Saint-neon & fúria

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Vitor Fernandes

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Autor e Organizador
Autora e Organizadora
Editor
Editora
Ilustrador
Ilustradora
Metade gótico, metade periférico, metade professor. A conta não bate, mas é fantástico por isso mesmo.

Conquista Literária
Conto publicado em
ACID NEON: Narrativas de um futuro próximo vol. 02

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Saint-neon & fúria
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Acordou numa enfermaria de paredes cinza altas e

grandes janelões coloniais que um dia tinham sido azuis e

agora eram desbotados, um verdadeiro milagre aquela estrutura

estar de pé. Abriu vagarosamente os olhos e viu o

borrão de um crucifixo na parede a sua frente. Uma luz fraca,

mas firme, acima de si, não incomodava seus olhos, que lutavam

pra ficar abertos. Seu EyeStar ativou assim que acordou.

C:\RUN.EYESTAR. Não era a luz que não o incomodava, era

o aplicativo de visão que tinha alterado suas configurações.

Não alterou o borrado... hackeamento barato! Outro borrão

apareceu no espaço de vista que seus olhos alcançavam. Uma

imagem cinza. Grandes roupas cinza. Cabelo cinza. A figura

chegou perto. Notou que ele estava se recuperando. Ajeitou-

-o um pouco na maca e puxou uma cadeira. Sentou-se. Conforme

os olhos dele biologicamente voltavam ao normal, o

EyeStar o impulsionava a ver melhor. Você sabe onde está,

senhor? Balançou suavemente a cabeça em sinal de negação.

O senhor está no Hospital da Divina Misericórdia de São Neon.

Entendeu onde estava, mas não assimilou a informação. Pediu

a sua água. A mulher não entendeu e explicou que não

havia mais água nem pros hospitais que ficavam nas cidades.

A visão já aguçada, viu que a mulher cinza era uma freira.

Um hábito cinza de material grosseiro. O cabelo, na verdade,

era um véu também cinza e também grosseiro. Uma cruz

de madeira rústica pendia do seu pescoço. Ele se ajeitou de

novo na maca. Sentiu um pouco de desconforto. Uma dor

nas costelas e no rim. Olhou com calma para a enfermaria

ao seu redor. As paredes descascadas e a umidade preta completavam

a decoração com um quadro da Ressurreição de

Cristo. As macas estavam entulhadas uma ao lado das outras,

só com o mínimo de espaço para os enfermos serem

cuidados. De ambos os lados, homens com gazes pintadas

de sangue dormiam. Alguém tossia. O senhor sabe como veio

parar aqui? Falou de uma briga. Omitiu a informação necessária.

Sim... O senhor poderia me dizer seu nome completo? Disse. Idade.

Disse. Estado civil. Disse também. Filhos. Disse o número.

Uma bênção essa quantidade. Cogitou ser um problema nesses

dias. Nós contatamos a sua família pelos dados do seu número de

registro. Eles sabem que o senhor está aqui. Vamos avisá-los que

o senhor acordou. A religiosa se retirava quando o homem a

perguntou sobre o dia. Ela sorriu. O senhor dormiu por três

dias. É domingo.

Domingo! O homem tentava lembrar... saiu com as

crianças num meio de semana... depois teve a confusão... Tinha

perdido muitos dias. Deus! O que tinham feito sem ele?

Quem tinha ajudado? Os dias estavam perigosos demais para

ajudas, principalmente pra quem morasse em invasões nas

cidades abandonadas... mas como não tinha emprego, era

o melhor que podiam. Se virava fazendo o que sabia, bicos

consertando aplicativos corporais. Hackeava tudo. Era ilegal,

mas faziam vista grossa porque todo mundo usava, era

mais barato que ir numa autorizada. E não tinha autorizada

nas cidades. Consertava o sistema de zoom de um olho aqui.

