Prólogo
Epílogo
Conto
Eu, Carlos, sou um cidadão que chamam de respeitado. Faz tempo que não entro em discussões. Só faço questionamentos com meu único amigo, o padre Norberto. E nos últimos meses a dúvida era sempre sobre o tal do carma, reencarnação, essas coisas. Desde que ouvi falar disso, passei a agir corretamente, dei esmolas, ajudei o próximo, me alimentava bem, e até larguei meu maior vício de todos: o marvado do cigarro. Mas para o pulmão, arrependimento não basta. Ele dói. E muito. E a tosse, cada dia pior. Mas aceito a penitência, afinal, foi a única coisa da qual não cuidei.
Certa noite, procurei Norberto lá pelas tantas. O padre abriu a porta, assustado, colocando os óculos pra enxergar o relógio da parede. Eu entrei afobado, falando que acabara de levantar assustado com um sonho ou visão. Na ilusão, recebi a visita da morte. Estava muito angustiado. Após conversarmos, ela disse que voltaria, mas dessa vez seria nossa última conversa que acompanharia.
— Me ajude, Norberto. Não quero voltar pra essa pocilga.
— Pocilga? Confesso que fiquei surpreso. Você é sempre tão correto...
— Perdoe a franqueza de seu amigo neste momento crucial de angústia que me invade. É medo desse encontro. Sei que está perto. Estou meio perdido, pra ser sincero.
— Mas o amigo sempre demonstrou ansiedade por esse momento. Diante de tantas obras caridosas, a única falha de que me lembro é prolongar o fumo. Mas não penso que seja tamanho pecado que lhe tire o destino celeste.
— Sabe que é meu único amigo. Já deixou de ser apenas confessor faz tempo.
— Sei, sim. E sabe que também o considero próximo. Mas a hora já é avançada, e não há motivo real imenso que não possa te fazer dormir. Vá em paz. Preciso repousar, porque amanhã tem missa cedo.
— Desculpe o nervosismo e ousadia de bater-lhe à porta a esta hora. Mas o senhor me ajuda a sossegar os pensamentos.
Fui-me embora mais calmo e mais leve. A única coisa que doía eram os pulmões. E quanto mais encolhia a barriga, mais tossia. E quanto mais tentava cessar, mais agonia dava. Cheguei a sufocar por uns segundos. A dor me fazia retorcer. Mas consegui entrar em casa e tomar um xarope de ervas. Já tomei tanta coisa pra não tossir. E acho que a única coisa que mudou foram as embalagens. Dessa vez, nada adiantou. A dor só aumentava.
Resolvi deitar e tirar um cochilo pra enganar a dor. Bebi uma solução forte pra dor e desmaiei de alívio.
Acordei no susto com alguém batendo à porta. A preguiça estava tão gostosa que fiz silêncio pra desistirem e irem embora. Mas as batidas continuavam. Resolvi levantar com receio de o vizinho reclamar. Abri a porta. Padre Norberto, calmo, ar sério, esboçou um sorriso sem graça.
— Está tudo bem? — perguntei, curioso.
— Sim — respondeu a figura fria em minha porta.
— Desculpe os modos. Acordei agora. Entre, por favor.
— Posso?
Fiz um gesto com a mão, convidando-o para entrar.
— Ainda estou meio aéreo. Quer beber algo? Desculpe por mais cedo, ou por ontem, sei lá. Nem sei que dia e hora é. O fato é que eu estava perdido com o sonho que tive. Na verdade, até agora estou confuso.
Após fazer sinal negativo para a oferta da bebida, Norberto sentou-se no sofá velho.
— Mas, afinal, qual seu medo da morte?
— Pra ser bem sincero, não tenho medo da morte. Tenho do depois.
— Mas você não fez boas ações? Ajudava a todos? Gastava dinheiro com estranhos? Tanto que sua casa é bem simples — disse o padre enquanto reparava no casebre.
— No fundo, ninguém tem certeza do que vem depois. Tenho amigos de toda religião e com todos é a mesma coisa: na hora da morte, todos confidenciaram esse medo. Se a vida que viveram foi o suficiente.
— Entendi. Mas o que diz sua consciência?
— Não. Em relação a castigo estou em paz. O que faz tremer de medo é ter que voltar para cá.
— Deixe-me ver se estou entendendo. Você não tem medo de morrer, mas sim de viver? — Norberto perguntou, perplexo.
— Exato. Usou as palavras certas. De morrer não tenho um pingo de medo. Mas apavoro quando penso em ver a luz e algo me impedir de ir até ela.
— Interessante. E como você sabe que é pra luz que tem que ir?
— Ué. É o que todos dizem. Até os filmes. Quando uma pessoa boa morre, a luz aparece pra levá-la ao Paraíso, ou seja lá qual for o nome que dão. E quem tem medo de morrer corre da luz com esperança de voltar ao corpo. Quando eu vir a luz, vou correndo pra ela.
— E se aparecer mais de uma luz? O que você vai fazer?
— Não tinha pensado nisso. Já vem você trazer caraminholas pra minha cabeça. Tem alguma ideia?
