A Terra oca

Terror
Outubro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
O Culto

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A Terra oca
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O ano era 2029, e o mundo, a beira do caos. Os planetas se alinharam de forma estranha e rumores sobre OVNIS insuflavam o imaginário das pessoas dividindo-os entre os que se deslocavam para os montes, os que construíam abrigos debaixo da terra, e aqueles que  lotavam igrejas e cultos. 

Os governos tentavam controlar a histeria, mas não sabiam lidar com o inesperado. Desaparecimentos eram notificados com frequência. Simultaneamente, casos de  loucura e suicídios alcançavam índices alarmantes.  

A ciência tinha avançado muito mas, pouco se traduziu em benefícios ao cidadão. Os investimentos se voltaram para o espaço, investindo em armamentos e sondas a custos exorbitantes. Aviões supermodernos patrulhavam áreas onde foram relatados eventos estranhos. Entretanto, nada chegava à mídia como um fato constatado. Apenas imagens de balões meteorológicos veiculavam nos noticiários, no intuito de acalmar a sociedade conturbada. 

Em um dos mais modernos e aparamentados porta aviões da Marinha Americana, um modelo super avançado de avião decolou para teste. Porém, após uma hora de voo...

- Mayday! Mayday!

Em um “céu de brigadeiro”, o capitão Allan Barns gritava freneticamente pelo rádio, acoplado ao prompter no visor de seu capacete. Os instrumentos em seu painel ficaram loucos, coisa que a cinco minutos atrás não dera indícios de qualquer falha iminente. 

Era um piloto experiente. Já sofrera avarias sob forte bombardeio, mas não tinha ocorrido nada que justificasse tamanha instabilidade. A aeronave era absurdamente nova, contudo, o sidestick parecia ter sido dominado por um piloto automático embriagado. A pressurização estava dando problemas, o indicador de altitude mostrava aproximação do solo, os flaps estavam emperrados e o horizonte artificial de cabeça para baixo. Nada fazia sentido. Ao ver que o vetor de aproximação indicava rota de colisão e a aeronave embicava para baixo, acionou o ejetor.

Rodopiou cerca de cinco intermináveis minutos, até uma rajada de vento ártico embolar seu paraquedas e jogá-lo contra uma placa de gelo avermelhada. O forte impacto o manteve desmaiado por um par de horas. Acordou confuso, com o capacete rachado e um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca. Estava congelando. Com dificuldade, soltou-se da cadeira e enrolou o paraquedas. Estranhou a cor que manchava o gelo com um tom escuro. Entretanto, focou a atenção no que poderia vir a ser útil. Providencialmente o assento virava uma mochila, com um compartimento contendo um kit com: sinalizador, primeiros socorros, água e comida desidratada. Não fazia a menor ideia de onde estava, e muito menos em que direção seguir. Disparou o sinalizador e esperou. Nada.

O silêncio o oprimia, e a vastidão do deserto de gelo ao redor trazia um sentimento de completo abandono.  Ficou imaginando quanto tempo levaria para que dessem por sua falta ou, para ser realista, pela perda de milhões pela aeronave. O Transponder devia estar emitindo um sinal de localização, apesar de estar totalmente fora da rota pré estabelecida.  

Subitamente, deu-se conta de que não ouviu a explosão. Talvez seu avião tivesse perfurado uma placa de gelo e afundado. Talvez não. Seria uma resposta parcial ás suas preces. Preces... Piada. Há muito tinha perdido completamente a fé nos homens e em Deus depois dos absurdos das guerras que participara. Resolveu confiar em sua intuição e procurar pelo seu passarinho.

Caminhou por horas sobre o gelo um tanto escurecido. Estava certo de que a posição do sol indicava estar no caminho certo, mas o peso foi vencendo. Retirou o kit e deixou a mochila para trás. 