Instalava um upgrade numa extensão de braço ali. Anunciava

seus serviços na rede. Às vezes botava comida suficiente

na mesa, às vezes não. Tinha semanas boas e semanas muito

ruins. Ultimamente as ruins eram mais frequentes. Viver

sem uma renda fixa tinha seus problemas. Mas o protetorado

tinha começado a caçar hackers nas redes. Um vizinho de

invasão e colega de profissão tinha sido pego. Disseram que

era ilegal o serviço. Pegaram o cara, sumiram com suas fer

ramentas e extraíram informações de pessoas que usavam o

hack. Perdeu todo o seu material e agora não tinha dinheiro

pra recomeçar. Perdia serviços porque não tinha mais nada.

Começou a ganhar por caridade um punhado de comida dos

vizinhos de invasão.

Tinha pena daquela família.

E as doações não iam durar muito porque ninguém

tinha muito. Soube que tinha ido pedir nos templos. Voltava

com cestas básicas e comiam desesperadamente. A fome devia

ser tão grande que não era possível medir as quantidades.

Já tinha visto um dos filhos dele como pedinte na rua, depois

fazendo truques ajudado por restos de aplicativos hackeados

pelo pai no seu corpinho franzino. O garoto ganhava lá seu

pão velho e seus trocados. Não gostava de imaginar o que o

colega de profissão fazia quando faltava comida... As pessoas

nos becos comiam os animais que passavam por ali mesmo.

Os mercados eram caros desde que a alimentação tinha virado

prioridade dos bairros planejados. A maioria deles estava

fechando nas cidades e as pessoas compravam de gente que

derrubava caminhão. Metade do preço. O dobro da quantia.

Comprava o seu assim. Quem tinha o mínimo fazia assim.

Seus meninos abriam um sorrisão tão grande quando trazia

um biscoito que seus ossos do ombro pulavam. No final do

pacote, sentia a tensão dos garotos pela disputa da última

guloseima. Comiam rápido pra comer mais. Como os vizinhos,

talvez. Quem comesse o último ia sentir por mais tempo

o sabor. Tinha ódio daquilo. Não tinha botado bicho no

mundo, tinha botado gente. Dava um murro na mesa. Come

que nem gente! Não queria terminar do jeito do colega. Sem

dinheiro, a miséria de viver nas velhas cidades abandonadas,

como São Neon, só piorava. Já viviam sem água limpa desde

que ela tinha sido reservada pra quem morava nos bairros

planejados longe do mar. Sem comida realmente não dava.

Por causa disso, tinha agora o dobro do cuidado. Dormia

com a cabeça latejando no dia seguinte, se ia dar serviço cer-

to ou não. Se ia ser pego ou não. Se ia ter mais uma conversa

séria em casa sobre o que tinham que cortar ou não. Não

queria mesmo terminar daquele jeito.

Como era verão em São Neon, e era bem quente,

chovia muito. Tempestades. O céu ficava cinza como uma

velha TV sem sinal. Chiava. As crianças corriam pra brincar

na chuva suja. Os pais colocavam baldes pra pegar água, depois

era filtrar e filtrar e filtrar. Com as tempestades, sempre

acabava a luz. Não podiam ligar pras companhias de energia

porque a invasão não constava, mas as contas chegavam

mesmo assim. Nesse verão, ficaram dias sem luz. O calor à

noite subia pelos corredores úmidos e abafava tudo. As paredes

pichadas pingavam de suor e os animais toscos saíam das

tocas. As crianças ficavam moles, algumas eram de doença.

Graças a Deus, uma mulher da invasão hackeava antivírus.

A maioria dos pequenos se imunizava ali mesmo e ela ainda

ganhava um trocado.

Por causa do calor, tinha decidido ir até a costa. Os

meninos morriam de calor. Coitados. Colados na única janela

da parte que lhes cabia daquela invasão. Disputavam o

mísero vento com os fios, cabos e computadores empilhados

do pai. Todos eles. Com frequência dormiam num mormaço

tedioso e triste. Pelo menos o chão de cimento era fresco.

