Prólogo
Epílogo
Conto
Na primeira vez que vivenciei minha própria morte, eu era uma menina de doze anos de idade. Meu pai tinha morrido quatro anos antes em uma briga no presídio central. Agora, minha mãe vivia com outro homem, meu padrasto. Nunca pude entender por que um homem doce e bom como meu pai acabara preso, longe de nós, enquanto permitiam que esse outro homem, um monstro, vivesse conosco. Talvez porque ele era branco, ao contrário de nós.
Sua rotina de violência, até ali, era a de beber muito e nos bater sempre que tinha uma oportunidade. Contudo, naquela tarde que minha mãe não estava em casa, ele me olhou com outros olhos. Eram os olhos de um lobo faminto que sentia o cheiro de sangue, o sangue de minha puberdade.
Primeiro me bateu no rosto, depois me jogou em sua cama. Quando arrancou minhas roupas e começou a me violentar, minha mente se desprendeu daquele momento. Livre das amarras do espaço-tempo, agora eu via meu próprio futuro. Via e vivia como se tivesse sessenta e cinco anos.
Era uma senhora que caminhava na rua de um bairro pobre, o bairro onde eu morava agora, a Lomba do Pinheiro. Já passava das seis da tarde, e eu carregava uma sacola com a comida que seria o jantar da minha família. Passava na frente de um botequim quando um carro parou com uma freada brusca. Assustada, larguei a sacola, deixando as batatas rolarem no chão. No instante seguinte, eu sentia o baque no meu corpo e minhas forças se esvaindo. O barulho dos tiros só veio depois.
Caí no chão, imóvel, mas sem sentir dor. Era a adrenalina. Ainda pude ver o que acontecia ao redor de mim por alguns instantes. Homens atirando uns nos outros e caindo, enquanto as batatas rolavam na calçada a centímetros da minha vista. Depois que morri, é difícil descrever o que sentia. Um vazio negro, mas que não tinha cor. Um silêncio completo, sem cheiro nem tato.
Voltei a ter doze anos, e estava chorando na cama. Meu padrasto estava tomando um banho. Deixou bem claro que me mataria se eu contasse a qualquer um sobre o que tinha acontecido. Eu acreditei.
Os abusos não pararam, é claro. Mas não era sempre que eles me levavam a viajar no tempo, infelizmente. Sempre me faziam morrer um pouco por dentro. Na segunda vez que viajei no tempo, estava com dezenove anos e fazia programas em uma casa chamada “O Matadouro”. Naquela noite, apareceu um cliente que era amigo de meu padrasto, do qual não tinha notícias desde que eu tinha fugido de casa. Seu nome era Elias.
— Olha se não é Luísa Peregrina, enteada do Álvares. Você cresceu! — disse aquele caminhoneiro gordo, dando um tapinha em minhas nádegas.
Sorri para ele, mesmo com asco. A essa altura, já tinha aprendido a separar sexo do prazer. Eram apenas negócios, e aquele peixe tinha dinheiro, com certeza. Não só dinheiro, como alguma informação útil. Ele me pagou uma bebida, que para as putas era batizada com refrigerante, e eu lhe perguntei sobre meu padrasto.
— Aquele canalha do Álvares se deu mal. Tava metido com roubo de carga, sabia? Acabou na vala — revelou Elias.
Mais tarde, fizemos um programa, e ele gozou em três minutos. Parecia que ia ter um enfarte. Pena que não teve.
Agora, eu estava com treze anos e tinha tomado coragem para sair de casa. Aqui, me dei conta de algo importante com relação à minha habilidade de viajar no tempo. Mesmo sabendo das coisas que me aconteceriam no futuro, eu não conseguia mudar nada. Meu padrasto deixaria minha mãe três meses depois de quando eu fui embora. Seria melhor se eu tivesse aguentado mais um tempo, esperado ele se mandar. Mesmo sabendo disso, não tinha como evitar; não dá para improvisar muito no espetáculo da vida.
