Prólogo
Epílogo
Conto
Acordou numa enfermaria de paredes cinza altas e
grandes janelões coloniais que um dia tinham sido azuis e
agora eram desbotados, um verdadeiro milagre aquela estrutura
estar de pé. Abriu vagarosamente os olhos e viu o
borrão de um crucifixo na parede a sua frente. Uma luz fraca,
mas firme, acima de si, não incomodava seus olhos, que lutavam
pra ficar abertos. Seu EyeStar ativou assim que acordou.
C:\RUN.EYESTAR. Não era a luz que não o incomodava, era
o aplicativo de visão que tinha alterado suas configurações.
Não alterou o borrado... hackeamento barato! Outro borrão
apareceu no espaço de vista que seus olhos alcançavam. Uma
imagem cinza. Grandes roupas cinza. Cabelo cinza. A figura
chegou perto. Notou que ele estava se recuperando. Ajeitou-
-o um pouco na maca e puxou uma cadeira. Sentou-se. Conforme
os olhos dele biologicamente voltavam ao normal, o
EyeStar o impulsionava a ver melhor. Você sabe onde está,
senhor? Balançou suavemente a cabeça em sinal de negação.
O senhor está no Hospital da Divina Misericórdia de São Neon.
Entendeu onde estava, mas não assimilou a informação. Pediu
a sua água. A mulher não entendeu e explicou que não
havia mais água nem pros hospitais que ficavam nas cidades.
A visão já aguçada, viu que a mulher cinza era uma freira.
Um hábito cinza de material grosseiro. O cabelo, na verdade,
era um véu também cinza e também grosseiro. Uma cruz
de madeira rústica pendia do seu pescoço. Ele se ajeitou de
novo na maca. Sentiu um pouco de desconforto. Uma dor
nas costelas e no rim. Olhou com calma para a enfermaria
ao seu redor. As paredes descascadas e a umidade preta completavam
a decoração com um quadro da Ressurreição de
Cristo. As macas estavam entulhadas uma ao lado das outras,
só com o mínimo de espaço para os enfermos serem
cuidados. De ambos os lados, homens com gazes pintadas
de sangue dormiam. Alguém tossia. O senhor sabe como veio
parar aqui? Falou de uma briga. Omitiu a informação necessária.
Sim... O senhor poderia me dizer seu nome completo? Disse. Idade.
Disse. Estado civil. Disse também. Filhos. Disse o número.
Uma bênção essa quantidade. Cogitou ser um problema nesses
dias. Nós contatamos a sua família pelos dados do seu número de
registro. Eles sabem que o senhor está aqui. Vamos avisá-los que
o senhor acordou. A religiosa se retirava quando o homem a
perguntou sobre o dia. Ela sorriu. O senhor dormiu por três
dias. É domingo.
Domingo! O homem tentava lembrar... saiu com as
crianças num meio de semana... depois teve a confusão... Tinha
perdido muitos dias. Deus! O que tinham feito sem ele?
Quem tinha ajudado? Os dias estavam perigosos demais para
ajudas, principalmente pra quem morasse em invasões nas
cidades abandonadas... mas como não tinha emprego, era
o melhor que podiam. Se virava fazendo o que sabia, bicos
consertando aplicativos corporais. Hackeava tudo. Era ilegal,
mas faziam vista grossa porque todo mundo usava, era
mais barato que ir numa autorizada. E não tinha autorizada
nas cidades. Consertava o sistema de zoom de um olho aqui.
Instalava um upgrade numa extensão de braço ali. Anunciava
seus serviços na rede. Às vezes botava comida suficiente
na mesa, às vezes não. Tinha semanas boas e semanas muito
ruins. Ultimamente as ruins eram mais frequentes. Viver
sem uma renda fixa tinha seus problemas. Mas o protetorado
tinha começado a caçar hackers nas redes. Um vizinho de
invasão e colega de profissão tinha sido pego. Disseram que
era ilegal o serviço. Pegaram o cara, sumiram com suas fer
ramentas e extraíram informações de pessoas que usavam o
hack. Perdeu todo o seu material e agora não tinha dinheiro
pra recomeçar. Perdia serviços porque não tinha mais nada.
