Prólogo
Epílogo
Conto
A última memória que tenho da Terra é de uma
criança. Uma garotinha de uns sete anos com cabelos longos
e escuros, presos atrás com um pequeno grampo. Era noite
e a lua pairava em seus olhos esbranquiçados como um fantasma
em uma noite fria. Encarei-a em silêncio, aguardando
ansiosamente seus próximos movimentos. Me orbitou umas
três vezes, repousou as mãos sobre meu braço com delicadeza
e sorriu.
– Vamos?
Testei minha voz antes de responder. Inspirei com
ansiedade e expirei com coragem.
– Sim, estou pronto.
Permanecemos completamente estáticos.
Me despedi dos ares do mundo, arranquei do chão
uma flor já em presságio de morte e me entreguei, tal como
um soldado que deseja a guerra mas se prepara para a paz
– embora não mais existisse nem guerra, nem paz e muito
menos a paixão de Karenina na Capitania de onde vim.
Era sempre paz com rumores de guerra ou uma constante
guerra que convencionamos chamar paz pra não confundir
o trabalho dos historiadores. É o preço que se paga pelo livre
arbítrio. Os criminosos eram lançados no inferno antes mesmo
de morrer e o meu inferno foi a Quinta Capitania – algo
entre um aterro e as Ilhas Izu na escala de lugares menos
propícios pra se viver. O gás era tóxico e recebíamos benevolência
do Antigo Estado que nos dava capacetes vedados
e com filtros para garantir que sobreviveríamos. Apesar de
tudo, ainda evoca memórias de lar.
A garotinha me guiou até uma enorme porta de vidro
com uma maçaneta cristalina, tirou meu capacete e me
entregou um macacão. Do lado de lá, um pequeno quarto
com uma mulher de pé entre uma cadeira e uma forca. O
resto era sem vida, e não só no modo de falar. Alguns ossos
e cadáveres esquecidos sobre o chão, além de paredes cinzentas
que combinavam com meus novos uniformes e, sem
qualquer charme, tornavam as dimensões físicas um delírio.
Entrei e a porta se fechou atrás de mim.
Cinco minutos. Mais cinco minutos. Outros cinco
e depois mais quinze silenciosos minutos. Um som, como
uma ópera atonal, tomou conta da cela. Ao mesmo tempo
seduzia e angustiava e rapidamente coloria a atmosfera da
salinha mal iluminada com brilhantes formas geométricas:
dodecágonos. Enquanto isso, a mulher flertava com os cadáveres,
ensaiando alguns passos de dança moderna – a dança
da morte, brincou. As luzes e os polígonos me possuíram
por um breve instante e uma sensação de descarga elétrica
preencheu meu fluxo circulatório. Descansei as pálpebras
com fraqueza e depois, mais silêncio. Foi assim o meu segundo
nascimento. Sem sangue e nem ninguém olhando por
mim com a felicidade de uma cadela com a sua cria. Tiraram
meu nome e esqueceram de me rebatizar. Não se pode querer
ser ninguém sem ao menos ter memórias de si. Renasci
com um cigarro na mão, sendo observado em meio à fumaça
do tabaco. Talvez as penas do purgatório sejam piores que
as do inferno.
– Não tem nada pra fazer aqui, se acostume – disse
a bailarina da morte, com uma voz extremamente neutra.
– Onde estamos? – perguntei, ainda paciente.
– Pra ser sincera eu nem sei. Já faz um tempo que eu
me distraí.
– Pelo menos estamos perdidos juntos.
– Perdidos? Eu não estou perdida, não. Só estou distraída
demais pra saber onde estou.
– E qual é a diferença? – perguntei, com menos paciência
do que antes.
– Você está perdido?
Respondi que sim com a cabeça, semicolérico, abrindo
os braços.
– Mas – continuou – aposto que não está distraído.
– Acho que não.
– Então me diga você qual é a diferença.