Assim como não tinha como evitar minha própria morte, toda vez que a vivenciava era como assistir a um filme. Por mais que tentasse, não podia atravessar a rua para o outro lado do botequim. Nem podia mudar de fila no mercado, para que me demorasse alguns minutos a mais. Quando finalmente desisti de mudar meu futuro, não voltei mais até aquele momento. Já o tinha vivido em sua plenitude.
Contudo, a minha atitude perante a vida mudou. As pessoas me achavam apática, insensível, sem noção às vezes. Quando todos estavam felizes, eu tinha aquele sorriso amarelo e inquietante. Quando os outros estavam tristes, desesperados ou com medo, era eu que tinha uma atitude fria e estóica. Se não podia mudar minhas decisões ou contar sobre o futuro para os outros, minhas reações emocionais não escondiam o que eu já sabia.
Nos primeiros três meses que vivi na rua, passei maus bocados. Senti fome e frio, roubei e vi meus companheiros roubarem, tanto de estranhos como uns dos outros. Usei drogas para aliviar o sofrimento. Apanhei e vi meus companheiros apanhando da polícia, bem como vi alguns morrendo em suas mãos.
Éramos um grupo de cinco; Zorro e Maria eram os mais velhos e cuidavam de nós. Zorro tinha esse apelido porque cultivava um bigodinho de adolescente. Tinha também o Duda, que tinha minha idade, e o Avião, que tinha só dez anos. Dormíamos nos bancos, perto de umas árvores. Não éramos os únicos habitantes noturnos dali. De dia, dispersávamos para conseguir comida, dinheiro e loló.
Eu apenas esperava que aquilo tudo passasse. Na primeira noite na rua, com medo e com frio, me transportei ao futuro. Tinha dezesseis anos e vivia em uma casa simples de religiosos. Uma espécie de orfanato informal, mas o que importava era que eu tinha um teto e era bem-alimentada. Além disso, tinha terminado o ensino fundamental e começava o ensino médio. Rezava muito e ajudava minha mãe com as cestas básicas que os religiosos me davam.
Estava novamente na rua com treze anos. No fundo, eu sabia que tudo seria melhor para mim, mas não para os outros. Mas não podia preveni-los; meu corpo não obedeceria tal ordem. Não podia avisar os companheiros que a polícia os esperava na próxima esquina, mesmo sabendo de antemão. Não podia dizer nem a mim mesma.
Queria uma chance para sair da rua e estudar. E, finalmente, a chance apareceu, junto com aquele casal de gringos que veio até a praça. Eram mórmons, mas isso eu já sabia. Pareciam as melhores pessoas do mundo, mas logo descobriria que não eram. Entretanto, era melhor do que viver na praça ou voltar para meu padrasto.
Durante quatro anos, vivi acreditando em Deus. Estudava muito, o que compensava um pouco o ensino de má qualidade das escolas públicas. A fé fazia muito sentido para mim naquele tempo. Achava que todos seguiam o roteiro de Deus porque eu experimentava isso. Só nos restava implorar Seu perdão divino. Era uma ideia que eu apreciava. Ainda não questionava o problema da falta de livre arbítrio.
Enquanto estava com os mórmons, eu evitava os relacionamentos. Mas às vezes eu me via como prostituta no Matadouro, dormindo com três ou quatro homens, e eventualmente até com mulheres. Trabalhava quase todas as noites. Terminaria o ensino médio, mas meus sonhos pareciam mortos nesta época. Precisava sobreviver àquilo tudo, superar os mórmons. Não tinha como dar certo.
Começou aos dezessete anos, quando eu vi pela primeira vez os elfos negros. Ninguém mais os via; achei que estava ficando maluca. O primeiro que vi foi à distância: um sujeito bem negro, parecia um africano mesmo, usando roupas estranhas que pareciam cascas de árvore. Tinha um cabelo “black power”, olhos puxados e orelhas pontudas. Me olhava de uma esquina enquanto eu passava de ônibus. Ninguém mais parecia percebê-lo.
