Espetáculo de Morte

Terror
Outubro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
O Culto

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Espetáculo de Morte
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Eu trabalhava no jornal e fui um dos primeiros a saber que os artistas de teatro estariam chegando na cidade para a apresentação do espetáculo tão bem falado entre os jornalistas e críticos.

Fantástico, incomum e inesquecível eram os adjetivos frequentemente usados para descrever o drama fictício de temática mística que rodava o país. Seria impossível ouvir tantos elogios sobre as atuações e não se interessar.

Puseram em minhas mãos a responsabilidade de ir ao teatro para assistir a performance e escrever um texto opinativo que deveria ser publicado na manhã seguinte. Aquilo me fez sentir relevante. Minhas palavras teriam algum crédito, finalmente, depois de muitos meses sendo restringido às últimas páginas do periódico.

Em nosso pequeno condado, poucos eram os eruditos das artes. Muitos abastados e poderosos fingiam-se conhecedores do teatro e da música para parecerem mais interessantes do que verdadeiramente eram, e eu mesmo não era muito diferente deles. Faltava-me apenas a notoriedade e o dinheiro, mas tinha a mesma vocação dos falsos letrados para falar sobre o que não conhecia.

Vi-me ansioso para que a noite caísse e a hora certa chegasse. A curiosidade  falava mais alto depois de ter passado o dia ouvindo a cidade inteira comentar em murmúrios sobre o tal ato. Dispensei a meretriz que me bateu à porta depois do anoitecer, como fazia todos os sábados, e me permiti uma dose de conhaque antes de abotoar o paletó e partir para o evento.

As ruas estavam geladas aquela noite. Meus dedos sem luvas reclamavam e a nuca arrepiava cada vez que um sopro uivante passava por mim. O céu estava nu de lua e estrelas, mas cerrado de nuvens cinzentas que prenunciavam uma garoa constante e incomum para aquela época do ano.

Tive tempo de chegar ao auditório mais cedo e me sentir aliviado pelo calor humano que dissipou o calafrio do meu corpo. A casa estava cheia, dentro e fora dos portões. Curiosos tentavam se espremer disfarçadamente para dentro do salão, e toda aquela baderna descontrolada acabou atrasando o início da apresentação.

Era interessante como estavam todos tão ansiosos, mesmo as pessoas que nunca antes pisaram em um teatro. As propagandas dos jornais estavam, de fato, tendo êxito em cativar a atenção do povo. No fim, somos todos abutres inconscientemente atraídos pelos mistérios da morte.

A plateia estava pronta e eriçada. Ao meu lado esquerdo na primeira fileira, um senhor de bengala quis me cumprimentar antes das luzes serem apagadas, como se fosse necessário alimentar seu ego com meu reconhecimento. Mas seu nome não me soou conhecido. Em verdade, eu não conseguiria repetir ou relembrar, se preciso fosse. Com toda a certeza não era um nome inglês, apesar do homem ter a aparência de um lorde.

— Allan Curry, senhor. — respondi ao aperto de mãos. — Do jornal municipal.

— Oh, do jornal! — Fingiu dar importância para a minha existência, apertando seus olhos numa simpatia forçada. — Sim, claro, era de se esperar. Presumo que gostará do nosso show.

Eu não tive interesse em perguntar quem ele realmente era — um roteirista ou diretor? —, mas também não teria tempo. O ambiente escureceu e o burburinho cessou, preparando-nos para o início.

Meus ouvidos vibraram com a sinfonia chorosa de violino que se formou enquanto um ator deslizava para o centro do palco, envolto num véu negro. Foi até uma mesa redonda, onde pousou um livro largo e fez movimentos dramáticos com as mãos e braços.

Corri a visão por todo o palco, procurando outras interferências, mas a escuridão me impedia de ver mais que o homem dançante. O sentimento de estar sendo observado por olhos invisíveis, porém, não me deixava.

Foi um ato angustiantemente lento. Nada, digo, absolutamente nada de interessante acontecia. A sonoridade dos instrumentos ecoando pelo teatro era o que me mantinha vidrado, impedido de torcer o pescoço para o outro lado.

Velas foram acesas. Na mesa, no chão, em castiçais. O personagem abriu o grande livro ao meio e deslizou os dedos pelas páginas. Jogou-se para trás em seu primeiro movimento ágil e rosnou do fundo da garganta, chamando outras sombras para juntarem-se à ele. Elas saíram de trás da cortina, como eu havia suspeitado.

Os outros corpos em túnicas transparentes reuniram-se ao redor da mesa, ignorando o princípio de não dar as costas ao público. Era mesmo aquele o grande espetáculo de que tanto falavam?

Foi que então as bocas começaram a se mexer. Sete bocas ao total. Homens e mulheres. Inicialmente apenas sussurros que se repetiram até a exaustão e que eu não me dei o trabalho de tentar ouvir ou decifrar. Levaram um tempo assim, até darem-se as mãos e transformarem o quase-silêncio em gritaria.

