Prólogo
Epílogo
Conto
Naquela noite, tudo o que eu queria era me divertir, sair da rotina estressante do trabalho, beber e curtir com os amigos... Mas eu deveria saber que aquele era um dos típicos dias — noites, nesse caso — em que não se deve sair de casa. Eu devia ter notado os sinais do destino me dizendo que o melhor para mim era ficar em casa.
Tudo começou com o primeiro convite recusado. Depois, outros chegaram, um atrás do outro. Nenhum dos meus amigos poderia sair naquela noite. Uns só queriam descansar da semana, outros já tinham algo marcado com outra pessoa ou tinham que ficar com a família. Lembro-me de ter ficado chateado, mas eu entendia que esse tipo de coisa acontecia. Ainda assim, eu queria sair. E o fiz.
Fui para um bar temático de rock, imaginando qual banda estaria tocando, mas não teve música ao vivo naquela noite. Estava um pouco decepcionado, mas não o suficiente para desistir da noitada. Afinal, ainda havia música tocando de CDs de bandas famosas, e o clima ameno estava gostoso. Pedi e bebi algumas cervejas enquanto olhava ao redor. Eu estava sozinho e queria companhia, de preferência feminina.
Encontrei-a sentada sozinha no balcão, bebendo algum drinque chique de cor vermelha, talvez um Bloody Mary — nunca fui bom conhecedor daquelas frescuras. Era minha chance, não custava tentar. Levantei-me, e fui até a moça com um sorriso largo na face.
— Boa noite. Será que posso me sentar ao seu lado?
Ela me olhou, me analisando por um tempo antes de responder:
— Claro.
Tentei puxar papo sobre diversos assuntos, mas a moça se limitou a dar respostas curtas, mais por educação do que por interesse. Mulher difícil. Eu continuei tentando.
— Então, está sozinha nesta noite? Posso oferecer algo, te convidar para comer alguma coisa?
— Desculpe, não — ela disse, tentando não parecer rude. — Estou esperando uma pessoa.
Murchei um pouco.
— Hum... Esperando o namorado?
— Namorada. — E sorriu, olhando para a porta.
Virei-me para olhar também, e vi uma linda morena trajando um vestido tubinho colado vindo em nossa direção. Ela parou diante de minha companhia, e as duas se beijaram enquanto eu olhava boquiaberto. Eu não tinha a mínima chance com nenhuma das duas.
A primeira moça me olhou e sorriu antes de se despedir, e as duas se afastaram para se sentar a uma mesa. Eu fiquei ali, agora desanimado. Não estava mesmo com sorte. Decidi ir embora depois de tomar mais algumas cervejas.
Saí do bar e parei na calçada. O tempo esfriara e eu lamentei não ter me lembrado de levar um casaco. Cruzei os braços para me manter aquecido e caminhei meio cambaleante. Havia bebido demais em um curto espaço de tempo. Depois de algumas quadras, uma névoa começou a tomar as ruas, tornando a atmosfera sombria. Senti um calafrio estranho, mas murmurei para mim mesmo que só estava impressionado porque estava bêbado.
Estava quase chegando em casa quando ouvi uma voz vinda de um beco, que quase me matou do coração.
— Ei, rapaz... — disse fracamente, e tossiu. — Tem um trocado para um velho homem?
Cogitei ignorá-lo e ir embora, mas fiquei com pena do velho. Tirei a carteira do bolso e peguei uma nota antes de tornar a guardá-la. Estendi o dinheiro ao mendigo, pensando em lhe trazer um cobertor mais tarde, quando aquele homem agarrou o meu pulso com força e me puxou em sua direção.
Protestei, xinguei e tentei me soltar, mas o aperto firme me impedia de sair dali. Como é que um velho desnutrido podia ter tanta força? Olhei para o rosto dele e congelei com o que vi. No lugar de seus olhos, havia um buraco de escuridão profunda, como se eu estivesse encarando a vastidão infinita do universo.
O mendigo abriu a boca, e seu hálito pútrido me atingiu, embrulhando meu estômago. Ele me puxou mais para perto e botou a boca nojenta em meu ouvido.
— Você vai morrer... — sussurrou com uma voz sinistra.
Arregalei os olhos e recuei, e ele enfim me soltou. Não ousei olhar em seus olhos, com medo de encarar novamente aquele vazio desolador, e saí correndo dali, de volta para casa.