Essa foi a primeira das poucas vezes que tivemos diálogos.
Devo admitir que muitos deles seriam ilegais mesmo
se quisesse contá-los, mas de certa forma o silêncio e a
dança ilustram nossa relação suficientemente bem, então os
diálogos nem farão tanta falta. Pra resumir, eu fui me encontrando
com o tempo. Quanto mais me encontrava, mais
me distraía. Poucas semanas depois tornamo-nos companheiros
de cela suportáveis, até ríamos de vez em quando.
Decidi apelidar-me de Fausto, como o herói de Goethe e ela
se batizou Inga. Inga Gill, como a atriz. Tinha uns quarenta e
poucos anos, cabelo curto e pele desidratada, mais escura do
que a minha. Poucas semelhanças com a atriz, embora ambas
tivessem o mesmo defeito de dançar em ocasiões inoportunas.
Dizia não saber ao certo se havia nascido sem visão ou
se perdera a capacidade de enxergar no cativeiro, mas pouco
se importava com o que não sabia.
• • •
As crianças nos visitavam uma vez por dia, pela manhã.
Mais tarde descobrimos que eram robôs – enfermeiros
ou militares – e que andavam nuas pra evitar superaquecimento.
Traziam-nos cigarros e esborrifavam os dodecágo-
nos brilhantes no ar, que diziam ser gases medicinais “para
a cura da alma”. Quando elas estivessem bastante saudáveis,
nos submeteriam ao processo de Ascensão, do qual éramos
cobaias. A coroa de louros seria o paraíso do Mundo Livre,
um planeta inédito, feito do zero e colocado em órbita do
Sol para que pudéssemos escapar da toxicidade que atingira
as Capitanias. Sempre que tentávamos resistir às inalações
(e poucas vezes aos cigarros), os robozinhos sorriam e
apontavam para os cadáveres que haviam se enforcado. Não
se importariam se tomássemos o mesmo rumo, é claro que
havia muitos outros como nós, mas Inga e eu éramos vicários,
não vendidos; heróis, não frouxos. Ou pelo menos nos
convencemos disso. Se tudo ocorresse bem e suportássemos
a humilhação, sairíamos com honras – se não, seríamos descartados
como animais desalmados (mais do que já éramos),
no que restara pelas Capitanias da Terra. Nada a perder.
Como chopins pretos em um alçapão, nos sujeitamos
a todas as doses e tragamos todo o tabaco que nos foi dado.
No primeiro mês não notei nenhuma diferença clara. Meu
desejo sexual e meu apetite diminuíram ligeiramente, bem
como a minha memória, mas fora isso ainda pensava em torpezas
o tempo todo e Inga também continuava praticamente
ela mesma, com os mesmos vícios e loucuras que a trouxeram
ao cativeiro. Pensamos que talvez nossas almas fossem
atípicas, ou que a falta de comida as estivesse afetando de
alguma maneira, anulando a catarse.
Foi quando Inga tentou se enforcar que comecei a
perceber que quanto mais sofríamos, mais rápido os gases
nos afetavam. Espertamente, provocamo-nos com alguns
gatilhos. Chorei pela falta de memória e pelo mundo que
deixei. Depois, por não saber quem era ou onde estava, se é
que um dia já pertenci a algum lugar. Inga chorou pelos cadáveres
largados na cadeira, que já fediam quase tanto quanto
nossos braços e nos metiam pavor de noite. Nos batíamos,
nos mutilávamos, roíamos a carne um do outro. Com o tem-
po, tornamo-nos indiferentes; resistência no cérebro e calos
nas mãos. A violência foi sendo substituída pela lealdade e o
egoísmo pelo bem mútuo. No verão, tomamos conta de algumas
manchas de umidade na parede e aos corpos putrefatos
cantamos um velório digno. No outono, presenteei Inga
com a minha flor que, embora morta, era a única lembrança
de um passado cada vez mais desconhecido – a serviu de alimento
por algumas horas. No inverno ficamos nús, oferecendo
a roupa do corpo a quem desejasse proteção. Fomos
programados para servir.