Começou a ganhar por caridade um punhado de comida dos
vizinhos de invasão.
Tinha pena daquela família.
E as doações não iam durar muito porque ninguém
tinha muito. Soube que tinha ido pedir nos templos. Voltava
com cestas básicas e comiam desesperadamente. A fome devia
ser tão grande que não era possível medir as quantidades.
Já tinha visto um dos filhos dele como pedinte na rua, depois
fazendo truques ajudado por restos de aplicativos hackeados
pelo pai no seu corpinho franzino. O garoto ganhava lá seu
pão velho e seus trocados. Não gostava de imaginar o que o
colega de profissão fazia quando faltava comida... As pessoas
nos becos comiam os animais que passavam por ali mesmo.
Os mercados eram caros desde que a alimentação tinha virado
prioridade dos bairros planejados. A maioria deles estava
fechando nas cidades e as pessoas compravam de gente que
derrubava caminhão. Metade do preço. O dobro da quantia.
Comprava o seu assim. Quem tinha o mínimo fazia assim.
Seus meninos abriam um sorrisão tão grande quando trazia
um biscoito que seus ossos do ombro pulavam. No final do
pacote, sentia a tensão dos garotos pela disputa da última
guloseima. Comiam rápido pra comer mais. Como os vizinhos,
talvez. Quem comesse o último ia sentir por mais tempo
o sabor. Tinha ódio daquilo. Não tinha botado bicho no
mundo, tinha botado gente. Dava um murro na mesa. Come
que nem gente! Não queria terminar do jeito do colega. Sem
dinheiro, a miséria de viver nas velhas cidades abandonadas,
como São Neon, só piorava. Já viviam sem água limpa desde
que ela tinha sido reservada pra quem morava nos bairros
planejados longe do mar. Sem comida realmente não dava.
Por causa disso, tinha agora o dobro do cuidado. Dormia
com a cabeça latejando no dia seguinte, se ia dar serviço cer-
to ou não. Se ia ser pego ou não. Se ia ter mais uma conversa
séria em casa sobre o que tinham que cortar ou não. Não
queria mesmo terminar daquele jeito.
Como era verão em São Neon, e era bem quente,
chovia muito. Tempestades. O céu ficava cinza como uma
velha TV sem sinal. Chiava. As crianças corriam pra brincar
na chuva suja. Os pais colocavam baldes pra pegar água, depois
era filtrar e filtrar e filtrar. Com as tempestades, sempre
acabava a luz. Não podiam ligar pras companhias de energia
porque a invasão não constava, mas as contas chegavam
mesmo assim. Nesse verão, ficaram dias sem luz. O calor à
noite subia pelos corredores úmidos e abafava tudo. As paredes
pichadas pingavam de suor e os animais toscos saíam das
tocas. As crianças ficavam moles, algumas eram de doença.
Graças a Deus, uma mulher da invasão hackeava antivírus.
A maioria dos pequenos se imunizava ali mesmo e ela ainda
ganhava um trocado.
Por causa do calor, tinha decidido ir até a costa. Os
meninos morriam de calor. Coitados. Colados na única janela
da parte que lhes cabia daquela invasão. Disputavam o
mísero vento com os fios, cabos e computadores empilhados
do pai. Todos eles. Com frequência dormiam num mormaço
tedioso e triste. Pelo menos o chão de cimento era fresco.
Nessas horas, a infiltração da parede ajudava a manter a
umidade. O mar estar mais perto não tinha adiantado muita
coisa pra eles. A costa não era mais tão longe, mas as praias
estavam embaixo d’água e quem se atrevia a chegar perto
da nova costa, não contava com areia, mas mato, restos de
estrada, prédios condenados e um horizonte de ferros retorcidos.
