melhor a vida nesse seu ritual de quase morte. Essa ladainha não me interessa.

— Nunca vi ninguém tão disposto a abdicar da vida. Se não sabe viver, como sabe o que é morrer?

Os olhos do doutor Kim me atingiram no peito como um tiro de canhão. Minha pulsação acelerou e tive que expelir o ar dos pulmões numa frequência acima do normal. Eu sabia que cada reação era calculada pelo doutor Kim. Sua função era salvar vidas e ele tinha toda a lábia necessária para tal. Seu ritual começava naquela entrevista com os clientes. Mesmo eu sabendo disso, não consegui resistir à sensação de estar encurralado.

— O que vai fazer se eu não aceitar? — indagou o doutor Kim.

— O senhor é o doutor aqui. Use sua imaginação.

— Você é covarde. Sabe que...

— Por onde começamos?

O doutor Kim assentiu.

— Aposto que conhece nosso método.

— Não quero ver ninguém nos relatos coletivos de grupo. Não quero ser visto, reconhecido e notado. Ninguém deve saber que estou aqui.

— Nem sua família? 

Outra vez ele tentava me atingir com sua lábia ardilosa.

— Sei que os clientes esperam na sala ao lado — continuei. — O ritual precisa ser feito apenas comigo. Cada nota nesta maleta indica sigilo absoluto. Por mim, podemos passar direto para o final.

— Isso é impossível.

— Por quê?

— Se você quer uma morte rápida e sem violência, precisa passar pelo ritual inteiro. Entendo que não queira companhia, nem ambientes coletivos. Mas você precisa, mesmo na individualidade, acostumar-se com a morte. Os clientes que chegam passam por todas as etapas para criar consciência sobre a vida. É essa minha função. Não me tornei um médico para ceifar vidas, mas para salvá-las. Sua consciência descansará para sempre quando acostumar-se com cada uma das etapas que eu criei.

Ali, percebi que eu não tinha escolha. Não sabia até que ponto o doutor Kim apenas criava uma narrativa propícia para me fazer desistir ou se meu desejo de morrer seria alcançado como eu desejava seguindo aquele método.

O doutor Kim se levantou da cadeira e foi até o armário de madeira, no canto da parede. Girando a chave, tirou um tecido dobrado.

— Vista a manta. — Ele apontou para um provador imperceptível do outro lado.

— E os clientes à espera?

— Hoje, só tenho você.

Rememorei todos os relatórios que preenchi. Rotina da mulher e filha do doutor Kim, frequência de clientes, horários de pico, funcionários e suas jornadas de trabalho, margem de lucro.

— Pelo visto, você é tão falho quanto qualquer outro — sentenciou o doutor Kim. — E não sabe tudo sobre mim.

Virei as costas e troquei de roupa, vestindo a manta cor cáqui. Ao sair do provador, vi que o doutor Kim já abrira uma porta no fim da sala. Era impressionante como as entradas e saídas pareciam surgir como camaleões deixando a camuflagem.

Passando pela porta, a luz diminuiu naquele novo cômodo, um verdadeiro galpão. No canto da parede, uma mesa e um abajur quebravam a escuridão. Uma folha de papel e uma caneta aguardavam o manuseio.

— Sente-se — disse o doutor Kim. — Se quer mesmo morrer, escreva tudo.

— Tudo o quê?

— Tudo o que sente. Imagine-se deixando um testamento. Mais importante do que o bem material é o espiritual. Se não gosta do termo, então expresse seu emocional.

— Se vou morrer, isso não faz diferença.

— Claro que faz. Dizendo tudo o que precisa, o que sente, as angústias, frustrações, medos, decepções consigo e com os outros, expectativas cumpridas e frustradas, tudo isso contribui para que você tenha uma morte sem rodeios. Sua consciência descansará.

Fazia sentido. Mesmo que aquilo fosse parte do método para livrar as pessoas da morte, o doutor Kim não percebia que aquela etapa poderia ser usada no intuito contrário — ao se remoer as frustrações, vivenciava-se a mesma dor encorajadora contra a vida.

Sentei na cadeira e comecei a escrever. E, como um furacão desgovernado, senti as lágrimas descerem pelo meu rosto. Eu não tinha começado a primeira palavra, mas já sentia o peso do que poderiam significar. Tentando esconder minha reação, procurei o doutor Kim, mas ele desaparecera como um polvo disfarçado naquele oceano sem luz. Mirei a ponta da caneta no canto superior do papel e as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Os pingos resistiram por segundos no queixo e despencaram como bombas lançadas por um avião de guerra, manchando o papel. Tive a impressão de que a mancha formava palavras sem meu controle. E novas bombas caíam desgovernadas, formando frases e parágrafos. Mas minha cegueira fazia questão de escamotear seus significados.