Estava no início de dezembro, seria a época que muitos de seus companheiros estariam se planejando para as festas natalinas, mas isso tinha ficado no passado. Ainda que fosse o mais habilitado, já tinha feito a sua parte. Uma dor nas costas o perseguia e só aumentava após cada missão. Contava os dias para a reserva e poder se afastar daquela loucura que infestava a mente das pessoas. Contava com o amigo de anos, um oficial médico que justificaria sua aposentadoria, contudo, Barns queria sair por cima, testando aquela belezura recém adquirida.

Ainda não tinha ideia de como relataria um acidente que não fazia sentido nenhum para ele. Quando estava no ar, sentia que a aeronave era uma extensão de seu corpo e essa nave nova certamente não tinha problemas de coluna. Não tinha errado.

De repente, como se algo tivesse travado seu pé direito, foi de encontro ao chão. Atordoado, levantou devagar e olhou ao redor, mas não viu nada em que pudesse ter tropeçado e uma dor de cabeça começava a perturba-lo. 

No horizonte, nenhum destroço ou fumaça indicava qualquer sinal da nave. Um hálito de frio mais intenso anunciava que o anoitecer estava próximo, fazendo-o desanimar. Porém, um reflexo distante, à sua direita, chamou sua atenção. Seus olhos brilharam. Talvez fosse uma parte da fuselagem refletindo os últimos raios de sol. Esqueceu o cansaço, apressou o passo e, meia hora depois, conseguiu visualizar parte da cauda apontada para o céu. 

- Merda! Meu passarinho está se afogando.

O comentário solitário estava longe de ser uma brincadeira. Caso a nave fosse engolida pelas águas geladas, seria muito mais difícil de ser encontrada. Aquela placa de gelo que o sustentava, provavelmente escondia quilômetros de água abaixo. Estaria perdido para sempre numa esfera abissal. Não bastasse isso, a esperança de se abrigar no cockpit se frustrara.

Barns suspirou, sentou sobre o tecido dobrado do paraquedas e, em um culto silencioso,  observou seu pássaro submergir lentamente. O estômago roncava, as costas doíam e lembrou que não tinha se hidratado por horas. Procurou pelo Kit preso à cintura, mas não o encontrou. Rodeou o perímetro  tentando controlar o desespero que lhe apertava a garganta. Tinha certeza absoluta de ter prendido o saco ao cinto com um nó de marinheiro. O saco havia desaparecido. Agora estava longe demais para voltar e revisar a mochila. 

- Merdaaaa!!! Tô fodido. – gritou para o céu.

Repassou as últimas horas como uma despedida, e um sorriso da derrota lhe veio à boca. Tinha sido uma vida boa. Era um exterminador de ameaças. Gostava da sensação de poder voar sobre os insetos. Achava que a pior coisa sobre a Terra era o próprio homem, com raríssimas exceções. “Quem, em sã consciência, ia criar um ser tão escroto que destrói tudo em que põe as mãos?”. Acreditava que apenas a seleção natural não daria conta. A lei do mais forte sim e por isso tinha entrado para a Marinha. 

Barns era excessivamente pragmático, e o ignóbil estilo de pensar se tornou um lema de vida confortável. Mantinha-se protegido pela aura de ignorância que os brutos exalam, afastando opositores; captando a admiração de seus superiores, aumentando seu salário e prestígio perante o esquadrão que liderava. 

Esfregou os braços com vigor, exalou o hálito quente entre as mãos, mas nada era suficiente para aplacar o frio glacial. De repente, lembrou-se de onde estava sentado e intuiu que ainda não era a hora de desistir. Improvisou um saco de dormir rudimentar, como se fosse uma mortalha, e aguardou pela noite.

Olhava para o céu, mas uma névoa densa não lhe permitia vislumbrar as estrelas e constelações. A escuridão parecia aumentar ainda mais o frio. O médico, e aparentemente seu melhor amigo, já o havia orientado quanto as situações adversas a que um ser humano comum poderia estar submetido: medo, pressão, fome, e as temperaturas extremas estavam entre elas. Em breve a hipotermia faria seus batimentos cardíacos diminuírem e ele cairia em sono profundo, quase comatoso. Talvez nem sentisse a aproximação do abraço da morte. Contudo, quando as pálpebras estavam pesando como tijolos, vagalumes chamaram sua atenção. “Vagalumes? Aqui?”. Barns arregalou os olhos.