Viajei até meus quarenta anos. Estava casada havia dez anos e tinha dois filhos. Morávamos em uma casa simples na Lomba do Pinheiro, mas nada nos faltava. Meu marido era motorista de ônibus da empresa Carris, e eu trabalhava como diarista durante o dia. Minha mãe ainda vivia e morava conosco.
Era fim de tarde, e eu estava deixando o jantar preparado para sair para a faculdade. Sim, finalmente estava estudando; era aluna no curso de Psicologia. Minha mãe olhou para mim e me disse:
— Filha, me orgulho de sua determinação e de tudo que conseguiu. Só que às vezes você parece tão distante de tudo. Parece que não está aqui, mas sim no mundo da lua.
— Se eu te dissesse que às vezes não estou mesmo aqui, você acreditaria? — respondi, enigmática, dando-lhe um beijo em sua testa.
Dois meses depois, ela morreria de um enfarte fulminante. E eu sabia disso desde os dezessete anos.
Na faculdade, tinha um colega que era um elfo negro. Isso era maneira de dizer, claro, pois ninguém o via, nem mesmo os professores. Em alguns dias, ele sentava-se do meu lado quando queria alguém para conversar, já que eu era a única que o percebia. Nesses dias, ninguém sentava do meu lado. Nunca entendi como nenhum colega nunca sentou no colo dele.
— Por que você assiste às aulas se não pode fazer as provas nem receber um diploma? — perguntei-lhe certa vez, bem baixinho.
— Ora, pelo mesmo motivo que você frequenta o curso: para aprender — me respondeu.
— Mas vocês não têm escolas dos elfos? — cochichei.
— Não temos nada parecido com isso. Já nascemos sabendo o que um elfo precisa saber. Sabemos tudo o que acontecerá conosco, até o fim de nossas vidas.
— Mas se você já sabe tudo, por que precisa vir às aulas? — continuei depois de passado um tempo, para não chamar atenção.
— A liberdade de viajar no tempo tem como preço perceber que o livre arbítrio não existe. Tudo que passou existe tanto quanto o que há e o que ainda se passará.
Voltei a ter dezessete anos. Os elfos faziam-me visitas com certa frequência, o que me deixava em dúvida com relação a tudo que aprendera com os mórmons. Porém, minha dívida com aquelas pessoas ainda era grande, de forma que engolia minhas incertezas e seguia em frente. Muitas meninas recebiam bolsas de estudo e partiam para a Europa, e eu esperava que tivesse também essa chance quando completasse dezoito anos. Me imaginava como uma missionária, mas sabia que isso jamais aconteceria. Era estranho para alguém como eu sonhar e fazer planos. Não fazia sentido.
O sol ainda não tinha nascido quando me acordaram. Era uma elfa negra, com os cabelos presos em uma tiara prateada. Ela fez sinal para que eu não fizesse nenhum ruído. Coloquei uma roupa, em silêncio, e a segui para fora da casa. A essa altura, confiava naqueles seres mais do que nas pessoas. Imaginava que talvez fossem um tipo de anjo da guarda. Sabia que eram outra coisa.
Parada a certa distância da casa, pude ver quando a polícia chegou. Vieram buscar os gringos, mas todo mundo acabou preso. Tinham descoberto um esquema de tráfico internacional de pessoas. Na verdade, eu tinha tido sorte até aquele dia. Meu presente de dezoito anos seria uma passagem para algum lugar da Europa onde brasileiras se prostituíam e eram escravizadas. Para mim não era novidade, é claro.
Algumas crianças do local acabaram na FEBEM ou de volta às suas famílias abusivas. Eu escapei; estava novamente nas ruas, mas como era uma jovem atraente não demorou muito até aparecer pretendentes em minha vida. Rafael era um descendente de italianos que a mãe achava ter rosto de anjo. Agora que tinha crescido, ainda era um jovem sedutor, apesar de ostentar uma grande cicatriz na bochecha direita.
Rafael agenciava garotas de programa. Me apaixonei pelo seu carisma, mesmo sabendo que aquilo daria errado. O destino é muito engraçado, porque, em vez de trabalhar como prostituta contra minha vontade na Europa, eu acabei trabalhando como prostituta no Brasil mesmo e por vontade própria. Como se tivesse escolhas.
