Prólogo
Epílogo
Conto
O grito cortou a calmaria do amanhecer. Estridente o bastante para se escutar em qualquer lugar do bairro, a banshee fez sua voz ser ouvida, impossível de ignorar seu agouro de morte.
Irritada, eu atendi o celular, cortando o som.
— Mas que merda, Siobhan. Quando você escolheu seu toque, eu não esperava ligações antes das seis...
— Desculpa, desculpa, desculpa! Mas é uma emergência! — Se eu não soubesse que a vozinha de criança do outro lado da linha era a mesma que me acordara, jamais conseguiria adivinhar. — Você pode vir aqui? Ou eu vou aí? É melhor escolher só um dos dois, ou vamos acabar esb...
— Siobhan! — interrompi sua torrente frenética. — Café. Lugar de sempre. Te vejo em uma hora.
— Uma hora? Mas, Lara, é import...
Desliguei o celular, me jogando novamente no travesseiro e reunindo a coragem necessária para começar meu dia muito antes do esperado. Chequei o celular novamente, e grunhi. Cinco e quarenta da manhã é um horário insano para qualquer um. E para mim, que deitara havia menos de três horas? Especialmente demente. Cogitei seriamente colocar o telefone no silencioso e voltar a dormir; banshees que se danem. Com um grunhido ainda maior do que o anterior, saltei para fora da cama e comecei minha rotina matinal.
***
Havia passado pouco das sete quando estacionei em frete à De Koffie in de Kist, uma confeitaria holandesa que parecia estar sempre aberta, apesar de o horário escrito no vidro claramente somar apenas oito horas. Também costumava estar relativamente vazia, ao menos durante o dia. Fazer o quê? A clientela principal deles não era exatamente fã de sol... Siobhan me apresentou este lugar quando começamos a trabalhar juntas, e desde então café e torta se tornaram nossa tradição.
O sininho da porta tilintou alegre e completamente sozinho em tal sentimento. Atrás do balcão, Danique segurava uma caneca enorme de forma positivamente homicida, óculos escuros meio tortos no rosto geralmente amigável. Antes que pudesse falar qualquer coisa, ele já estava se movendo em direção à cafeteira e indicando com a cabeça o salão interno onde ficavam as mesas.
— Finalmente. Potverdorie, Lara, faz mais de uma hora que ela está aqui, andando de um lado pro outro e falando sem parar. Eu juro que se fosse qualquer outra pessoa...
— …você não estaria tomando sangue na caneca — completei a ameaça habitual. — Desculpe, Dan. Mas, ei, agora que eu estou aqui você está livre de uma irlandesa insana rondando seu café!
— É melhor que eu esteja. — Sua voz continuava dura, mas a expressão já estava mais suave. — Ela conseguiu afugentar o Coen dez minutos depois de chegar, e ele tem mais paciência do que eu.
Não consegui conter o sorriso ao imaginar o vampiro de quase dois metros de altura sendo vencido por uma banshee que sequer alcançava um metro e meio, e fugindo de sua própria confeitaria.
— E você foi corajoso o bastante para ficar? — perguntei, rindo. Ele franziu a testa, me entregando o café já preparado e um pedaço de torta.
— Não. Mas ele ameaçou deixar o cão dele dormir no meu travesseiro, e você não faz ideia do quão irritantes são os pelos de um cachorro fantasma...
— Acredite, eu sei.
Ele examinou dramaticamente o uniforme que eu usava, e assentiu com uma solenidade desnecessária.
— Ja. Você venceu essa.
Continuei rindo enquanto me dirigia para nossa mesa habitual, humor melhor depois das desventuras do casal de vampiros. Não consegui chegar lá. Mal tinha passado da entrada e uma massa compacta de cabelos brancos cobriu completamente meu campo de visão, enquanto Siobhan se pendurava um meu pescoço.
— Você chegou, você chegou, você chegou! Eu estava tão preocupada que eles tivessem errado a hora, ou que eu tivesse visto o memorando tarde demais, e não fosse dar tempo... Mas você está aqui! E inteira!
Com a pouca delicadeza que me foi possível, me desvencilhei dela, deixando os braços esticados para manter uma distância segura.
— Siv, lembra do que conversamos sobre comunicação?