— Pronto? — indagou o doutor Kim, parado ao meu lado.

Enxugando as lágrimas, escondi o papel numa dobradura cuidadosa.

— Não vou ler, eu garanto — continuou o doutor Kim.

Guardei o papel no bolso do manto e levantei-me para prosseguir. O doutor Kim guiou a dianteira até o fim do galpão. Por um breve instante, achei que o doutor Kim estava apressado demais. Sua postura não parecia ser de alguém que estava sob pressão, que encarara há pouco um homem ameaçando sua mulher e filha. A cada passo, senti como se avançasse numa partida de xadrez, cujo adversário pensava movimentos à frente e eu não acompanhasse. Havia alguma chance de o doutor Kim ter previsto tudo aquilo? Ter previsto minha chegada, minha presença e meu apelo? Me convenci de que era impossível.

Outra vez, doutor Kim abriu a porta, e eu senti uma lufada de ar gelado. Estávamos numa área aberta à madrugada. Um quintal privado e espaçoso. Ali, um caixão aberto já me esperava.

— Se não tem nenhum cliente, como há um caixão à minha espera? 

— Eu sempre deixo um caixão reservado para imprevistos — disse o doutor Kim, como de improviso. — Fique aqui.

Parei na frente do caixão. O doutor Kim ficou abaixado, tateando o caixão e apontando para cantos específicos.

— Os caixões possuem furos para respiração — começou a explicar. — Esse aqui é diferente. Ele não tem saída de ar. Após trancá-lo, você irá asfixiar até a morte.

— Doutor Kim, acho que o senhor ainda não entendeu. Não pretendo morrer com sofrimento. Quero que administre uma morte rápida e fulminante.

— O caixão produzirá esse efeito. Todos que entram sofrem um ataque de pânico. O espaço é fechado demais, só que meus pacientes têm a opção de respirar. Você não.

— Isso não muda nada. Sofrerei de asfixia do mesmo jeito. Não tenho medo de espaços fechados.

— Já entrou num caixão antes?

— Óbvio que não.

— Faça o teste. Se não sofrer uma parada cardíaca no momento em que eu fechar a tampa, faremos de outro jeito.

— Doutor Kim, devo alertá-lo para o perigo que sua esposa e filha estão passando. Eu não sou o único envolvido neste meu pedido. Se o senhor me trancar no caixão e tentar algum truque para salvar a si mesmo, não adiantará. Tenho um conhecido apenas esperando meu contato. Se o senhor ligar para a polícia e eu for preso, meu rosto estará nos jornais e sua família morrerá. Só existe uma maneira de Sun Hee e Yang Mi não serem punidas, que é através de meu desaparecimento. Se tentar me trancafiar vivo, darei um jeito de me comunicar.

O doutor Kim abriu um sorriso despreocupado. Como se algo me controlasse, dei o primeiro passo para entrar no caixão, mas o doutor Kim fez um gesto universal de quem pede para esperar.

— Primeiro, leia seu testamento — disse ele.

— Você disse que não saberia.

— Apenas uma parte. Qualquer uma. Pode escolher a mais irrelevante.

Levei minha mão ao bolso e pesquei a folha dobrada. Mesmo na aparente escuridão, uma luz tênue iluminou o papel, como se posicionada no canto exato em que eu pronunciaria as palavras.

— Peço perdão por não ter te levado à peça, meu amor. Nem você, nem nossa filha. Sei que amam Shakespeare e as tragédias gregas. Fui desleixado a ponto de não notar o quão grande era o sofrimento que eu gerava. Nas pequenas coisas que minamos, um relacionamento entre homem e mulher, e entre pais e filhos. Sempre tive problemas com minha atenção. Mas como você sempre reclamava, não era a falta dela que incomodava, mas para onde eu a direcionava. Tem coisa mais clichê do que um esposo que ignora a família e se atola no escritório? Eu entrei nessa espiral e fui a causa de nossa tragédia.

Mesmo querendo parar a leitura, algo dentro de mim obrigava-me a continuar.