Minutos depois, cheguei ofegante e me apoiei nos joelhos para vomitar no gramado. Depois que os espasmos no estômago acabaram, fui tropeçando até a porta de entrada e consegui abri-la depois de algumas tentativas.
Tomei um banho para tirar o cheiro de bebida, vômito e podridão onde o mendigo me tocara. Depois, me enfiei debaixo das cobertas, ainda lembrando-me daqueles olhos assustadores. Demorei um tempo para dormir, mas, quando consegui, tive o primeiro de uma longa série de pesadelos.
***
Eu estava em lugar algum.
Literalmente.
Para onde eu olhava, havia apenas escuridão ao meu redor. Eu parecia flutuar no vazio, mas sentia algo sob meus pés, como se estivesse apoiado no chão. Agachei-me e tentei tocá-lo, mas minhas mãos seguiram retas como se não tivesse nada ali. Com isso, senti meu corpo escorregar, e eu caí e caí indefinidamente, em uma queda eterna, enquanto uma risada sinistra ecoava de todas as direções...
***
Acordei caindo da cama. Xinguei, sentindo a cabeça doer por causa da ressaca. Aquele sonho fora muito estranho, mas acreditei que a culpa era do encontro na noite anterior. Balancei a cabeça, na esperança de fazer as lembranças sumirem, e a dor latejou. Eu precisava de um chá.
Desci até a cozinha e procurei os pacotes de chá de gengibre, que sempre me ajudavam com a ressaca. Preparei bem forte, coloquei na caneca e bebi. Cuspi em seguida ao sentir o gosto estranho. Olhei o líquido e vi que, ao invés de um amarelado translúcido, o que estava ali era algo escuro, viscoso e avermelhado... Sangue.
Larguei a xícara, e o objeto se espatifou no chão. Fugi da cozinha e parei ofegante na sala, tentando absorver o que havia acontecido. Quando tomei coragem para voltar e limpar a bagunça, os cacos de porcelana ainda estavam lá, mas o líquido voltara a ser chá; não havia mais resquícios de sangue.
Eu só podia estar vendo coisas.
Limpei tudo e decidi sair. Tomei um analgésico para aplacar a dor que ainda sentia, peguei meus fones de ouvido e fui caminhar. Uma música agradável tocava no rádio, e aquilo me acalmou. No meio do caminho, passei no mercado e comprei algumas coisas para comer, então decidi que estava na hora de voltar para casa.
A um quarteirão de distância, comecei a sentir a terrível sensação de estar sendo observado. Parei e olhei ao redor. Havia algumas pessoas na rua, passeando em pleno sábado, mas ninguém parecia interessado em mim. Voltei a andar, incomodado. A sensação não foi embora.
De repente, uma forte estática tomou o sinal da rádio e quase me deixou surdo. Arranquei os fones das orelhas, ouvindo o chiado ainda reverberando na cabeça, e um movimento ao lado chamou minha atenção. Olhei, e meu coração quase parou quando vi o mendigo ali, sorrindo para mim.
Corri de volta para casa e tranquei tudo.
***
Eu estava de volta naquele lugar negro, no meio do nada.
Não estava mais caindo, mas continuava sem enxergar algo além do completo breu. Como naquela tarde, eu me sentia ser observado. Andei sem rumo ou direção, mas o que quer que me observasse parecia me seguir.
Sussurros surgiram, dizendo algo que não entendi. Estavam baixos, mas logo se multiplicaram e se tornaram mais altos, até que consegui entender algumas coisas.
“Você não é nada... Mais um na multidão...”
“Não fará falta... Não é ninguém...”
“Você não importa... Sua morte não importa...”
“É apenas uma cabeça... Uma cabeça de gado...”
“O mestre está com fome... Precisa comer...”
“Você vai morrer... Em breve vai morrer...”
Assustado, eu corri, mas as vozes vinham de todo o lugar, me perseguindo, dizendo coisas horríveis, seus sussurros aumentando até que se tornassem mais um zumbido contínuo de um conjunto de insetos.
Gritei, tentando afastar aquele som de mim, em vão. Tudo o que recebi de volta foi, somado ao zumbido infernal, a mesma risada que ouvira no pesadelo da noite anterior.
***
O domingo foi uma grande porcaria. Depois de mais uma noite tendo pesadelos, eu não tive saco para sair (e não queria admitir que estava com medo de ver o mendigo outra vez). Passei a manhã inteira adiantando trabalhos e, quando dei por mim, já era metade da tarde e o estômago roncava de fome.