Ela enrubesceu.
— Que funciona melhor com as frases na ordem certa?
Assenti solenemente.
— Exato. Então, tendo isso em mente... O que exatamente aconteceu para você me ligar nesse horário insano e ficar agitada o bastante para afugentar mortos-vivos?
Ela desviou o olhar e segurou minha mão com as suas, subitamente profissional.
— Lara. Minha linda Lara O'Meara. Larinha...
Finalmente compreendi sua atitude, e comecei a gargalhar.
— Você está tentando dizer que eu vou morrer? Eu? — O riso tornava falar uma tarefa difícil, mas valia a pena. — Siv, você lembra de com quem está falando, certo?
Ela grunhiu em frustração, o que só me fez rir mais. Tanto a declaração como a expressão eram tão ridículas que tinha que me controlar para permanecer vertical.
— LARA! — O cômodo esfriou perceptivelmente. Um grito ensurdecedor, extremamente similar ao que me acordara, mas mil vezes pior, fez-se ouvir. À minha frente, Siobhan jogara a cabeça para trás, cabelos voando de forma sobrenatural, feições horrivelmente distorcidas enquanto emitia o som. As janelas tremeram, e tanto a xícara que eu segurava como aquela em cima da mesa mais próxima caíram no chão (uma pelos temores, a outra quando levei ambas as mãos às orelhas, tentando diminuir o som terrível).
Depois do que pareceu uma eternidade, a banshee se aquietou, e sua forma voltou àquela que me era familiar — uma irlandesinha com cara de adolescente, praticamente monocromática com seus cabelos e pele extremamente claros, olhos verdes contornados de lápis preto (para disfarçar a vermelhidão natural). Inofensiva. Um agouro de morte adorável.
Dan entrou no mesmo momento em que sentei, carregando mais café e uma expressão preocupada. Ele me deu duas batidinhas de consolo no ombro e colocou as xícaras sobre a mesa, saindo sem dizer nada. Olhei para minha amiga, confusa e um tanto chocada.
— Mas... Como assim, eu vou morrer? E, se estamos no assunto, por que você veio gritar pra mim? Meu padrasto pode ter vindo de Dublin, mas eu só tenho o nome! Você sabe que meus pais não tem nada a ver com... Nada disso!
Ela sacudiu a cabeça, simultaneamente pegando do bolso uma pastilha para a garganta.
— O nome é o bastante, Lara, você sabe bem disso. Além do que, mesmo se não fosse, te avisar é uma questão de cortesia profissional. Você faria a mesma coisa. E antes que você pergunte: não, eu não faço ideia de quando, ou como. Não é assim que funciona. — Sua voz saiu rouca, cansada. Ela me abraçou, ignorando minha falta de reação. — Mas veja pelo lado bom: pelo menos você já tem um monte de contatos!
Essa frase me trouxe de volta à realidade — ela e o cheiro forte de gengibre, isso é. Siv estava certa, é claro: contatos nunca me faltaram. Por que não fazer bom uso deles? Abracei-a de volta e me levantei, pegando do chão a foice que havia derrubado junto com a caneca de café e ajustando o grande capuz preto de meu uniforme.
Hora de ir ao trabalho.
***
Desci de meu carro corporativo (“poltergeist no motor incluído!”) no estacionamento subterrâneo, seguindo direto para o elevador.
Se alguém me dissesse, quando terminei meu mestrado em Espectrologia e Leituras Ectoplásmicas, que em menos de dois meses eu estaria trabalhando para a própria Morte, eu jamais acreditaria. Naquela época, a coleta de almas tinha deixado de ser um serviço gratuito e mandatório havia muito pouco tempo, e a ideia de contratar um serviço privado para garantir a ausência de assombrações ainda estava sendo assimilada. Apesar de tudo, eu entendia a motivação por trás desta polêmica decisão: tentar fazer seu trabalho enquanto todo mundo continua barganhando por mais tempo, tentando se esconder com feitiços de invisibilidade, te desafiando para jogos constantes de xadrez? Devia ser extremamente cansativo.
O pacote de benefícios para funcionários da agora gigante Morte S.A. já era atraente o bastante para ser o sonho de qualquer um: horários flexíveis, um salário invejável, transporte, imortalidade, além de um fantástico plano de saúde? Tudo isso garantido por feitiços colocados em uma foice prática e estilosa. Como recusar?