- Que porra é essa?

***

Iglu?

Barns parecia uma crisálida, enrolado naquele paraquedas. Com dificuldade, procurou sentar para observar os pequenos focos de luz que dançavam em meio ao breu absoluto. Estava encantado. Pareciam inúmeros vagalumes que voavam em pares e que se aproximavam mais e mais, até arrancarem uma de suas botas.

- Mas... O quê? Quem...? Péra!

Sons ininteligíveis passaram a vir de todas as direções. Gritos e urros misturados a um gorgolejar pavoroso. Fossem quem fossem, tentavam intimidá-lo. Pensou que pudesse estar em um pesadelo ou ficando louco, até que a outra bota também se foi. Estava sendo roubado, mas não conseguia ver por quem. De certo os mesmos que surrupiaram seu Kit de sobrevivência.

Barns estava enrolado no tecido de nylon e sem poder reagir. Cobriram sua cabeça com uma aba solta e, agarrado pelo colarinho, viu-se arrastado pelos pontos de luz. Através do tecido fino, percebeu que se tratavam de grandes pares olhos que emitiam um brilho próprio, amarelado e assustador. 

O que quer que fossem, eram pequenos e ágeis. Por vezes o largavam no chão e a comunicação entre eles se elevava, como se estivessem deliberando sobre o que fazer, para novamente o pegar por uma das extremidades e voltar a arrastá-lo. A dor nas costas beirava o insuportável e a velocidade com que se deslocavam fazia com que seu crânio chacoalhasse contra o gelo duro. A tortura diminuiu quando sentiu seu corpo inclinar. Tentavam passá-lo por uma espécie de buraco estreito, que se tornava mais e mais íngreme e, surpreendentemente, quente. Era como um feto passando pelo canal de parto. Sentiu que pequenas mãos o empurravam e outras o puxavam, enquanto gritos estranhos ecoavam como brados de incentivo.

Surpreendentemente ele não se abalou. A coisa já estava pra lá de surreal para que pudesse formular um pensamento a respeito. Estado de choque? Talvez. Mas, a verdade é que estava curioso.

Parecia que o túnel apertado se expandiu para um ambiente maior, onde o largaram.  Estava sobre uma superfície arenosa e irregular que lhe cutucava a maldita coluna. O incômodo sequer se comparava com a angústia do silêncio, e a impossibilidade de ver nitidamente o deixava cada vez mais ansioso. Nenhum movimento era percebido, além de uma claridade e um calor quase reconfortantes. “Talvez eu esteja numa espécie de abrigo. Num Iglu? Sim!” – pensou. Mesmo que nunca os tivesse visto, ou pouco ouvido falar dessa raça, sabia que existiam aborígenes em lugares remotos. De alguma maneira, esse pensamento o acalmou. Provavelmente estava próximo ao território do Alasca e isso era uma espécie de localização. Provavelmente tinha sido capturado por índios, uma categoria inferior de humanos e, mesmo que fossem primitivo aos seus olhos, não estaria mais sozinho no meio do nada, e isso era bom.

Era no que Barns precisava acreditar pois, do contrário, teria que encontrar uma explicação plausível para a sensação de calor em seus pés descalços e para aqueles olhos com luz amarelada.

Subitamente, alguém o desenrolou como um tapete. Abriu os olhos devagar, tentando se acostumar a luz do ambiente. Quando conseguiu focar, percebeu que o vestíbulo em que estava possuía inúmeros túneis de onde saíam seres pequenos, pardos, seminus e com grandes olhos amarelos. Estavam sérios, como se ainda não soubessem o que fazer com ele.

Uma mistura de seiva, clorofila ou algo do tipo que pairava no ar. Absolutamente incomum, como tudo que o cercava. Do meio da plateia surgiu alguém supostamente mais velho, talvez o líder deles, no entanto, não parecia ter mais que vinte e poucos anos.