— Na verdade, nem posso indicar. Cada um é responsável pelo seu próprio caminho. Uns vão pra primeira luz que aparece. Outros esperam. Uns até ficam nesse lugar escuro. Mas a decisão tem que ser individual.
— Droga. Nem sabia que tinha tanta opção. Nem sabia que ia ter gente nessa escuridão. Mas esses não devem ser boa coisa, né? Pra ficarem na escuridão...
— Quem sou eu para julgá-los? Sou apenas o guia. A decisão é da pessoa.
— Mas como assim, guia? Que conversa estranha é essa, Norberto? Nossa. Deu um arrepio na espinha.
— Já que gosta de filmes, nunca viu que na hora da morte as pessoas querem estar próximas aos entes queridos, ou amigos, ou de quem confiam?
— Já ouvi, sim. Mas não tenho família. Eles morreram quando eu nem era gente...
— Exatamente. Apesar de todos gostarem de você por sua ajuda, amigo de verdade você não tinha. A única pessoa com quem se abria era este padre.
A essa altura, eu estava confuso. Me perguntando se ainda estava dormindo e sonhando. Até gaguejei.
— E-era?
— Sim, era. Acaso não reparou que a dor nos pulmões foi-se embora?
Fiquei em silêncio. Coloquei as mãos na direção dos pulmões. Levantei. O coração acelerou. Fui até a porta do quarto conferir algo. Encontrei meu corpo frio na cama. Apoiei no portal. Abaixei a cabeça por um instante. Dei um suspiro.
— Você tá certo. O padre Norberto era meu único amigo.
— Fica tranquilo. Ele vai cuidar do corpo.
— O lugar pra onde irei é bom ou ruim?
— Nada é estático. Bom e ruim são as pessoas. Vocês humanos têm a mania de julgar o lugar. São as pessoas que tornam o lugar bom ou mau.
— Ao menos fico aliviado de não voltar mais pra cá.
— Receio que possa se decepcionar.
— Sabia que existia esse lance de reencarnação.
— Eu não chamaria assim. Nada tem a ver com o que você aprendeu. Não dá mui...
Eu o cortei, ansioso:
— Quero fugir deste lugar. A Terra já deu pra mim. Assim que você me envolver com seu manto de sono eterno, no momento em que eu vir a luz irei correndo pra ela, sem pensar duas vezes.
— Que assim seja. Você é quem escolhe seu caminho.
A morte, então, me envolveu, e as luzes da casa foram escurecendo até que além de escuro senti um vazio e solidão genuínos. A escuridão era tão densa que podia senti-la roçando seu espírito recém-moribundo. Pela primeira vez, senti medo.
Perdido no escuro, olhei em todas as direções e encontrei um ponto de luz. Corri em sua direção. Comecei a ouvir vozes dizendo para não ir em direção à luz. Até vozes familiares. Quanto mais corria em direção à luz, mais vozes se juntavam ao coro:
— Volte. Venha conosco. Não faça isso...
Comecei a sentir medo. Não podia vê-los. Corri mais rápido em direção à luz. Tropecei em algo. Levantei rapidamente e continuei a corrida.
— Me deixem em paz, almas perdidas.
Quanto mais chegava perto da luz, mais alto e mais vozes berravam pra me convencer a não ir. Corri mais depressa até escorregar numa secreção. Agora, meus movimentos estavam limitados por uma espécie de túnel gosmento cada vez mais apertado e angustiante. O Guardião da Luz se apresentou:
— Agora me vês com minha forma real. Tens certeza de seguir este caminho?
— Total. Não quero voltar para aquele lugar sombrio — disse, me referindo à Terra.
— Tens noção da responsabilidade em seguir este caminho? Terás que se submeter à hierarquia. Crescer, obedecer, evoluir. E só quando estiveres pronto pra enfrentar sua escuridão que conseguirás atingir seu objetivo.
— Acho que tenho. Desculpe interromper, mas pra que essa secreção?
— Ganharás um corpo novo. O Carlos não existirá mais. Somente sua centelha de vida atravessará este caminho. Serás uma nova pessoa. Terás que aprender tudo do zero.
— Ah, tá, o tal “novo nascimento”. Entendi. Nunca estive mais certo.
— Que assim seja. Ao passar por mim, sua memória começará a apagar, você não se lembrará mais de que foi Carlos, e Mauro, e Carla. Sua centelha pode passar.
Duas mãos me puxaram para a luz, que ficava cada vez mais forte, me cegando, e eu nem conseguia abrir os olhos. A luz estava crescendo, ampliando e incomodando meus olhos. Era como se estivesse saindo de uma espécie de casulo macio. Uma fenda se abriu. Desse ponto em diante, a claridade era tão grande que eu não conseguia mais abrir os olhos. Finalmente, me retiraram do local apertado. Mesmo imundo com aquela secreção, o silêncio mórbido foi interrompido com risos de alegria do outro lado. Pra não doer a vista, abri um olho bem de leve. Percebi que quem havia me puxado era um obstetra. As luzes eram da maternidade. Minha nova mãe estava emocionada. Eu estava decepcionado em voltar à Terra. Apavorado, só me restava gritar de choro e de raiva, enquanto as últimas memórias de Carlos eram apagadas de mim.