Deveria ter um calçadão e um parquinho, mas disso só
se viam os tapumes de obras e a sujeira. As obras pararam.
De qualquer modo, já tinha gente por ali de manhã. Nas ruínas
pertinho deles, as pichações se espalhavam. Quando a luz
batia nelas, brilhavam. Quando ficava de noite, acendiam.
Um dos garotos perguntou o que era Saint-Neon pra
mãe. Estava lá, na pichação: SAINT-NEON É O FIM DO
PROTETORADO. A mãe desconversou. Não era dia disso,
era dia de aproveitar o sol como família, não falando de problema.
A senhora sabia que tão chamando eles de hackeados?
Quem tá chamando?
Todo mundo nas redes... Meu pai não é hackeado?
Nem todo hackeado faz parte do Saint-Neon, meu anjo.
Ah! Então a senhora sabe quem é eles.
Enxotou o garoto pra brincar no mar com os irmãos.
Não queria conversar sobre isso. Sentados no matagal da
costa, enquanto os meninos se divertiam nos destroços do
oceano, tentavam forjar a felicidade nos dias de penúria.
Ajeitavam os planos de sair de São Neon pra sempre. Ela
tinha tudo em mente e os parentes no interior, que pelos boatos
estava bem melhor que a costa. Seria um ambiente melhor
pras crianças crescerem. Um pequeno sítio. Ele poderia
ajudar com o hackeamento, sempre havia jeito. E se não
houvesse, dariam um. Sonhavam à beira da costa em ruínas
sob o brilho do sol e das pichações. Faltava pouco dinheiro
pra viagem, faltava pouco tempo.
Antes do anoitecer, um planador do protetorado sobrevoou
a região anunciando um toque de recolher. Ninguém
sabia de nada. De dentro do planador, um homem
apontava armas pra baixo. Os banhistas começaram a guardar
suas coisas e sair. Nas ruas ao redor, todos iam na direção
das rodoviárias e estações, como uma procissão ressentida.
Cochichavam no caminho sobre um atentado num bairro
planejado. Outros falavam que os hackeados tinham feito
barricadas e fechado a entrada desses lugares. Seus moradores
eram reféns. Ninguém sabia bem o que tinha acontecido,
mas sabiam que era problema.
Foram pra estação. Pegariam um dos trens. O lugar
estava lotado de gente: velhos, adultos, crianças penduradas
em peitos ou puxando fraldas. O calor suando todos. As peles
colando umas nas outras. O cheiro de detritos e o mormaço
irritante. Ninguém queria voltar amassado. Já bastasse ter
que voltar tão cedo, ser mandando embora do seu próprio
lugar, ainda ter que ir voltar daquele jeito. O primeiro trem
a chegar levou a primeira manada. As pessoas se empurravam
pra conseguir passar pela portinhola. Cotoveladas em
senhoras. Xingamentos. A luta pela sobrevivência se reproduzia
em uma cena urbana. Na gritaria, alguém tinha caído.
Ajuda! Ajuda! Um guarda do protetorado não conseguiu se
aproximar, a manada era feroz. Após a luta, quem entrou,
entrou. As portas quase não fecharam e roçaram várias vezes
em quem estava com o corpo quase pra fora. Uma hora
fechou, uma hora viram o corpo que jazia desfigurado. A
multidão que restou se calou e só ouviram os sons dolorosos
de uma jovem que gritava enquanto abraçava os restos
tronchados do que tinha sido alguém especial. Tinha sangue
pisado e escorrido pra todo lado. Restos.
De longe, ele viu que o guarda do protetorado chamava
os funcionários da limpeza.
• • •
A freira voltou. Outras freiras cuidavam de outros
enfermos. Tinha tentando conectar o corpo com a rede pra
mandar uma mensagem pra família, mas não havia rede nenhuma
na região.
Eles virão amanhã cedo. Como hoje receberemos o Protetor
aqui no Hospital, não poderemos ter visitas. A mulher ficou em
silêncio, como se refletisse sobre a própria fala. Notou que
estava contrariada.