O serzinho atarracado levantou um cajado com a mão direita e disse algumas palavras de ordem, ao que todos começaram a falar naquela língua estranha. Um dialeto próprio e incompreensível. Eram urros, silvos, gritos, misturados a alguma coisa que parecia mais com o canto das baleias e uma foca em trabalho de parto, ainda que não tenha visto nada do gênero.

O homenzinho, que tinha olhos flamejantes e de coloração azulada, o cutucou com a ponta do cajado, como que para se certificar de que ainda estava vivo. Em algum momento do alvoroço, Barns tinha fechado os olhos e prendido a respiração. 

- Dals vulo undur comenissagem? – disse o homenzinho em timbre mais apaziguador.

Barns abriu os olhos e se deparou com um rosto jovem e de olhos enormes a um palmo do seu.

- Dals vulo undur comenissagem? – ele repetiu, condescendente.

Todos ficaram quietos, como se esperassem por uma resposta. 

Percebendo que não era compreendido, o homenzinho bateu com força seu cajado no chão e uma tecla SAP imaginária foi acionada. 

- Você está bem? – repetiu o líder.

Barns assentiu espantado, e o vozerio, agora miraculosamente compreensível, era de euforia. Uma esquizofrenia coletiva tomou conta das galerias, ovacionando o carinha do cajado, que parecia ser alvo da adoração. 

Barns, que se imaginava como um grande prêmio ofertado ao aborígene, percebeu que, na verdade, estavam preocupados com ele. Atônito, foi ajudado por um par de pequenos a se sentar. O líder, de volta à linguagem não compreendida, mandou que lhe trouxessem algo.

- Beba isso. Vai se sentir melhor. – disse ao lhe entregar o líquido.

Barns olhou desconfiado para a substância esverdeada e viscosa que boiava em uma folha em cone. Calculou que sua vida estava dependendo daquela “roda da fortuna”. Se não morresse de frio, ou massacrado, provavelmente seria por envenenamento, mas não ousou rejeitar. Bebeu o agrotóxico com gosto familiar de suco de clorofila. Não era ruim, mas também não era bom. As pequenos esperaram em expectativa, até que ele terminasse de sorver a última gota. 

- Obrigado. – limitou-se a dizer, atiçando novamente a euforia do grupo.

O líder sentou de pernas cruzadas à sua frente, e novamente a tecla SAP foi ligada.

- Você não tem a menor ideia de onde está, não é mesmo?

Vozes, vindas das galerias, gritavam:

- É lixo como nós! – berravam à direita. 

- Não! Ele é um dos de cima. – contradiziam, à esquerda.

Novamente o líder ergueu um dos braços e fechou a mão, anunciando o fim da celeuma.

- Perdoem minhas crianças. Há muito não viam um de vocês. Pode pegar suas coisas de volta. – disse apontando para as botas e seu kit jogados a um canto.

- Como é que você faz isso? Essa coisa de eu entender o que vocês falam?

- Ah, isso? Telepatia. Dominamos todos os idiomas sobre essa Terra.

Barns arqueou as sobrancelhas e tentou disfarçar o olhar de descrença. Tal coisa seria impossível. O máximo que ele tinha conhecimento de fazer semelhante coisa, era um cara em um templo budista no Tibet, que dominava dez idiomas com fluência. Vendo que o baixinho estava solícito, continuou.

- O que exatamente eu bebi? 

- Uma mistura de seivas. – respondeu o líder. – Nosso único e essencial alimento. Não conseguiu identificar?

Barns olhou da folha em suas mão para o líder. Estava confuso, mas não perdeu a pose.

- Sim, mas... Como isso é possível? Não há nada no Alasca além de gelo e vocês esquimós. Pelas instalações rudimentares..., - disse olhando ao redor – isso não é cannabis importada. É?

O líder riu consigo mesmo e sacudiu lentamente a cabeça, como se estivesse lidando com uma criança impertinente.

- Levante-se. – disse-lhe ao fazer o mesmo. – Preciso te atualizar de algumas coisas, já que não vai mais sair daqui.