Rafael me ensinou sobre a profissão; ele era um amante profissional. Tinha clientela feminina, mulheres da alta sociedade que pagavam por sua companhia. Mas seu sustento vinha mesmo de gerenciar o dinheiro das meninas. Um dia, cansei de sustentar Rafael e dei o fora. Ele não se importou muito, pois sempre aparecia meninas novas, burrinhas e dependentes para ele explorar.
Comecei a frequentar a boate Matadouro e me tornei parte do plantel do local, como se diz das frequentadoras fixas. Dividia um apartamento de dois quartos com outras três garotas ali na região da avenida Farrapos, centro da prostituição na capital gaúcha.
Por vezes, aparecia um elfo na boate. Chamava-se Jannal, tinha olhos grandes com o branco fazendo um incrível contraste com o rosto cor de ébano. Sentava em uma mesa e ficava observando as mulheres tirarem sua roupa. Era tão belo que comecei a desenvolver um desejo secreto, olhando sensualmente para ele enquanto dançava e tirava minhas roupas, provocativa, tentando medir suas reações. Mas ele nunca tomava a iniciativa.
Em um dia de pouco movimento, sentei para conversar com Jannal. Perguntei se não queria fazer amor comigo, de graça. Não era um programa, não na minha cabeça.
— Você tem certeza de que está pronta para isso? — perguntou-me, displicente. Ele já conhecia a resposta.
Eu respondi que sim. Sabia que ficaria grávida, mesmo tomando anticoncepcional. Passaria anos fora por conta disso, mas ninguém perceberia.
Agora, estava no escritório de Arthur, meu amigo e professor de Psicologia. Tinha quarenta e três anos.
— Quando uma humana fica grávida de um elfo, é levada para um lugar secreto, fora do nosso espaço-tempo — expliquei.
— Me diga como que isso aconteceu — pediu Arthur.
Estávamos sozinhos em seu escritório na universidade. Ele sugeriu que conversássemos ali, depois de descobrir que possuíamos a mesma habilidade de viajar no tempo.
— Nós transamos no prostíbulo mesmo. Depois, fui para minha casa, onde me deitei para dormir umas quatro da manhã. O relógio não me despertou, e quando acordei era noite. Primeiro achei que tinha dormido todo o dia anterior, mas depois me lembrei de que o tempo tinha parado. O relógio ainda marcava quatro da manhã.
— Me explique como o tempo para — pediu o terapeuta.
— O relógio não se altera, todas as pessoas ficam paradas como estátuas. O sol não nasce, nem as estrelas se movem.
— E foi aí que o elfo veio te buscar — completou Arthur.
É difícil diferenciar uma pergunta de uma afirmação quando duas pessoas como nós conversam a sós. Já sabemos o que a outra irá nos dizer e não precisamos representar nenhum papel emocional, só cumprir o protocolo de transmitir a informação. Parecem duas máquinas conversando, não há sentimento.
— Isso mesmo. Nós fomos até o parque, o mesmo em que eu me refugiei quando saí de casa. Entramos em uma alameda e estávamos em outro lugar verde, desconhecido, um tipo de bosque muito bonito que, com certeza, não fazia parte do parque. Caminhamos cerca de meia hora até chegar na aldeia dos elfos.
— E ali você ficou por quantos anos? — indagou o professor.
— É difícil dizer. Acho que foram quatro anos. O tempo não significava nada para eles. O sol nunca nascia, estávamos presos nas quatro horas da manhã do dia em que dormi com Jannal. Eu também não envelhecia, meu cabelo não crescia. Apenas a criança crescia. Seu nome era Zandro; ele era negro como a noite e tinha aquelas orelhas de elfo.
— Como eu te disse antes, para mim os elfos são brancos, parecidos comigo. Acho que são como espelhos de nós mesmos. Não que sejam fruto de nossa imaginação, é claro — concluiu Arthur.