• • •
Alguns dias antes de completarmos um ano em observação,
chegou o mês de Brumário. Enfim as crianças não
nos trouxeram nem tabaco e nem formas geométricas, mas
cabines brancas, do tamanho de caixões. Me despedi do meu
corpo, cumprimentei Inga e subi na máquina. Na minha
mente, visões da Liberdade guiando o povo com o mesmo
vigor das primaveras anteriores. Mais do que alforria: a maldita
igualdade que invejamos por séculos. Chegada a hora da
ascensão, minha mente se lançou em deserto ínvio. Repeti o
juramento em obediência ao Mundo Livre. Não posso querer
ser ninguém. Cheia de felicidade, Inga sorriu e escalou a
cabine ao lado. A sala escureceu-se completamente, e ventos
úmidos foram tomando o lugar do ar quente. Depois, luzes
muito fortes voltaram a iluminá-la e com elas acordamos,
talvez dias depois. Flashes de câmeras. A primeira – segundo
as manchetes – de muitas outras redes anímicas teve grande
sucesso. Finalmente deveríamos estar preparados para o
Mundo Livre.
Nossa alma, num enorme banco de dados, voltou a
ser a coroa da criação desde o pecado original e Inga conse-
guiu enxergar um futuro, sem saber se pela primeira vez. Os
novos corpos eram, ao menos, resistentes, deveriam durar
por mais uns duzentos anos. Mas os nervos eram um problema
– estes, sim, enfraqueciam, como antes faziam os nossos
ossos, e nos traziam à mente o tempo todo que éramos
alguém. Ainda que não soubesse exatamente do que sentir
saudades, Inga sabia que dançava. E eu, que jurava me sentir
muito melhor agora, decidi por muito tempo ignorar os
meus nervos. Nunca invoquei a memória de meus antepassados,
mas pensei que estariam de acordo... Almas perfeitas:
e livres! “Mas os nervos...”, dizia Inga. Os nervos sempre nos
lembravam que a violência e o impulso eram nossa perdição
e ainda culpávamos todo o mundo, quando éramos nós os
culpados. Meus nervos que me perdoem, mas estive próximo
de condená-los à morte. Fomos resgatados das Capitanias
e, pela graça salvadora dos nossos líderes, evoluímos
para o Mundo Livre: há memória maior do que essa, Inga?...
Inga?
Levaram-na. A flor que ingeriu era tóxica e a encheu
de memórias. Memórias... a porta de entrada para as piores
crueldades imagináveis, costumavam dizer os mais velhos.
Inga que me perdoe, mas não se pode permitir o medo neste
novo mundo, ainda que o preço da coragem seja derramar
sangue. O Mundo Livre requer sacrifício, obediência e lealdade,
como havíamos prometido. A punição de Inga serviria
de exemplo. Os resquícios de humanidade não deveriam ser
permitidos. São todos pensamentos intrusivos, ilegais e egoístas,
ódio e violência, paixões e erros…
. . . ERROR . . .
INVALID_NAME_EXCEPTION:
DATA “INGA” NOT FOUND
A morte de Inga despertou os meus nervos, e estes,
minha paixão. Foi meu veneno. Me tornei como um filhote
pequeno e sedento – sem memória alguma ou qualquer
tipo de conhecimento, ainda sei que preciso de água pra me
satisfazer. E ferro. Escravo da vontade e com os nervos totalmente
enfraquecidos, me aproximei do corpo de minha
companheira pra dizer adeus. Não há nada a fazer, mas pouco
importa! Com a vergonha de Adão escondendo-se atrás
dos arbustos, vou ao seu encontro. A história da criação se
repete. Sem honras e sem flores, mas em paz (com os nervos).