***

Unders

A baixa estatura não era um impeditivo para o ar imperioso que Kaos exalava. Líder dos Unders, há mais de três séculos, havia conseguido por ordem no mundo inferior. Utilizava-se de uma estratégia comum aos humanos do andar de cima, o sortilégio. Para ele, a delicadeza era uma arma muito mais poderosa, entretanto, ainda que a força viesse a ser necessária, seria seu último recurso. Detinha inúmeros conhecimentos infinitamente mais eficazes, adquiridos de seus antepassados e alguns amigos das estrelas. Pegou uma das mãos de Barns e o puxou para um dos túneis, sendo seguidos pelo cortejo curioso que descia ordeiro das galerias.

- Não somos esquimós, e poucos de vocês do mundo superior tem conhecimento de nossa existência. – confidenciou-lhe o líder. - Ficamos aqui em baixo, por escolha e por não nos submetermos a certos acordos. Vocês não nos perturbam e não os perturbamos. Simples assim. Mas, não se engane. - disse parando e fixando seus olhos enormes e brilhantes nos olhos de Barns.- Para sobrevivermos assim, tivemos que ser muito mais avançados que seu pequeno Beija-flor afundando lá em cima.

O tom de voz de Kaos foi tão profundo, que abalou a autoconfiança de Barns. Estava em um mundo diferente de tudo o que conhecia. Parecia uma grande caverna cheia de túneis e com um climatizador natural programado para confortáveis 25ºC. O túnel pelo qual entraram era demasiadamente longo, talvez o mais extenso de todos, com cerca de uns dois metros de altura por um e meio de largura. A medida que avançavam, Kaos passava as mãos pelas paredes, fazendo plantas surgirem e flores desabrocharem numa pequena demonstração de poder. Kaos ria de sua perplexidade pueril e procurava  satisfazer sua curiosidade, a medida do possível.

- Pode parecer que estou parafraseando um antigo conto infantil, mas não estou me aguentando...

- Pergunte. – interrompeu-o.

- Por que de olhos tão grandes? E por que parecem lanternas?

- Conhecemos as histórias dos irmãos Grimm e essa não é deles, apenas a imortalizaram. – riu. - Mas, respondendo à sua pergunta, Chapeuzinho, só os líderes possuem olhos azulados, no caso, eu. Foi uma adaptação decorrente de séculos debaixo da terra. A hostilidade a que fomos submetidos nos levou ao aprimoramento de inúmeras habilidades. A baixa estatura nos tornou mais velozes. A escuridão desenvolveu nossos olhos e a bioluminescência foi um bônus. O barro sobre nossos corpos nos protegeu do frio e os minerais contidos nele, do envelhecimento. Porém, nossa maior anomalia advém das seivas, nossa fonte eterna de juventude, cura e força. Você a experimentou. Por falar nisso, como vai a dor nas costas?

Barns se espantou. Não sentia mais dores ou fome e, por mais que tudo fizesse certo sentido, ainda não havia explicação para o óbvio: “Como conseguiam sobreviver a metros debaixo do solo, em um continente gelado e...  com plantas?”. Os Unders eram o Elo Perdido da humanidade e, caso conseguisse ser resgatado, já imaginava passar o resto da vida como um milionário vivendo de Royalties.

- Ledo engano, meu caro. – disse Kaos, rindo e apertando suavemente sua mão.

Chegaram ao fim do túnel, onde uma galeria colossal se abriu para um complexo centro de convivência, ladeado por um emaranhado de túneis que ele não fazia ideia onde acabariam. Um  agradável aroma exalava de árvores exuberantes, cipós e outras tantas plantas extraordinariamente belas. Havia uma fonte de água termal e cristalina cruzando o perímetro, cuja profundidade sequer dava para mensurar. Uma ponte suspensa ligava as laterais, expondo marquises sobrepostas em perfeita harmonia. Uma luz natural vinha delas, iluminando e aquecendo o ambiente. Estupefato, Barns estacou de fronte a uma enorme parede de gelo transparente que os separava do oceano escuro, onde animais marinhos exóticos e com luz própria pareciam conviver em aparente harmonia com os locais. Um ecossistema luxuriante, completo e autossustentável. Barns precisou ser puxado por um par de pequeninos que o conduziram por uma rampa à uma das plataformas superiores, onde numa espécie de câmara o aguardava. Seria seu quarto de hóspede, por assim dizer.