Nessas horas, a infiltração da parede ajudava a manter a

umidade. O mar estar mais perto não tinha adiantado muita

coisa pra eles. A costa não era mais tão longe, mas as praias

estavam embaixo d’água e quem se atrevia a chegar perto

da nova costa, não contava com areia, mas mato, restos de

estrada, prédios condenados e um horizonte de ferros retorcidos.

Deveria ter um calçadão e um parquinho, mas disso só

se viam os tapumes de obras e a sujeira. As obras pararam.

De qualquer modo, já tinha gente por ali de manhã. Nas ruínas

pertinho deles, as pichações se espalhavam. Quando a luz

batia nelas, brilhavam. Quando ficava de noite, acendiam.

Um dos garotos perguntou o que era Saint-Neon pra

mãe. Estava lá, na pichação: SAINT-NEON É O FIM DO

PROTETORADO. A mãe desconversou. Não era dia disso,

era dia de aproveitar o sol como família, não falando de problema.

A senhora sabia que tão chamando eles de hackeados?

Quem tá chamando?

Todo mundo nas redes... Meu pai não é hackeado?

Nem todo hackeado faz parte do Saint-Neon, meu anjo.

Ah! Então a senhora sabe quem é eles.

Enxotou o garoto pra brincar no mar com os irmãos.

Não queria conversar sobre isso. Sentados no matagal da

costa, enquanto os meninos se divertiam nos destroços do

oceano, tentavam forjar a felicidade nos dias de penúria.

Ajeitavam os planos de sair de São Neon pra sempre. Ela

tinha tudo em mente e os parentes no interior, que pelos boatos

estava bem melhor que a costa. Seria um ambiente melhor

pras crianças crescerem. Um pequeno sítio. Ele poderia

ajudar com o hackeamento, sempre havia jeito. E se não

houvesse, dariam um. Sonhavam à beira da costa em ruínas

sob o brilho do sol e das pichações. Faltava pouco dinheiro

pra viagem, faltava pouco tempo.

Antes do anoitecer, um planador do protetorado sobrevoou

a região anunciando um toque de recolher. Ninguém

sabia de nada. De dentro do planador, um homem

apontava armas pra baixo. Os banhistas começaram a guardar

suas coisas e sair. Nas ruas ao redor, todos iam na direção

das rodoviárias e estações, como uma procissão ressentida.

Cochichavam no caminho sobre um atentado num bairro

planejado. Outros falavam que os hackeados tinham feito

barricadas e fechado a entrada desses lugares. Seus moradores

eram reféns. Ninguém sabia bem o que tinha acontecido,

mas sabiam que era problema.

Foram pra estação. Pegariam um dos trens. O lugar

estava lotado de gente: velhos, adultos, crianças penduradas

em peitos ou puxando fraldas. O calor suando todos. As peles

colando umas nas outras. O cheiro de detritos e o mormaço

irritante. Ninguém queria voltar amassado. Já bastasse ter

que voltar tão cedo, ser mandando embora do seu próprio

lugar, ainda ter que ir voltar daquele jeito. O primeiro trem

a chegar levou a primeira manada. As pessoas se empurravam

pra conseguir passar pela portinhola. Cotoveladas em

senhoras. Xingamentos. A luta pela sobrevivência se reproduzia

em uma cena urbana. Na gritaria, alguém tinha caído.

Ajuda! Ajuda! Um guarda do protetorado não conseguiu se

aproximar, a manada era feroz. Após a luta, quem entrou,

entrou. As portas quase não fecharam e roçaram várias vezes

em quem estava com o corpo quase pra fora. Uma hora

fechou, uma hora viram o corpo que jazia desfigurado. A

multidão que restou se calou e só ouviram os sons dolorosos

de uma jovem que gritava enquanto abraçava os restos

tronchados do que tinha sido alguém especial. Tinha sangue

pisado e escorrido pra todo lado. Restos.

De longe, ele viu que o guarda do protetorado chamava

os funcionários da limpeza.

• • •

A freira voltou. Outras freiras cuidavam de outros

enfermos. Tinha tentando conectar o corpo com a rede pra

mandar uma mensagem pra família, mas não havia rede nenhuma

na região.