— Acho que o senhor tem razão. Morei com eles por esse tempo e, um belo dia, ou noite — corrigi-me com um sorriso —, Jannal me contou que eu precisava voltar para meu mundo, mas que poderia sempre visitá-los no parque. Bastava caminhar sozinha pela alameda.
— E como foi para você se separar de seu filho?
— Eu me sentia vazia, não era fácil no início. Por outro lado, viver fora do tempo estava me fazendo mal. Sentia falta do meu mundo, de envelhecer e da luz do sol. Depois, você sabe que sempre posso voltar a esses momentos.
— Minha relação com os elfos é diferente. Não sei se é possível um homem ser convidado a viver entre eles. Quanto à nossa habilidade, eu tento viver nos meus melhores momentos e evitar as horas mais tristes — comentou o doutor.
— Entendo o que quer dizer, mas não sei se concordo contigo — respondi.
Um mês antes, tinha minha primeira aula com o professor Arthur. Assim que entrou na sala, percebeu o elfo sentado do meu lado. Sempre sentava no fundo, para não perceberem caso olhasse ou cochichasse com o elfo. Achariam estranho se percebessem que falava sozinha, mas o professor entendeu tudo. E eu já sabia. No fim da aula, ele pediu que o esperasse para conversarmos.
— Aguardei muito tempo até encontrar você — me disse o professor.
— Temos muito o que ensinar um ao outro — eu respondi.
O elfo sorriu para nós e saiu da sala. Pelo que Arthur me contou, ele tinha as mesmas habilidades que eu. Não tinha filhos com elfos, mas conhecera outros como nós. Disse-me que tinha sorte, pois a maioria tinha sérios problemas psiquiátricos. Arthur e eu seríamos amigos dali em diante, e podíamos falar sobre o nosso futuro de uma forma que seria impossível fazer com outras pessoas. Era bom ter alguém para dividir esse segredo.
Seria bom ter alguém para dividir uma vida. Tinha trinta e três anos e estava farta de me vender no varejo. Nessa época, comecei a namorar Beto, meu futuro marido. Uma colega de boate, chamada Vânia, trabalhava no ramo sem que o marido soubesse. Não queria isso para mim. Sabia que Vânia ia acabar assassinada por ciúme.
O negócio da boate Matadouro tinha crescido e agora mantinha, anexo, um prédio de apartamentos para aluguel que funcionava como inferninho. A maioria dos apês era de casas de massagem, onde as garotas podiam trabalhar de dia, se quisessem. Todo o esquema pertencia ao mesmo dono, que sempre ganhava sua parte: o aluguel era mais caro do que de um consultório médico no bairro chique dos Moinhos de Vento.
Eu trabalhava nesse esquema agora, pois passei a apreciar mais o dia, depois de passar tanto tempo naquela noite eterna dos elfos. Vânia trabalhava comigo. Com seus clientes, ela gostava de se gabar de que tinha um corno em casa. Dizia para o marido que tinha um salão de beleza e contava aos clientes como ele acreditava em tudo que dizia. Os clientes gostavam de saber que corneavam um otário, lhes dava tesão.
Um dia, quando Vânia estava com um cliente, apareceu o corno no inferninho. Eu não estava nesse dia, por sorte. O cara estava armado com uma pistola semiautomática. Atirou em todo mundo que viu pela frente: o porteiro, os clientes, as garotas e a Vânia. Depois, se matou com um tiro na cabeça. A imprensa caiu em cima, e os donos do negócio foram presos por cafetinagem. Foi o fim da boate Matadouro. Também, com esse nome...
Tinha treze anos novamente. Dormia no parque em um banco de pedra. Dormir é forma de falar, pois você fica sempre ouvindo em volta. Estava com minha turma de cinco quando apareceram uns polícias esculachando. Procuravam um tal de Nando, mas não o conhecíamos.
Pegaram Avião, o mais novo, e colocaram um saco na cabeça dele, para fazê-lo falar. Um outro porco apontou uma arma na cabeça do Zorro, que era o menino mais velho.