- Descanse um pouco para poder assimilar as coisas – sugeriu Kaos. - Podemos conversar mais tarde. Caso precise de algo é só dizer “Valu”, que Alguém virá atendê-lo.

- Valu? O que quer dizer?

- Já lhe disse. Alguém.

Barns o observou descer e encontrar com outros cinco que o esperavam sobre a ponte. Havia tensão. Kaos lhe devolveu o olhar, como sentisse ser observado, mas sorriu. 

Estava longe de ser um homem covarde, mas deu um passo para trás. Algo nele o deixava apreensivo. Era gentil demais, solícito demais e, lembrou de um antigo ditado: “A desconfiança é sentinela da segurança”. Ficou espiando por um pouco mais de tempo, tentando entender o que acontecia, mas temeu que seus pensamentos pudessem ser lidos. Se isso fosse mesmo verdade, seus planos de fuga seriam abortados antes que pudesse dar um passo - “Adeus Royalties”. 

Seu anfitrião parecia ser amado, respeitado e com pleno domínio daquele mundo secreto. Perguntou-se sobre o que mais poderia haver naqueles túneis. A curiosidade falava mais alto. Quem mais teria a chance de conhecer esse novo mundo? Ao mesmo tempo em que se sentia um sortudo, também era um prisioneiro. Seu quarto não tinha porta, aliás, nenhum dos outros também. O local já era uma prisão natural, desconhecido e inacessível aos pobres e ignorantes mortais. Sentiu medo.

- Valu. – sussurrou, e mal pronunciou a palavra, “Alguém” já estava à sua porta.- Você não teria um cheeseburguer, teria?

- Não. Kaos ordenou que lhe desse isso, caso pedisse. – falou com certa inquietação.

Desconfiado, Barns pegou a folha com uma coisa sólida que, com muito boa vontade, parecia com um hambúrguer, mas não era. Teve certeza na mordida. Era uma pasta com a forma do sanduíche, mas com gosto de mato. Comestível, mas decepcionante. 

Mal deu a bocada, desabou sobre o catre de folhas e um pesadelo excruciante o assombrou. Estava sendo violado por uma criatura grotesca que dominava seus pensamentos e o puxava para debaixo da terra. Tentáculos sugavam seu cérebro e implantavam dispositivos no lugar. Militares, congressistas e membros do clero, ofertavam cidadãos presos em jaulas eletrificadas. Kaos, sozinho, tentava conter o monstro com o poder de seu cajado, enquanto uma horda de pequenos, de  olhos brancos, alimentava a fera com sangue humano. 

***

Ele

- Anda, levante! –  disse Kaos a beira de sua cama, cutucando-o com o cajado.

Barns acordou empapado de suor. 

- O que está havendo? Parecia que eu estava prestes a ser engolido e...

- Foi apenas um vislumbre. – interrompeu-o – Nada do que eu dissesse o faria acreditar. Precisava que sentisse na pele. Siga-me, preciso lhe mostrar algo.

Barns, ainda zonzo, seguiu Kaos rampa abaixo e, para sua surpresa, “Alguém” não os estava seguindo. Não fazia ideia da rotina debaixo da terra mas, provavelmente, todos deviam estar dormindo e amanhecendo na superfície. Tudo estava muito silencioso. 

- Para onde estamos indo? – Barns perguntou.

- Tente fazer silêncio. Estamos todos em risco. Fui traído.

Há pouco tempo o baixinho era um líder adorado e respeitado, no entanto agora andava furtivo com seu prisioneiro. Estranhou.