Não tem mais rede por aqui?
Não. Derrubaram por causa dos problemas.
Eu queria falar com minha família. Eu poderia usar a
rede do hospital, irmã?
Não.
Silêncio. Ela o encarava.
Mais alguma coisa que você queira dizer?
Eu menti sobre como cheguei aqui.
Que surpresa – disse irônica – Muitos mentem sobre como
acabam num hospital.
É difícil confiar em alguém.
Maldito o homem que confia em outro homem.
A religiosa puxou de volta seu banco. Sentou-se. Ele
resolveu contar o que tinha acontecido. Em troca, o acesso à
rede. Ela concordou. Depois da confusão na estação, estavam
certos de ir embora. Tinha conseguido um bom serviço de
hackeamento nos bairros planejados e conseguiria o dinheiro.
O usuário procurava um conserto pra seu iArm 10. Tinha
uma foto numa varanda de madeira que mais parecia o
deck de um navio. Ao fundo uma piscina enorme e mansões
de paredes brancas e telhados americanos. Foi até lá. Aqueles
bairros eram realmente uma coisa diferente. Os postes de
led, os planadores pra cima e pra baixo, nada de carro com
pneu. Achou um absurdo o asfalto lisinho e impecável se os
automóveis ali nem tocavam o chão. Pra que asfalto, então?
Seria mais útil nas cidades. As casas tinham muros cheios de
plantas, árvores apontavam pro céu de dentro dos quintais.
O patrulhamento estava reforçado desde o incidente com os
Saint-Neon no outro dia. Reparou também nos mercados.
Ele passava pela rua e via frutas e legumes nas prateleiras
assim como caixas de cereal, leite, arroz... Entrou em uma.
Um senhor de idade tinha o carrinho cheio de biscoitos diversos,
ração de cachorro e engradados de cerveja. Estava
parado escolhendo qual marca de chocolate levaria pra casa.
O senhor deseja alguma coisa? Perguntou um segurança que
apareceu do nada. Não, não. Umas madames conversavam
e o olhavam. Ao se verem também observadas, disfaçaram.
Uma delas tinha o cachorrinho no colo e a outra o filhinho.
O segurança sorriu com todos os dentes e ele entendeu. Saiu
sendo observado.
Voltou seu caminho pro serviço. Mais adiante, leu
numa placa amarela: O PROTETORADO FAZ JORRAR
ÁGUA PARA SEU PET! Logo depois, havia um chafariz
onde cães se banhavam no calor do hemisfério sul. A água
era clara, só tinha visto assim em fotos da rede. Mulheres
de guarda-sol branco se protegiam da luz enquanto conversavam.
Mulheres vestidas de empregada tomavam conta
dos animaizinhos molhados. Era tanta água. E o sol tava tão
forte. O único líquido que sentia era o suor escorrendo nas
suas costas. Tentou não encarar muito, disfarçar... mas não
dava. O barulhinho dela escorrendo pela boca da fonte e molhando...
molhando... molhando... ah, o frescor! Não ia beber
com a mão... precisava levar mais... até pros seus em casa.
Eles iam fazer festa.
C:\RUN.LOSDEDOS_H2O [ATIVAR?]
MODE_ON
Como uma aranha, os dedos se multiplicaram e se
desdobraram em várias articulações. Da ponta de cada, um
buraco com sucção. Usava aquilo pra roubar água de outros
lugares. Cerveja também. Por isso era proibido de se usar
por aí, ainda mais se fosse hackeado. Se aproximou da fonte
fresca. Os cachorros brincavam no calor e seus pelos tinham
se espalhado pela água. Uma das empregadas, de pele machucada
pelo calor, reparou nele. Pensou que ela tivesse feito
um sinal de não com a cabeça, mas contando a história, já
não tinha tanta certeza assim.
Afundou a mão na água como um preso se afunda na
liberdade. Gemeu, inclusive. O frescor do líquido em contato
com sua pele o fez entrar em estado de júbilo.