— Cadê o Nando? — perguntava outro porco, que era sargento.
Ninguém sabia dizer. O porco ficou puto e passou os dois meninos, ali na nossa frente.
— Dois bandidos a menos pro futuro — disse o sargento, olhando para nós como se fossemos os próximos.
Olhei para baixo. Sentia medo, mesmo sabendo que tudo daria certo. Não fizeram mais nada; apenas levaram os corpos para o camburão. Não demoraria até aparecer mais meninos para tomar o lugar dos mortos.
Voltei a ter trinta e três. Aproveitei o fim do Matadouro para me aposentar da “vida fácil”. Casei com Beto, juntamos as economias e compramos uma casinha financiada na Lomba do Pinheiro. Não demorou seis meses e a Matadouro reabriu. Agora se chamava Boate Dresden. Recebi muitos convites para voltar, mas recusei. Outras meninas apareceram para trabalhar lá. Elas sempre aparecem.
Tinha agora cinquenta e dois anos e trabalhava no CRAS, o Centro de Referência de Assistência Social. Tinha me formado e feito especialização. Trabalhava atendendo a população carente da cidade. Era um salário um pouco melhor do que o de meu marido, mas mesmo com uma renda melhor optamos por continuar vivendo na Lomba. A educação das crianças era nossa prioridade financeira.
Tinha um casal de filhos com Beto: Marcos, com dezenove e Lorena, com dezessete. Nenhum deles tinha minha habilidade. Marcos estudava na faculdade de Direito, e Lorena completava o ensino médio. Levei os dois até o parque para lhes apresentar seu meio-irmão.
Ele teria quase trinta anos pela conta dos humanos. Mas elfos não envelhecem como nós; eles sempre parecem ter a mesma idade depois dos vinte. Se bem que ele era um meio-elfo. Não tinha certeza se meus filhos conseguiriam vê-lo, então não expliquei para eles o motivo do passeio.
— Mãe, o que você quer nos mostrar neste parque? Parece perigoso — falou Marcos.
— Deixa de ser medroso — respondeu Lorena, que era mais descolada.
— Aos treze anos, eu fugi de casa. Eu vivi neste parque como garota de rua, por vários meses — respondi, procurando por Zandro na saída da alameda.
Então, ele caminhou até nós. Usava roupas humanas, e um gorro vermelho cobria as orelhas. Acho que não queria assustar seus irmãos mais do que o necessário.
— Esse é seu meio irmão, chama-se Zandro. Estes são Marcos e Lorena — disse logo de supetão.
Precisei dar um tempo para eles se acostumarem à ideia. Inventei que ele tinha sido criado pelo pai no norte, que tinha tido ele antes de conhecer o Beto. Não dei detalhes sobre sua natureza élfica; ou o mais certo: sua natureza meio-élfica. A essa altura eu já sabia que sua herança humana lhe permitia ser visto e viver com as pessoas quando desejasse, desde que pagasse por isso envelhecendo. A desconexão com a roda causal da existência era o segredo da longevidade dos elfos.
Estava novamente no escritório de Arthur, na época da faculdade. Ele tentava me explicar como funcionava nossa habilidade.
— Einstein propôs que o espaço e o tempo são uma coisa só. Chamou essa coisa de espaço-tempo. Todas as coisas do universo existem em um espaço quadrimensional. O passar do tempo é uma ilusão, o que fazemos, na verdade, é nos mover constantemente no espaço-tempo em direção ao futuro.
— Então, o tempo é como o espaço, por isso podemos nos mover para a frente e para trás em nossas memórias. O que não entendo é por que não podemos alterar nossas decisões, mesmo conhecendo todas as consequências — admiti.
— A vida inteira de uma pessoa é um objeto quadrimensional que existe no espaço-tempo. Sempre existiu e sempre existirá. Não há antes e depois nesse espaço, apenas a relação entre causa e efeito, uma espécie de linha que liga um objeto do início a seu fim. Não podemos alterar essa relação.
— É difícil de compreender — disse, sem emoção.