Eles virão amanhã cedo. Como hoje receberemos o Protetor

aqui no Hospital, não poderemos ter visitas. A mulher ficou em

silêncio, como se refletisse sobre a própria fala. Notou que

estava contrariada.

Não tem mais rede por aqui?

Não. Derrubaram por causa dos problemas.

Eu queria falar com minha família. Eu poderia usar a

rede do hospital, irmã?

Não.

Silêncio. Ela o encarava.

Mais alguma coisa que você queira dizer?

Eu menti sobre como cheguei aqui.

Que surpresa – disse irônica – Muitos mentem sobre como

acabam num hospital.

É difícil confiar em alguém.

Maldito o homem que confia em outro homem.

A religiosa puxou de volta seu banco. Sentou-se. Ele

resolveu contar o que tinha acontecido. Em troca, o acesso à

rede. Ela concordou. Depois da confusão na estação, estavam

certos de ir embora. Tinha conseguido um bom serviço de

hackeamento nos bairros planejados e conseguiria o dinheiro.

O usuário procurava um conserto pra seu iArm 10. Tinha

uma foto numa varanda de madeira que mais parecia o

deck de um navio. Ao fundo uma piscina enorme e mansões

de paredes brancas e telhados americanos. Foi até lá. Aqueles

bairros eram realmente uma coisa diferente. Os postes de

led, os planadores pra cima e pra baixo, nada de carro com

pneu. Achou um absurdo o asfalto lisinho e impecável se os

automóveis ali nem tocavam o chão. Pra que asfalto, então?

Seria mais útil nas cidades. As casas tinham muros cheios de

plantas, árvores apontavam pro céu de dentro dos quintais.

O patrulhamento estava reforçado desde o incidente com os

Saint-Neon no outro dia. Reparou também nos mercados.

Ele passava pela rua e via frutas e legumes nas prateleiras

assim como caixas de cereal, leite, arroz... Entrou em uma.

Um senhor de idade tinha o carrinho cheio de biscoitos diversos,

ração de cachorro e engradados de cerveja. Estava

parado escolhendo qual marca de chocolate levaria pra casa.

O senhor deseja alguma coisa? Perguntou um segurança que

apareceu do nada. Não, não. Umas madames conversavam

e o olhavam. Ao se verem também observadas, disfaçaram.

Uma delas tinha o cachorrinho no colo e a outra o filhinho.

O segurança sorriu com todos os dentes e ele entendeu. Saiu

sendo observado.

Voltou seu caminho pro serviço. Mais adiante, leu

numa placa amarela: O PROTETORADO FAZ JORRAR

ÁGUA PARA SEU PET! Logo depois, havia um chafariz

onde cães se banhavam no calor do hemisfério sul. A água

era clara, só tinha visto assim em fotos da rede. Mulheres

de guarda-sol branco se protegiam da luz enquanto conversavam.

Mulheres vestidas de empregada tomavam conta

dos animaizinhos molhados. Era tanta água. E o sol tava tão

forte. O único líquido que sentia era o suor escorrendo nas

suas costas. Tentou não encarar muito, disfarçar... mas não

dava. O barulhinho dela escorrendo pela boca da fonte e molhando...

molhando... molhando... ah, o frescor! Não ia beber

com a mão... precisava levar mais... até pros seus em casa.

Eles iam fazer festa.

C:\RUN.LOSDEDOS_H2O [ATIVAR?]

MODE_ON

Como uma aranha, os dedos se multiplicaram e se

desdobraram em várias articulações. Da ponta de cada, um

buraco com sucção. Usava aquilo pra roubar água de outros

lugares. Cerveja também. Por isso era proibido de se usar

por aí, ainda mais se fosse hackeado. Se aproximou da fonte

fresca. Os cachorros brincavam no calor e seus pelos tinham

se espalhado pela água. Uma das empregadas, de pele machucada

pelo calor, reparou nele. Pensou que ela tivesse feito

um sinal de não com a cabeça, mas contando a história, já

não tinha tanta certeza assim.