Um dos cachorros que brincava na fonte começou a
rosnar. Outro saiu. A empregada tentava chamar o bicho.
Não se importava, queria levar aquela água pra casa. Eles
mereciam aquilo. A madame notou sua cria estressada na
fonte que era própria pra ela. O que é isso? O que tá acontecendo
aí? A empregada não soube o que dizer nem o que fazer. Tira
eles daí, sabe que eles ficam irritados! A coitada da funcionária
chamava o cachorro que rosnava sem nada adiantar. O
animal, já muito inconformado e pirracento, se cansou de
avisar. Latiu uma vez e avançou.
C:\RUN.ELTITAN
Rapidamente ele segurou o cachorro com a outra
mão com força suficiente pro animal grunhir e chorar.
A madame logo correu pra fonte e acertou o guarda-
sol na sua cabeça na tentativa dele soltar seu cachorrinho.
Solta! Ladrão! Hackeado! Em segundos, uma patrulha do
protetorado chegou. Sem confusão alguma, anunciaram que
se afastasse. Ele sabia que se ficasse ali, iam descobrir que
ele era um hackeado e ia terminar como o vizinho, nos becos.
Não tinha saída. O cachorro latia. A madame gritava.
A empregada ainda tentava chamar o bicho. Um guarda do
protetorado tentava afastar esses dois da cena. As pessoas ao
largo observavam. Algumas, de dentro de seus carros planadores.
Ativou o aplicativo do ouvido. C:\RUN.SOUNDSTAR.
Escutou um dos guardas do protetorado. Suspeito Saint-Neon
encontrado. Suspeito. Acreditou que não ia ter a mesma sorte
do vizinho que foi interrogado. Levantou as mãos em sinal
de rendição. Podiam fazer pior que extrair informações de
usuários de hack. Os guardas se aproximaram armados. A
mulher abraçava o cão. A empregada acompanhava o que
acontecia. O chão tremeu e um cogumelo de fogo e fumaça
apareceu atrás das árvores e casas brancas.
Correu.
C:\RUN.ELPOTTER.
O corpo se camuflou às cores da cidade. Corria mais.
Não olhou pra trás. Não soube se foram atrás dele. Não soube
o que era a explosão. Não soube da madame do cachorro.
Correu por ruas de asfalto liso, muros altos e árvores. Desceu
ladeiras. Desceu escadarias. O corpo como um camaleão
com seu hack incolor. Quando não aguentou correr, trotou.
A paisagem já mudava para um enorme descampado com
uma estrada no meio. Canos grossos que pingavam águas
passavam em direção oposta. Quando não aguentou trotar,
andou. Viu prédios pequenos, meio velhos. Quando não
aguentou andar, caiu. Viu umas pessoas sujas, uns colchões
mais sujos ainda e papelão. Aí não viu mais nada.
• • •
A freira, de novo, o encarava. Antes que pudesse dizer
algo, ouviram o sino badalar.
Ele está aí.
Com o rosto inconformado, a religiosa se levantou
mais uma vez. Passou a rede e a senha de acesso.
Ainda é maldito o homem que confia em outro? Perguntou
à religiosa.
Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
serão saciados.
Saiu.
Ele se levantou com esforço da maca. Tudo doía.
Tentou não cair em cima do homem que quase jazia ao seu
lado. Acessou a rede do Hospital da Divina Misericórdia
de São Neon. Deixou seus aplicativos rodarem. Mandou
uma mensagem pra esposa, dizendo que estava tudo bem.
Lembrou que eles seriam impedidos de estar ali por causa
de um Protetor que nem conheciam. Ouviu a gritaria vindo
da janela. Se aproximou pra observar. A comitiva de carros
planadores chegava sobrevoando as ruas esburacadas. As
bandeiras do Protetorado tremelicavam em cada carro. A
multidão ao redor se empurrava pra frente, pra barreira de
ferro que os impedia de ultrapassar. Não estavam ali por alegria,
estavam por fome. Eram pedintes, como o filho do vizinho.