Levei um susto, mas não fui o único. O público reagiu com uma interjeição uníssona aos berros roucos emitidos. Ao meu lado esquerdo, fisguei uma sombra de sorriso no homem sentado ao meu lado. Ele esperava por aquilo e pareceu se divertir com o reflexo da plateia.

Com relação às palavras que estavam sendo gritadas pelos sete, seria impossível descrevê-las. Eu duvidava que os rugidos fossem, sequer, um idioma ininteligível. Ecoavam pelas paredes como chiados, grunhidos, gaguejos. Sons que produziam angústia, e talvez certa curiosidade para os mais frígidos. Eu não saberia o que escrever para o jornal se aquele espetáculo continuasse seguindo daquela maneira tão esquisita.

Com a volta do silêncio, meu batimento cardíaco se acalmou. As luzes bruxuleantes das velas se apagaram, como se num único sopro. De certo, achei ter sentido uma rápida corrente de ar passar por mim, mas só poderia ter sido uma sensação psicológica. Em paredes tão firmes e fechadas a possibilidade de um vento me atingir era inexistente.

— Vós que assistes, olhai. — enunciou um dos personagens à mesa.

— Vós que ouvistes, escutai. — Outra voz, desta vez mais feminina.

— Que vivam os mortos e morram os vivos!

E dito aquilo, as paredes vibraram e tambores açoitaram o ar pesado com as repetitivas notas cabalísticas. Meu coração retumbou no peito e senti meus ombros se encolherem e meu corpo congelar. O paletó por cima do meu corpo de nada servia. Minha pele o sentia como um fino lençol, uma mantilha servindo apenas para pressionar meus pelos eriçados contra os poros.

Busquei as expressões ao meu redor para saber se era o único a me sentir arrebatado. Não era. Com exceção do senhor ao meu lado, todos compartilhavam da mesma expressão que eu carregava. Certamente era intenção do espetáculo expor-nos às piores sensações, ao que nos trouxesse mais próximo da morte.

A música continuava a ser tocada com violência e no palco ainda era visível as silhuetas humanas mesmo na ausência da luz. Permaneceram um longo tempo paradas como estátuas misteriosas, encarando-nos do alto com seus olhos invisíveis na escuridão. Quando o batuque cessou, minutos depois, o silêncio parecia mortal. Como se nada no mundo existisse ou acontecesse fora daquelas paredes. Ouvi apenas as respirações ansiosas, além da minha garganta seca tentando engolir um resquício de saliva.

Do fundo do teatro, nas últimas fileiras, um urro longo e agonizante cortou o ar. Mover-se da cadeira foi inevitável, então todos se viraram para trás, buscando a origem do som imprevisto.

Não era possível ver muito mais além que duas fileiras de poltronas atrás da minha, então me senti perdido. Mais ainda quando outro do mesmo grito ecoou do lado lado de cá do salão, vindo de mais perto.

As pessoas se incomodaram com a falta de informação sobre o que acontecia na plateia, e as figuras no palco voltaram a repetir seus sussurros delirantes e sem sentido. Houve mais um berro, mas este eu pude saber de onde vinha. Bem atrás de mim, uma jovem moça pulou de seu assento como se algo a tivesse espetado com força. Ou melhor, lhe arrancado algo de dentro do corpo. Porque foi como soou o seu guincho. Eu me afastei de imediato quando a moça caiu no chão num baque surdo, calando-se de vez.

Depois dos três urros seguidos as pessoas começaram a se alvoroçar. Sem uma explicação para a situação o instinto obrigava-nos a fugir do lugar. Foi o que alguns fizeram. Correram para as portas do salão e bradaram, esmurraram e ordenaram que abrissem de uma vez aqueles portais. Ninguém os atendeu.

Eu tive a sensação de precisar correr para longe dali, mas não obedeci minha intuição. Primeiro busquei os olhos do senhor de bengala, que continuava impassível em seu lugar.

— O que está acontecendo? — Tive que perguntar e sacudi-lo pelos ombros para que olhasse para mim.

— Olhe e veja.

Eu pude enxergar alegria em seus olhos pequenos, o que me deixou ainda mais confuso. Não era de minha natureza desesperar, mas eu me sentia bem perto de perder os sentidos e me juntar aos que ainda se debatiam em busca de uma saída.

Sabe Deus se o que vi em seguida foi real ou só uma terrível e maravilhosa ilusão ótica. Independente disso, sei que vi com meus dois olhos o que aconteceu.

Descrever é impossível quando não se tem palavras em nossa língua humana que possa expressar com exatidão a natureza daquilo. Sei que primeiro o senti roçar em minhas pernas, um toque gelado que agia como um gato, enroscando em minhas canelas. Ao inclinar o rosto para o chão, vi que brilhava num tom escuro aveludado e tinha vida própria. Vibrava ao rastejar pelo chão e me fez sentir um imenso nojo pelo cheiro que exalava, e que com certeza tinha grudado em mim.