 — Mas saiba que darei um fim a isso. Se minha existência te causa tanto sofrimento, darei um jeito nisso à minha maneira. Sei que nossa filha irá sofrer, mas nada se compara com a dor que eu causaria. Melhor um pai morto do que vivo e ausente. Faço isso porque amo vocês. Não se preocupe mais comigo. Minha queda será certeira para fora de sua vida, meu amor, e de nossa filha.

Dobrei o papel e o meti de volta no bolso no instante em que recobrei os sentidos.

— Belas palavras — disse o doutor Kim.

— Por que fez isso?

— Para se lembrar.

Adentrei no caixão e repousei, olhando para o céu nublado e sem estrelas.

— Terei que amarrá-lo — disse o doutor Kim.

Engoli em seco. Aquela parte talvez fosse a mais primordial do método. Para além da claustrofobia que os clientes enfrentavam dentro de um caixão apertado, amarrar as mãos e os pés os transformavam em verdadeiros reféns da morte. Mas ao contrário da reflexão que geraria uma maior vontade de viver, minha hora havia chegado.

O doutor Kim fez as amarras e logo depois apoiou a tampa de madeira na beirada do caixão. Com esforço, conseguiu empurrar os quatro cantos no lugar correto e o ranger da madeira dividiu o mundo externo e o interno. A tábua empurrava a pouca luz como uma lua crescente que se transforma em minguante e se apaga.

Eu estava imerso na escuridão. Ouvi o doutor Kim bater nos cantos da tampa do caixão, pregando meu destino.

O silêncio se fez.

Não ouvia nem mesmo o barulho de meus batimentos, nem a pulsação da aorta, nem o mundo exterior. 

Sem aviso, um clarão tomou conta do ambiente e murmúrios irromperam contra o silêncio. Eu me vi envolto em um jardim. As risadas vinham logo ao lado. Uma mulher e uma criança. Minha mulher e minha filha.

Tudo se apagou. Eu encarava a tampa do caixão outra vez. E, antes que eu refletisse sobre o que vira, o ambiente florido voltou à tona.

Minha esposa caminhava abraçada à minha filha. Nas mãos pequeninas, carregava um ramo de crisântemos. Não conseguia ouvir seus murmúrios.

Minha consciência retornou para as sombras. Senti minha garganta secar e meu peito se fechou. Estava eu passando pelo ataque de pânico? Tentei me acalmar, mas o coração lutava como um pugilista contra meu tórax, batendo forte a ponto de doer. Se eu estava morrendo, a dor tornava-se insuportável. Em vez de apagar minha consciência e morrer em paz, eu caminhava pela tortura lenta e sombria. Doutor Kim precisava me tirar dali. Sentindo o nó apertado em volta de meu pulso, me preparei para dar um soco na tampa do caixão. No meio do movimento, a escuridão desapareceu outra vez.

Minhas mãos continuaram o soco, soltas no ar. Diante de mim, o escritório lotado. Meus funcionários apressados em suas ligações, mandando e-mails, gerenciando anotações.

Minha mulher servia café, ao mesmo tempo em que detrás de um birô minha filha pequena digitava uma mensagem no computador. A imagem não fazia sentido. As duas nunca haviam pisado no escritório. Tentei falar com elas, mas algo sufocava minha voz. Não importava se as duas me encaravam nos olhos. Não notavam minha presença.

Como uma mudança de cenário numa tragédia grega, o escritório deu lugar a uma mesa comprida. Cadeiras em volta suportavam o concelho de gerentes que eu tanto conhecia. Logo atrás, uma apresentação gráfica numa planilha, com cifras crescentes de lucro. Como por instinto, me vi apontando para o gráfico e fazendo explicações. Os rostos abriram um sorriso e todos aplaudiram. Apertaram minha mão e me entregaram uma maleta repleta de dinheiro. Eu sabia que celebravam minha saída da empresa. Havia exercido meu cargo com exímio desempenho, mas fui posto para fora. O trabalho que era minha vida desapareceu.

O cenário mudou, agora substituindo o gráfico por uma cortina aberta. No lugar da mesa, vi minha esposa e filha chorando desesperadas. Logo atrás, o vento frio soprou. Estávamos no nosso apartamento, no décimo segundo andar. Um frio percorreu minha espinha enquanto as duas se abraçavam ajoelhadas próximas ao sofá. Fui tentado a olhar pela janela e vi um aglomerado de pessoas em volta de algo. Parecia um acidente. Aos poucos, me dei conta do quem estava ali e meu coração acelerou.

Era o meu cadáver.