- Quero que preste bastante atenção no que vou lhe dizer e mostrar. – disse Kaos andando apressado à sua frente. – Há milênios, nossos criadores, seres estelares poderosos nos largaram aqui, por nos considerarem como vermes, uma falha e, portanto, algo a ser descartado. Enquanto engatinhávamos, eles dominavam planetas. Um sentimento de vazio nos perseguiu e a sensação de termos sido abortados nos levou a fazer coisas inimagináveis a fim de sermos aceitos de volta. Nossos cultos e invocações acabaram despertando a atenção de divindades menores, tão carentes quanto nós, entretanto, muito poderosas. 

Enquanto avançavam por um dos túneis, Kaos iluminava as paredes com seus olhos, atestando o que dizia por meio de inúmeros desenhos e escritas rudimentares, entalhadas em baixo relevo nas paredes. Um precioso acervo rupestre. 

- Nossos criadores perceberam o que estávamos fazendo e que tínhamos nos multiplicado exponencialmente, atraindo outros seres e instigando a ira deles. O planeta então foi atacado por meteoros, dilúvios, erupção de vulcões, doenças..., mas não conseguiram nos exterminar. Alguns acabaram desistindo e voltando para as estrelas,  mas, o mais ameaçador deles está selado próximo ao núcleo, bem abaixo de nós. 

Kaos falava e o puxava pela mão, denotando que não havia tempo a perder. Barns não sabia se corria atrás dele ou tentava não bater com a cabeça no teto. Estava duvidando daquela conversa, mas tudo ao seu redor era tão real, que o tom sombrio de Kaos merecia sua atenção. 

- Uma parte de nós decidiu migrar para a superfície, buscando lugares mais quentes. Nós preferimos ficar aqui, para proteger o selo. Nos adaptamos, e evoluímos por meio dos túneis naturais, prolongando-os como um grande formigueiro. A fonte de nosso alimento foi trazida pelos túneis desde os Andes, nos permitindo a penetrar cada vez mais para dentro da terra criando nosso próprio meio de subsistência e perpetuação, coisa que vocês levaram mais de dois mil anos para conseguir. Mas o mal  de alguma forma tem vazado. Percebemos sua influência nefasta quando exterminou uma parte de nossos descendentes que vivia na superfície. A susceptibilidade de vocês é enorme, e preferimos nos manter isolados. 

- Você não está se referindo aos Maias, Incas e Astecas... Está?

- Sim.

- Isso é impossível! Como conseguiram se esconder por todo esse tempo?

- As Jubartes são nossas contemporâneas e sempre nos alertaram dos perigos iminentes, mas o sinal emitido por seu avião nos fragilizou. 

- Meu passarinho???

- Sim. – Kaos respondeu pesaroso. - Existem outros de nós, os Unders orientais, nada cordiais. De alguma forma eles conseguiram entrar em contato com um dos meus e o convenceu a nos trair. . – “Alguém”, Barns intuiu. - Eles querem abrir o selo. Se isso acontecer, nem a minha espécie, nem a sua, terão tempo sequer para um sorvete. Os Unders orientais se corromperam e esqueceram com quem estão lidando. Aliaram-se aos seus líderes e querem acordar a fera, esperando que ele os leve de volta às estrelas.

Pela primeira vez em sua vida, Barns percebeu que o que ele dizia se alinhava ao sistema vigente, e isso o perturbou. Não entendia a profundidade do medo de Kaos, mas sabia que segredos do governo quanto a OVNIS eram guardados a sete chaves. Já tinha visto algumas coisas inexplicáveis em voos noturnos e até mesmo durante o dia. Gente estranha, e de modos mais estranhos ainda, andavam entre seus líderes, mas tudo acabava numa complicada explicação científica ou fazia parte de um segredo de estado que não ousava contestar.

- Seu passarinho não caiu, foi abatido. – afirmou Kaos. - Por ser um modelo altamente tecnológico, nossos opositores creram que ele poderia enfim nos localizar. Acredito que, com algumas informações passadas aos Unders orientais, tenham hackeado seu computador e ele veio parar à nossa porta. Eu o afundei por precaução, e o guardei atrás dessas portas que só eu tenho acesso. – disse mostrando uma larga coluna ao fim de uma bifurcação que escondia um silo. 

Kaos encaixou sua mão direita numa escavação na rocha e uma luz se acendeu. Ouviu-se um ranger de engrenagens e uma pesada porta estanque se abriu. 