Estiquei-me, fui até a cozinha e coloquei uma pizza para assar. Enquanto a comida não estava pronta, fui até a sala e liguei a televisão. Estava sem sinal e mostrava apenas uma tela cheia de chuviscos e chiados de estática. Tentei outros canais, mas todos deram a mesma coisa. Talvez fosse um problema na antena, foi o que pensei.
Fui para fora da casa, peguei a escada e a encostei na parede para poder chegar ao telhado. Subi e mexi na antena, mas aparentemente não havia nada de errado. Voltei para a escada e, quando estava na metade dela, o degrau de madeira em que estava se quebrou. Perdi o equilíbrio e tentei me agarrar no telhado, mas o movimento súbito fez com que a escada tombasse para o lado oposto.
Eu caí.
Minha sorte foi ter uma piscina no quintal. Quase morri afogado enquanto tentava sair dela, mas ao menos não quebrei nenhum osso.
Encharcado, voltei para dentro, ainda tremendo pelo susto. Sequei-me, troquei de roupa e me sentei no sofá da sala, já mais calmo. A televisão estava escura, achei que houvesse se desligado sozinha. Peguei o controle para ligá-la e notei a lâmpada interna do aparelho acesa. A televisão estava ligada. Estranhei e me aproximei. Seria mais algum problema técnico? Não sabia, mas aquela escuridão que emanava da tela me assustava... Lembrava o lugar dos meus pesadelos e os olhos daquele homem desconhecido...
O canal voltou a funcionar de repente, no volume máximo, me fazendo saltar para trás, assustado, e caí derrubando o sofá comigo. Quase me machuquei feio, podia ter quebrado o pescoço daquela forma. Resmungando de dor, levantei e ajeitei o móvel. Procurei onde o controle havia caído e diminuí o volume até uma altura aceitável. O cheiro de fumaça indicou que minha comida estava queimando.
Corri e consegui salvar a pizza antes que fosse tarde demais. Raspei a parte queimada, voltei para a sala com a comida e um suco e me acomodei no sofá. Olhei desconfiado para o suco, assim como vinha fazendo com tudo o que bebia desde o susto com o chá. Estava normal. Talvez não tivesse mais surpresas desagradáveis.
Peguei o primeiro pedaço de pizza e comi. Quando estava na metade da refeição, comecei a me sentir nauseado. Mais uma mordida e senti algo estranho na textura. Cuspi na minha mão para ver o que era. Em meio à massa de comida mastigada e saliva, havia um verme se retorcendo. Olhei de imediato para a pizza em cima da mesa e vi algo podre, cheio de vermes se retorcendo e rastejando roliços.
Larguei tudo ali e saí correndo para o banheiro, onde vomitei tudo o que havia comido. Não tive coragem de comer mais nada ou voltar para a sala até o dia seguinte.
***
Eu estava de volta ao local dos pesadelos. Dessa vez, eu sentia um chão abaixo de mim, fétido, gélido e lamacento. Eu estava de quatro, chafurdando naquela podridão. Tentei me levantar, mas meus pulsos estavam presos naquela coisa.
“Corpos podres, sem esperança, sem vida... A esperança está morta...”
“Todos estão mortos por dentro, como zumbis... Destruindo, comendo, mas mortos...”
“Frios e sem alma... Sempre em busca de algo para preencher o vazio de uma vida morta...”
Aqueles sussurros de novo. Eu odiava aqueles sussurros. Tentei ignorá-los e tentei me soltar.
Senti meus sentidos vacilarem, e uma forte náusea embrulhou meu estômago. Vomitei um bolo de vermes ainda vivos, que começaram a rastejar pelo meu corpo. A cada vez que meu estômago se comprimia, eu punha mais uma leva daqueles malditos para fora, e me sentia congelando preso àquela lama.
“Os mortos alimentam os vivos... Os vermes comem o que a morte tocou...”
Os vermes se enterraram em minha carne; eu os sentia comendo e rastejando dentro de mim. Eu chorava em agonia, querendo acordar daquele pesadelo macabro.
Senti algo por trás de mim, que arrepiou meus cabelos. Uma presença forte, aterradora, maligna. Aquilo ria e, eu tinha certeza, desejava me matar.
“Você vai morrer... Em breve vai morrer...”
A criatura se agachou ao meu lado. Eu sentia sua respiração ardente e fétida batendo contra meu pescoço, mas fechei os olhos com força, sem coragem de encarar aquilo. O ser inspirou fundo, e eu acordei quando seu urro reverberou todos os meus ossos.