Afundou a mão na água como um preso se afunda na

liberdade. Gemeu, inclusive. O frescor do líquido em contato

com sua pele o fez entrar em estado de júbilo.

Um dos cachorros que brincava na fonte começou a

rosnar. Outro saiu. A empregada tentava chamar o bicho.

Não se importava, queria levar aquela água pra casa. Eles

mereciam aquilo. A madame notou sua cria estressada na

fonte que era própria pra ela. O que é isso? O que tá acontecendo

aí? A empregada não soube o que dizer nem o que fazer. Tira

eles daí, sabe que eles ficam irritados! A coitada da funcionária

chamava o cachorro que rosnava sem nada adiantar. O

animal, já muito inconformado e pirracento, se cansou de

avisar. Latiu uma vez e avançou.

C:\RUN.ELTITAN

Rapidamente ele segurou o cachorro com a outra

mão com força suficiente pro animal grunhir e chorar.

A madame logo correu pra fonte e acertou o guarda-

sol na sua cabeça na tentativa dele soltar seu cachorrinho.

Solta! Ladrão! Hackeado! Em segundos, uma patrulha do

protetorado chegou. Sem confusão alguma, anunciaram que

se afastasse. Ele sabia que se ficasse ali, iam descobrir que

ele era um hackeado e ia terminar como o vizinho, nos becos.

Não tinha saída. O cachorro latia. A madame gritava.

A empregada ainda tentava chamar o bicho. Um guarda do

protetorado tentava afastar esses dois da cena. As pessoas ao

largo observavam. Algumas, de dentro de seus carros planadores.

Ativou o aplicativo do ouvido. C:\RUN.SOUNDSTAR.

Escutou um dos guardas do protetorado. Suspeito Saint-Neon

encontrado. Suspeito. Acreditou que não ia ter a mesma sorte

do vizinho que foi interrogado. Levantou as mãos em sinal

de rendição. Podiam fazer pior que extrair informações de

usuários de hack. Os guardas se aproximaram armados. A

mulher abraçava o cão. A empregada acompanhava o que

acontecia. O chão tremeu e um cogumelo de fogo e fumaça

apareceu atrás das árvores e casas brancas.

Correu.

C:\RUN.ELPOTTER.

O corpo se camuflou às cores da cidade. Corria mais.

Não olhou pra trás. Não soube se foram atrás dele. Não soube

o que era a explosão. Não soube da madame do cachorro.

Correu por ruas de asfalto liso, muros altos e árvores. Desceu

ladeiras. Desceu escadarias. O corpo como um camaleão

com seu hack incolor. Quando não aguentou correr, trotou.

A paisagem já mudava para um enorme descampado com

uma estrada no meio. Canos grossos que pingavam águas

passavam em direção oposta. Quando não aguentou trotar,

andou. Viu prédios pequenos, meio velhos. Quando não

aguentou andar, caiu. Viu umas pessoas sujas, uns colchões

mais sujos ainda e papelão. Aí não viu mais nada.

• • •

A freira, de novo, o encarava. Antes que pudesse dizer

algo, ouviram o sino badalar.

Ele está aí.

Com o rosto inconformado, a religiosa se levantou

mais uma vez. Passou a rede e a senha de acesso.

Ainda é maldito o homem que confia em outro? Perguntou

à religiosa.

Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque

serão saciados.

Saiu.

Ele se levantou com esforço da maca. Tudo doía.

Tentou não cair em cima do homem que quase jazia ao seu

lado. Acessou a rede do Hospital da Divina Misericórdia

de São Neon. Deixou seus aplicativos rodarem. Mandou

uma mensagem pra esposa, dizendo que estava tudo bem.

Lembrou que eles seriam impedidos de estar ali por causa

de um Protetor que nem conheciam. Ouviu a gritaria vindo

da janela. Se aproximou pra observar. A comitiva de carros

planadores chegava sobrevoando as ruas esburacadas. As

bandeiras do Protetorado tremelicavam em cada carro. A

multidão ao redor se empurrava pra frente, pra barreira de

ferro que os impedia de ultrapassar. Não estavam ali por alegria,

estavam por fome. Eram pedintes, como o filho do vizinho.