Lá estava seu pássaro. Barns via tudo através de uma parede de gelo, semelhante à do grande salão. Aparentemente se encontrava em perfeito estado, mergulhado sob a proteção de uma enorme bolha de ar. Gigantescos animais aquáticos o rodeavam, como cães treinados. 

- O que quer de mim?!? – perguntou angustiado.

- Que desarme o sinalizador ou confunda os sinais. - Talvez você possa iludi-los por mais um tempo. Não podemos permitir que o soltem.

- Quem é ele?

- Kryulls, da primeira geração dos Titãs, cujo nome nem deveríamos pronunciar.

Barns custava a crer naquela versão distorcida do apocalipse bíblico, principalmente por ter certeza de que o sinalizador não seria captado de dentro de uma bolha e cercado por baleias.

- Suas Jubartes falharam, meu caro. O sinalizador está quebrado. – disse pesaroso.

Mal Barns completou a frase, ouviram uma explosão e fragmentos de barro caíram sobre suas cabeças. Assustados, viram a parede de gelo trincar de alto a baixo. 

- Vá! Não há mais tempo. Volte pelo túnel! – gritou Kaos. – Já começou. – murmurou derrotado, tentando fechar o silo.

Barns ainda viu Kaos bater com seu cajado no chão, pronunciando estranhas palavras de invocação que pareciam tentar conter o desabamento, mas as explosões continuaram e o teto não suportaria por mais tempo. Virou nos calcanhares e correu como um morcego fugindo do inferno. Deu uma última olhada sobre os ombros a tempo de ver a água rompendo o dique de gelo e toneladas de lama soterrarem o pequeno líder. 

Gritos e urros de pavor ecoavam pelos tuneis e galerias. Fogo, lodo, a ponte... Tudo desmoronava. Aquele mundo perfeito estava sob ataque e a profecia de Kaos se cumpria. Tropeçava sobre os cadáveres dos aborígenes, cujas pequenas mãos agarravam suas pernas pedindo socorro enquanto passava. Desvencilhava-se delas. Via seus olhos se apagarem e seus corpos desintegrarem como torrões de sal na água gelada. Pareciam ser os mais velhos; os jovens não estavam mais lá. As plantas, antes viçosas, escureceram e tornaram-se coroas de flores murchas sobre os que optaram viver enterrados há tempos. A utopia dava lugar à desolação sob as granadas que explodiam  em sequência, lançadas por soldados em exoesqueletos de combate.  

A dor nas costas voltou de forma insidiosa. Parecia  atraído para a gosma negra que eclodia da terra. Tentáculos saíam dela grudando-se às nucas dos combatentes, prendendo-se por ventosas. Barns não sabia mais por onde fugir. Esgueirou-se por um dos tuneis, mas foi atingido pelas costas com um forte golpe na cabeça.

***

O dispositivo

- Hora de acordar, meu amigo. – disse o rosto familiar do médico que apertava gentilmente o ombro de Barns.

O capitão despertou de bruços, numa cama de hospital na ala médica do navio conhecido. Tinha voltado para a casa. Sua cabeça ainda doía e uma enorme curativo estampava suas costas. Debateu-se em desespero, obrigando o médico a conte-lo com uma substância injetável. 

- Relaxa cara. Já faz uma semana que retiraram o dispositivo localizador da sua coluna. A cirurgia foi um sucesso! – disse o médico meio chateado ao checar seus sinais vitais. 

- Do que está falando...? Que cirurgia...? – perguntou meio entorpecido.

– Disseram que você poderá voltar à ativa em poucas semanas. – interrompeu-o - Pelo visto, sua missão secreta foi um sucesso. E eu aqui pensando que você ia pra reserva. Quem diria hein, cara, NASA? 

- Você enlouqueceu? Apenas testei um avião. Na verdade eu... 

O médico o deixou sozinho. Barns estava lívido, mas suas pálpebras pesaram e acabou adormecendo sem perceber que uma substância negra e viscosa vazava por seu curativo.


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