***
— Você está estranho — um amigo comentou no horário de almoço.
Eu olhava para o hambúrguer sem coragem de comer. O episódio desagradável do dia anterior ainda embrulhava meu estômago só de lembrar. Apesar de sentir fome, não queria comer e ter a sensação de ingerir vermes outra vez. Quando fui limpar a bagunça naquela manhã, não havia sinal deles, mas a sensação não podia ser apagada da mente. Os pesadelos com seres rastejantes só pioraram ainda mais.
— Eu só não dormi direito — murmurei, massageando os olhos.
— Cara, se você não tá legal, fala com o chefe pra ele te liberar. Tenho certeza de que ele vai preferir você em casa descansando do que passando mal aqui sem conseguir fazer nada.
— Eu estou bem — menti.
— Você é quem sabe... Mas qualquer coisa me avisa.
— Tá bom — concordei, forçando um sorriso fraco.
Ele terminou de comer, e nós nos preparamos para voltar para a firma. Quase chegando lá, senti aquela náusea de novo e parei. Abaixei a cabeça e respirei fundo para dissipar o mal-estar. Quando ergui a face, a alguns metros de distância estava o mendigo me observando.
Apavorei-me. Por causa do medo, minha mente não raciocinou direito e eu corri direto para a rua, sem perceber que o sinal estava aberto para os veículos.
Um carro me atropelou, e eu apaguei.
Fui levado para um hospital. Acordei em um de seus quartos todo branco, um dia depois. Por sorte, não sofrera nenhum ferimento grave; em alguns dias estaria bem. Disseram que eu havia sofrido algum tipo de ataque de pânico, causado por estresse, e que eu precisaria de um tempo para relaxar e descansar. Prescreveram um calmante para que eu pudesse dormir.
Assim, depois de mais dois dias de observação, voltei para casa. Aquele foi o único tempo em que tive paz.
***
Eu estava em um estado semiacordado. Os calmantes me entorpeceram, e eu dormi até o meio da noite. Estava tudo escuro, meus olhos não abriam, mas eu sentia que estava em minha cama. Depois de um tempo, tive a impressão de não estar mais sozinho.
Algo subiu na cama e amassou o colchão conforme caminhou em minha direção. Eu suava frio, mas não conseguia me mover. Estava paralisado. O ser montou em cima do meu corpo, e eu senti um peso tão grande que fiquei sem ar; achei que fosse morrer esmagado.
Seu bafo pútrido atingiu minhas narinas quando aquilo pareceu se sentar em meu peito. Senti uma língua úmida, viscosa e calejada, lambendo minha face. Aquilo me causou um extremo nojo, mas eu mal conseguia contorcer minhas feições.
O bafo seguiu até meus ouvidos, e eu o ouvi sussurrar com uma voz assustadora, sobrenatural. Era uma mistura de vozes distintas, dizendo a mesma coisa como se fossem uma só, como se fossem uma legião.
“Seu tempo está acabando... o de todos vocês... Mas você...” ele riu, “Você irá mais cedo... Você irá morrer...”
Após dizer aquilo, eu consegui abrir os olhos. E me arrependi.
Palavras não seriam capazes de descrever aquele ser. A sensação foi como se eu estivesse olhando para a personificação do inferno. Uma escuridão podre e sem fim, com opacos olhos vazios e uma boca torta cheia de dentes torcidos em um sorriso capaz de esboçar um mal primordial, mais velho que o tempo.
Ele lambeu meu rosto outra vez e se afastou. Quando eu pensei que finalmente o demônio iria embora, ele lançou suas garras contra mim e rasgou o meu peito. Eu gritei, e a dor me libertou daquela paralisia.
Joguei-me para fora da cama, sentindo o peito arder ferozmente. Olhei, esperando ver meu torso dilacerado e banhado em sangue, mas não havia ali nada além de longas marcas vermelhas que ainda doíam e logo desapareceriam sem deixar vestígios.
Não pude deixar de pensar que o demônio era como um gato, brincando com sua comida antes de devorá-la...
Aquelas visitas se seguiram da mesma forma pelas noites seguintes.
***
Hoje, eu acordei sem saber mais o que posso fazer. Não vejo soluções e não tenho esperança de conseguir me livrar de meu perseguidor. Mas eu quero viver... Não quero virar comida para aquela criatura. Tem de haver algum jeito... Só queria saber por que aquela coisa escolheu me atormentar... Eu não quero morrer.