Ou como o próprio vizinho. Imploradores. Humildes.

Mortos de fome. Buscavam a oportunidade de conseguir

uma grana pra sustentar o dia. Ou a oportunidade de ter ali

uma nova oportunidade. Crianças esticavam as mãozinhas

pelas grades e recebiam palmadas. Eram rostos sujos, magros

e doloridos. Uma cadeira de rodas foi erguida do meio da

multidão. Um velho caquético com um cateter sujo surgiu

sobre todos. Lembrou-se do episódio da estação de trem.

Os guardas do protetorado tentavam controlar a emoção do

povo. O doente da cadeira atravessou o mar de gente por

cima, suspenso por outros pedintes. Quando o chegou na

borda da barreira, nenhum guarda o tomou pela mão. Com

um bastão, um deles atingiu alguém que estava na ponta. A

pessoa caiu desmaiada. O velho e sua cadeira despencaram

sem equilíbrio pro outro lado da barreira. Sem reação, com

a cara da imundície, quase beijando a bota firme do guarda.

O frenesi aumentou.

A multidão reagia contra a contenção. Olhando aquilo,

de dentro do hospital, um ódio vermelho tomava conta

do seu espírito e se alimentava das memórias visuais salvas

no seu EyeStar e dos áudios gravados no SoundStar. A partir

disso, sua mente, seu coração e seus hacks se retroalimentavam

e criavam dentro de si algo totalmente novo, mas que

sempre tinha existido.

Mirou o olho no carro do Protetor. EyeStar ligado.

Sempre há brechas de hackeamento. Na rede das freiras,

protegido por ser inesperado, vasculhou o carro numa camada

mais profunda. O hack permitia entrar em áreas pouco

convencionais. Encontrou o que queria. Distante do seu

Protetor, perto da Divina Misericórida de São Neon, hackeou

o único ponto solto do carro. Na rua, ele piscou e apitou.

As quatro portas se abriram ao mesmo tempo em que o planador

atingiu o chão esburacado e cheio de lama e fezes. Antes

que algo fosse feito, a multidão miserável avançou sobre

as barreiras que caíram sobre os guardas, esmagando-os. Alguns

fugiram. Outros tentaram proteger o Protetor forman-

do um cordão vivo ao redor do planador. Era possível ver os

dejetos entrando pelas laterais do automóvel que afundava

um pouco nas camadas de sujeira. Um pezinho subiu pra

cima do estofado do banco. Pensou que o Protetor deveria

estar encolhido ali dentro. Deletaria essa imagem patética.

De sua janela, assistia às pessoas avançarem. Viu socos, mordidas,

sangue escorrendo entre pele, sujeira e suor. O cordão

de homens, aos poucos foi sumindo, assim como um vírus

some depois de um antivírus.

Com o SoundStar conseguiu acesso ao rádio do planador

do Protetor. Não era possível distinguir mais palavras,

apenas uma nova melodia de gritos furiosos e urros primordiais

contrastando com dor e socos. Um grunhido. A informação

cruzada entre seu aplicativo de visão e de audição lhe

dava relatórios para supor o que podia estar se passando ali.

Completavam aquilo que ele, por si, não sabia.

Em segundos, a multidão diluiu e se alimentou do

cordão-vivo que protegia o Protetor. Ouviu um som. Relatório:

multidão se choca contra superfície de

automóvel planador. Dava pra ver as mãos entrando e

disputando umas com as outras como se aquilo fosse o último

e único prato de um jantar. Relatório: multidão

ataca um único homem. Os sons guturais emergiam como

hinos de guerras antigas em seus ouvidos. As palavras do

relatório como profecias sacras. Viu de sua janela mãos vermelhas.

Um sapatinho manchado sendo atirado do planador

pra fora.

Desativou os relatórios.

São Neon atingia o Protetor com suas mãos.

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