Aquela parte rastejante se ligou à outra coisa maior que vinha pelo corredor do meio. Eu tive que ceder aos meus joelhos e sentar-me na poltrona, assistindo aquilo acontecer na minha frente sem reagir. A criatura cresceu ao se levantar, passando dos três metros de altura. Àquele ponto eu já não sabia dizer se era o único a enxergá-lo ou se os gritos incessantes do teatro eram agora motivados por aquela visão.

Era impossível conceber aquilo como real, mas ainda mais difícil de pensar que aquele monstro fazia parte do espetáculo. Porém, os atores continuavam no palco, curvados com os joelhos ao chão e os braços estendidos para frente como se saudassem a grande coisa.

— Você é um homem esperto, senhor Curry. — O homem ao meu lado falou com uma voz que não o pertencia. — Espero que escreva um belo artigo sobre nós no seu jornal.

Ele sorriu para mim novamente e eu não sabia se o encarava ou se soltava o volante da minha sanidade para desmaiar e nunca mais acordar. Talvez deva ter escolhido a última opção, porque os eventos seguintes pareceram ainda mais estranhos.

A criatura gigantesca virou sua fronte para o público no fundo do teatro. Abriu aquele pedaço de carne que imaginei ser uma boca e falou com uma voz não-humana. Eu pude comparar seus sons estrondosos com os sussurros dos atores — definitivamente soava igual àquela língua incompreensível e enigmática. Mas o que a criatura dissera não importa, até mesmo porque eu jamais poderia ter compreendido com meus ouvidos humanos. Importa que, após fechar a boca, o silêncio foi feito novamente, cessando os gritos. Poderia ter sido uma reação de tensão pavorosa onde todos se calaram e voltaram-se para o monstro, mas as pessoas pareceram mudar completamente. Do pânico à calmaria. Como se, num piscar de olhos, compreendessem tudo o que acontecia e normalizassem seus sentimentos.

Aos poucos o tumulto formado nas portas se amenizava e todos voltavam para os seus lugares na plateia com sorrisos no rosto e certa felicidade estampada. Os corredores de poltronas foram tomados novamente e as luzes de velas do palco voltaram a brilhar, ao tempo que eu percebi que a coisa já não mais estava lá. Não saíra para outro lugar, nem se escondera. Apenas sumira. Como o ar quente que sai de nossas bocas numa noite gelada e torna-se invisível depois de alguns segundos de clareza.

Depois que o espetáculo foi encerrado eu já não me sentia como o mesmo homem que entrara por aquelas portas. Não consegui cumprimentar nenhuma das pessoas que passaram por mim, nem ficar por muito tempo naquele lugar. Primeiro pelo motivo de não sentir humanidade nos olhos apagados e sorridentes daqueles que me olhavam, mas também por não conseguir me desviar dos pensamentos que me vinham à cabeça.

Eu havia entendido todo aquele espetáculo surreal como se uma misericordiosa lucidez me tivesse sido soprada. Senti-me preso às ideias e tudo o que precisava era voltar para casa e começar rascunhar o meu artigo para o jornal.

Sei, como sei que o céu é azul, que naquela noite eu fui poupado de um mal terrível e invisível. Sei que todas aquelas pessoas não saíram daquele teatro sendo as mesmas de antes. Não da forma como aconteceu comigo, mas como seres completamente diferentes.

Criaturas mortas tomaram os corpos vivos daquelas pessoas, roubaram suas vidas e suas existências. Arrancaram à força as almas humanas daqueles receptáculos para voltarem a viver vidas que não as pertenciam, apenas pela necessidade de sentirem-se vivas.

Fui poupado de perder a minha essência e deixar meu corpo para servir de veste carnal para um demônio apenas para que agora, ao chegar em casa, apressasse-me para escrever o meu artigo com belas e longas palavras de elogio. Para que eu pudesse embelezar com mentiras a realidade vivida naquele teatro. Para que eu me esquecesse da verdade e passasse adiante a falsa narrativa de que o ato misterioso teria sido uma surpreendente arte teatral.

Foi o que fiz, com a urgência de quem sente que pode morrer à qualquer momento se não fizer o que é pedido. Como se uma lâmina invisível estivesse sendo pressionada contra meu pescoço para que eu seguisse o comando sobrenatural que tomava conta de mim. Mas digo, por último, que teria sido melhor escolher morrer, desobedecer e perder minha consciência para a eternidade sepulcral. Ao menos a morte teria sido pacífica e despercebida e eu não teria que passar o restante da minha vida ouvindo aquela criatura proferir seus terríveis sons inumanos em minha mente cansada.


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