Eu olho para o espelho da sala e vejo aquele ser me encarando de volta, sombrio e maligno, sorrindo em expectativa. Aquilo passara a aparecer em todos os espelhos também nos últimos dias. Os remédios não fazem mais efeito, e penso que só posso ter enlouquecido. Eu não aguento mais. Ele ri, e eu juro escutar o riso daquela coisa, mas não noto que sou eu mesmo quem está rindo junto, desesperado. Não posso deixar aquele demônio me pegar.
Tenho que fazer algo.
A sala se nubla enquanto me movimento. Fecho a janela para impedir que a neblina da noite não entre, mas não há nada do lado de fora; é uma noite de verão. A névoa está em meus olhos, em meus ossos. Eu tremo, e a respiração acelerada sai em lufadas brancas diante de mim. Resolvo acender a lareira, mas o espelho está próximo e estou com medo de me aproximar e ser tragado para dentro pelo demônio.
Procuro ao redor e tiro a colcha que cobre o sofá. Olho para o espelho e dou alguns passos lentos, os braços esticados à minha frente, o tecido nas mãos. O ser infernal ri de mim, e eu cubro sua cara feia com a colcha. Agora, posso chegar à lareira.
Coloco a lenha de qualquer jeito ali dentro, depois acendo com cuidado. É difícil fazer o fogo pegar quando se está tremendo dos pés à cabeça. Sento-me no sofá e fecho os olhos, tentando limpar a mente. Estou uma pilha de nervos, próximo a um colapso. Eu só queria não ter saído naquela noite. Preferia não saber da minha morte a viver essa vida miserável em que estou hoje.
O frio não ameniza de jeito nenhum. Levanto-me e coloco mais lenha dentro da lareira. Observo as chamas tomando a madeira, e escuto a coisa maldita sussurrando no espelho ao lado:
“Não adianta aquecer algo morto.”
— Cale a boca! — Ofego e me afasto, tapando os ouvidos, mas aquela voz arrastada me persegue, como que entranhada em minha mente.
“Todos vocês são almas geladas vivendo sem rumo, correndo atrás de qualquer coisinha que provenha um pouco de luz e calor...”
Corro até o aparelho de som e o ligo no volume máximo. O rock pesado chega a estremecer os vidros das janelas, tão alto que mal consigo ouvir meus pensamentos, mas ele continua ali, um sussurro sobrenatural, ouvido acima de qualquer som mundano.
“Não passam de mariposas estúpidas voando em torno de um mata mosquitos ligado, sem saber do perigo que correm até caírem tostados e mortos... Você vai morrer... Vai queimar...”
Eu grito e caio no chão, soluçando. Não aguento mais. Nunca fiz nada para merecer isso.
Miseravelmente perdido em autopiedade, não noto o que acontece ao meu redor. A colcha escorrega silenciosamente para o chão, e só há trevas abissais dentro do espelho. A lareira crepita e, quando a madeira estala, um pequeno pedaço ardente voa e cai para fora. Em um piscar de olhos, o tapete pega fogo. O calor parece não chegar até mim, então só noto que algo está errado no momento em que sinto o cheiro da fumaça.
Olho ao redor e vejo que minha sala se tornou um pandemônio ardente. O fogo se alastrara sem que eu percebesse e tomara quase o cômodo inteiro. O espelho tomba para a frente e se quebra em milhares de pedaços, por pouco não atingindo minhas pernas. Cada caco sombrio permanece negro como piche, consumindo a luz ao redor.
Eu preciso sair daqui.
Corro para fora da sala até o corredor e vou até a porta de entrada. Está trancada. O mesmo acontece com as portas e janelas da cozinha, e depois em todos os outros cômodos em que visito. Parece que todas as possíveis saídas estão seladas.
Em meu quarto, sinto o fogo crescendo e consumindo tudo até o segundo andar. Eu choro em desespero e bato compulsivamente contra o vidro da janela enquanto grito clamando por ajuda, mas ninguém me ouve devido à música alta vinda do andar inferior. O aparelho de som ainda funciona e abafa minha voz. Aquele rock é minha música fúnebre.
Vejo alguém do outro lado da rua e arregalo meus olhos em pavor ao ver o arauto do demônio me encarando com seus olhos medonhos. Ao vê-lo, lembro-me do que ele me falou quando o vi pela primeira vez.
Em poucos minutos, meus gritos de dor e agonia se somam à melodia da música e ao som das labaredas, consumindo meu lar e meu corpo.
Diante do espetáculo fúnebre, o mendigo ri ensandecido.