Num sobressalto, eu estava agora no chão, junto das pessoas. Encarei meu corpo retorcido como uma goma de mascar rejeitada pelo criador. Era o meu corpo diante de mim, irreconhecível em sua deformação grotesca. Enquanto algumas pessoas tiravam fotos com o celular, outras viravam o rosto em náusea.

Meu coração acelerou como nunca. Eu estava morto. Aquilo não era alucinação, mas lembranças. E me vi preso diante do meu destino trágico. Havia procurado dar fim à vida da maneira mais selvagem, gerando a gravura aterradora na mente de minha mulher e de minha filha. Eu ouvia o choro em desespero das duas. O arrepio na nuca me tomou de assalto.

Eu precisava voltar.

Sem direção, corri pela calçada à procura. De quê? De quem? Sem rumo, corri para longe das pessoas. Para longe de meu cadáver. Para longe do sofrimento que causei à minha família.

E logo fui atingido por uma luz branca incandescente. Tudo ficara branco, sem distinção de objetos. Uma cegueira causada pela claridade em excesso. Aos poucos, meus olhos se acostumaram.

O corredor se revelou. No seu fim, uma porta. Ao lado do trinco, uma placa com os dizeres:


“Nós que vivemos aqui não somos mais do que fantasmas ou ligeiras sombras.” – Sófocles.


A tampa do caixão foi aberta. E, ao contrário da madrugada, o sol intenso me aquecia a face. Sem que eu precisasse pedir, o doutor Kim desatou os nós dos pés e dos pulsos.

Num salto, me levantei do caixão.

— Onde estão minha mulher e minha filha?! Preciso falar...

— Não há como. Você está morto.

A falta de ar me enlaçou. As pernas perderam a força e quase se desequilibraram.

— Se sabia, por que não me avisou?

— É preciso que o homem morra tantas vezes quanto necessário. Ninguém pode ajudá-lo nesse caminho.

— Então, por que passei por tudo isso?

— Para que pelo menos possa ver a despedida.

O doutor Kim levantou o braço e apontou para o fundo do quintal. Minha mulher e minha filha estavam num cemitério. Os crisântemos balançavam com o caminhar paciente e delicado. Num impulso, corri na mesma direção. Mas minha voz não emitia seus nomes. Nem o meu. Acompanhei cada movimento como um espectador de cinema que vislumbra atores que nunca conheceu.

Quando minha filha colocou os crisântemos em cima do meu túmulo, manteve um silêncio reflexivo.

— Pode falar agora, meu amor — disse minha esposa.

A menina encarou a mãe e pôs a mão no bolso, retirando de lá um papel dobrado com esmero. Uma carta escrita com sua letra travessa e cheia de amor.

Respirando fundo, minha filha começou a ler:

Sinto sua falta, pai. Não queria viver sem você. Por que foi embora? Eu só queria que você fizesse o que prometeu. O filme que a gente viu já chegou. É de ação, do jeito que você adora. Sabe, pai... O que mais sinto falta é da gente no sofá, assistindo àquele personagem incrível. Ele sempre dá dinheiro em troca de favores. Uma mala cheia de dinheiro, sempre quando precisa. Você ria com esse personagem. É disso que sinto falta, pai. Cadê você comigo? Cadê você com minha mãe? Volte. Apenas volte pra gente assistir ao filme. Fico triste por você ter levado a sério aquela reportagem. Acha que eu não me lembro? Mesmo dizendo que eu precisava dormir, ouvi que minha mãe e você assistiam algo sobre suicídio. E sobre um projeto que ajudava as pessoas. Por que você não pediu ajuda, pai? Não pense que estou decepcionada. Fico apenas triste por não ter você comigo. Quero ir para o teatro com você e minha mãe. Eu nunca te contei isso, mas eu via você chorando com as peças. Acompanhei escondida cada lágrima que você derramou. Mas hoje sou eu quem choro com sua falta. Eu te amo muito.

Ela dobrou a carta com cuidado e a apoiou em cima do túmulo com uma pedra. Minha esposa estava aos prantos e as duas se abraçaram. Mas eu não pude me mover.

Escurecendo outra vez, agora eu encarava o teto de outro caixão, sentindo uma vibração. Os passos das duas se afastavam devagar. Eu estava preso no meu destino, tentando irromper contra deuses que já haviam tecido minha morte. E passaria a eternidade rememorando cada instante que não vivi. Sou um covarde. Sempre fui.

Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.


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