— Imagine que o tempo seja uma dimensão espacial, como o eixo norte-sul. Imagine que os eixos leste-oeste e a altura sejam outras duas dimensões do espaço. A terceira dimensão do espaço a gente vai ignorar.
— Certo.
— Imagine que você nasce no polo sul, um bebê, e, à medida que o tempo se move, versões de você vão se deslocando em direção ao polo norte, como uma grande centopeia. Essa cobra vai ficando mais grossa à medida que você cresce e interage com outros objetos em forma de cobra nesse espaço distorcido. Quando você chegar ao polo norte, que é sua morte, você se desfaz em pó. Não há nada mais ao sul que o polo sul, nem nada mais ao norte que o polo norte. São os horizontes de nossa percepção. Mas diferente dos outros, vemos a cobra inteira, não temos a ilusão de construir nosso futuro.
— Acho que entendi o que você quis dizer. Não podemos alterar nosso destino porque ele já está escrito. A única coisa que temos de diferente é um ponto de vista de fora do tempo.
— É exatamente isso. Estamos neste momento na intersecção da esfera de minha existência com a sua — explicou, fazendo círculos com o dedo indicador. Apesar de mais velho, Arthur viveria mais do que eu. Nunca saberei quanto tempo.
— E os elfos? — indaguei.
— Talvez existam outras dimensões. Os próprios cientistas admitem essa possibilidade. Isso explicaria como eles se movem em lugares que normalmente não temos acesso. Ou, talvez, a matéria deles vibre em uma frequência diferente da humanidade, e por isso a gente não os veja. Física não é minha especialidade, então não consigo produzir explicações muito boas — divagou Arthur.
— Ou, talvez, seja apenas mágica — sugeri.
— Talvez. Ou mágica pode ser só um nome para algo que não conhecemos.
— Em todo caso, eles são cheios de segredos — conclui.
— Eles quase nunca me explicam nada também. O que aprendi foi falando com outros como nós, ou estudando.
— Devemos ser muito poucos. Esse conhecimento não é algo que você encontre na biblioteca.
— Não, achariam que somos loucos se publicássemos isso. Eu mesmo achei que era doido por muito tempo, até ler Kurt Vonnegut. Ali eu vi que tinha que ter mais alguém no mundo como eu. Depois, descobri que no passado éramos bem mais comuns. Por que somos tão poucos agora, para mim, é um mistério.
Tinha sessenta e cinco anos e ainda trabalhava no CRAS. Era meu último dia de vida. Atendia uma menina vítima de abuso sexual. O padrasto estava preso, mas por quanto tempo? Possivelmente mais uma menina a trilhar os caminhos que já percorri. Não teria como saber.
No fundo, eu tinha uma ponta de inveja. Ela poderia ver o mundo que vem depois de mim, enxergar além da barreira de minha morte. Se por um lado podia ser uma bênção viajar no tempo, viver os momentos em uma ordem diferente do normal, por outro lado eu não tinha exatamente controle de onde e quando estaria a seguir. Não era tão disciplinada como o Arthur.
— Se aquele homem voltar, vou fugir de casa — ameaçou a menina, me trazendo de volta à realidade.
O dia de trabalho passou. Enquanto pesavam as batatas no mercado, minha mente refletia sobre o sentido daquele sentimento de vazio. Talvez o problema era que nosso ponto de vista do tempo nos desse uma existência imortal. Quantas vezes já tinha vivido esse momento? Talvez fosse uma prisão, um tipo de inferno para almas más e condenadas.
Quando saí do mercado, eu vi um elfo na esquina, aguardando o sinal. Não lembrava de ter vivido aquele momento. O elfo olhou para mim e disse:
— Filha, alguns de nós preferem ser humanos. Eu te admiro muito por essa escolha — disse aquele que era o meu verdadeiro pai.
O sinal abriu, e ele atravessou rapidamente, me deixando para trás. Eu continuei em direção à morte. Mas minha mente voltou para quando nasci e fiz a minha única e verdadeira escolha: ser humana.