Ou como o próprio vizinho. Imploradores. Humildes.
Mortos de fome. Buscavam a oportunidade de conseguir
uma grana pra sustentar o dia. Ou a oportunidade de ter ali
uma nova oportunidade. Crianças esticavam as mãozinhas
pelas grades e recebiam palmadas. Eram rostos sujos, magros
e doloridos. Uma cadeira de rodas foi erguida do meio da
multidão. Um velho caquético com um cateter sujo surgiu
sobre todos. Lembrou-se do episódio da estação de trem.
Os guardas do protetorado tentavam controlar a emoção do
povo. O doente da cadeira atravessou o mar de gente por
cima, suspenso por outros pedintes. Quando o chegou na
borda da barreira, nenhum guarda o tomou pela mão. Com
um bastão, um deles atingiu alguém que estava na ponta. A
pessoa caiu desmaiada. O velho e sua cadeira despencaram
sem equilíbrio pro outro lado da barreira. Sem reação, com
a cara da imundície, quase beijando a bota firme do guarda.
O frenesi aumentou.
A multidão reagia contra a contenção. Olhando aquilo,
de dentro do hospital, um ódio vermelho tomava conta
do seu espírito e se alimentava das memórias visuais salvas
no seu EyeStar e dos áudios gravados no SoundStar. A partir
disso, sua mente, seu coração e seus hacks se retroalimentavam
e criavam dentro de si algo totalmente novo, mas que
sempre tinha existido.
Mirou o olho no carro do Protetor. EyeStar ligado.
Sempre há brechas de hackeamento. Na rede das freiras,
protegido por ser inesperado, vasculhou o carro numa camada
mais profunda. O hack permitia entrar em áreas pouco
convencionais. Encontrou o que queria. Distante do seu
Protetor, perto da Divina Misericórida de São Neon, hackeou
o único ponto solto do carro. Na rua, ele piscou e apitou.
As quatro portas se abriram ao mesmo tempo em que o planador
atingiu o chão esburacado e cheio de lama e fezes. Antes
que algo fosse feito, a multidão miserável avançou sobre
as barreiras que caíram sobre os guardas, esmagando-os. Alguns
fugiram. Outros tentaram proteger o Protetor forman-
do um cordão vivo ao redor do planador. Era possível ver os
dejetos entrando pelas laterais do automóvel que afundava
um pouco nas camadas de sujeira. Um pezinho subiu pra
cima do estofado do banco. Pensou que o Protetor deveria
estar encolhido ali dentro. Deletaria essa imagem patética.
De sua janela, assistia às pessoas avançarem. Viu socos, mordidas,
sangue escorrendo entre pele, sujeira e suor. O cordão
de homens, aos poucos foi sumindo, assim como um vírus
some depois de um antivírus.
Com o SoundStar conseguiu acesso ao rádio do planador
do Protetor. Não era possível distinguir mais palavras,
apenas uma nova melodia de gritos furiosos e urros primordiais
contrastando com dor e socos. Um grunhido. A informação
cruzada entre seu aplicativo de visão e de audição lhe
dava relatórios para supor o que podia estar se passando ali.
Completavam aquilo que ele, por si, não sabia.
Em segundos, a multidão diluiu e se alimentou do
cordão-vivo que protegia o Protetor. Ouviu um som. Relatório:
multidão se choca contra superfície de
automóvel planador. Dava pra ver as mãos entrando e
disputando umas com as outras como se aquilo fosse o último
e único prato de um jantar. Relatório: multidão
ataca um único homem. Os sons guturais emergiam como
hinos de guerras antigas em seus ouvidos. As palavras do
relatório como profecias sacras. Viu de sua janela mãos vermelhas.
Um sapatinho manchado sendo atirado do planador
pra fora.
Desativou os relatórios.
São Neon atingia o Protetor com suas mãos.