Meu departamento — coleta e exorcismos — ficava no terceiro andar do prédio, e era um dos mais variados. Siobhan, que aproveitara a carona, continuou no elevador, flertando com o ascensorista da manhã (um ghoul extremamente simpático, e que sempre nos oferecia alguns dos dedos que estava comendo, independentemente de recusarmos todas as vezes) enquanto subia até o sétimo andar — agouros, augúrios, profecias e previsões. Desviei de salas e círculos de sal enquanto andava até meu escritório, o som familiar de cânticos cortado apenas pelo ocasional telefonema, ou palavrão de alguém que subestimou um fantasma particularmente desagradável.
Fechei a porta à cacofonia familiar e apanhei o telefone. Antes que pudesse discar, porém, ele tocou.
— Oh, uau, La. Se eu soubesse que você estava me esperando tão ansiosa, tinha ligado antes!
Sorri.
— Se não é minha loira preferida. Marilyn, meu amor, como você adivinhou que eu estava louca para ouvir sua voz?
O riso dela era mais musical do que todos os cânticos já fora juntos. Juro, a melhor decisão que o RH já tomou foi contratar Marilyn Monroe para a gerência...
— Talvez porque você sempre esteja... — Seu tom tornou-se sério. — Lara, eu preciso que você resolva um probleminha aí em cima. Um dos seus colegas, o Otto, há dois dias não responde aos contatos. Nada contra férias fora de hora, mas o caso em que ele estava era importante para o nome da empresa, e ele não chegou sequer ao local marcado...
Um arrepio correu por minha espinha, e senti meu estômago começar a se apertar em nós. Apesar disso, fiz o possível para ignorar a sensação de tragédia iminente e agir de forma profissional.
— Aonde ele estava indo, e qual o cliente?
— Essa é a parte sensível. Não acho que precise te lembrar que isso é confidencial, certo? — Quando não respondi, ela continuou: — Muito bem. A alma a ser recolhida foi primeiro identificada dentro da prefeitura.
Eu grunhi e apoiei a cabeça nas mãos, ativamente evitando que eu batesse com ela na mesa (como era minha vontade). Por que a prefeitura? Não podia ser em qualquer lugar mais agradável, como a ruína de uma explosão atômica, a parte do necrotério onde ficam os corpos de pessoas afogadas ou o depósito de zumbis? Qualquer outro lugar, mesmo, e eu não reclamaria. Mas o que eu fiz para o universo me mandar pra prefeitura? Marylin agiu de maneira simpática, tentando me animar enquanto passava os detalhes técnicos do contrato, mas nem mesmo ela conseguiu. Com praticamente um suspiro a cada cinco ou dez segundos, peguei alguns equipamentos extra no almoxarifado e fui encontrar meu destino.
***
Se você nunca esteve por estes lados, é bom deixar claro que minha relutância não é uma questão puramente dramática. Desde que a Morte se transformou em uma empresa, há algumas décadas, e os humanos subitamente se viram frente a frente com todo tipo de morto e morto-vivo (tanto os recentes, decorrentes do fato, como os mais antigos e que viviam escondidos), por questões diplomáticas nossa cidade tornou-se território soberano — afinal, qualquer país que tivesse a própria Morte entre seus recursos seria uma ameaça inimaginável. Não demorou muito para criaturas mágicas dos tipos mais variados migrarem para cá, em busca de leis mais tolerantes e reconhecimento de suas necessidades particulares. Mesmo que antes tivéssemos outro nome, a imprensa mundial nos apelidou de “Cripta”, e o nome pegou. Panteões dos mais diversos convivem com seres vindos de outras realidades, ou sumonados das mais variadas dimensões, com o ocasional humano mais aventureiro podendo ser encontrado.
Entre tais imigrantes, estava minha mãe, uma huldra norueguesa à moda antiga — ou pelo menos tanto quanto permitido por uma carreira de modelo. Meu pai — também conhecido pelas minhas tias como “marido número sete” — era um dos seus fotógrafos principais, mas morreu antes de eu nascer. A esta altura, “marido número oito”, um professor universitário irlandês, já era parte da rotina familiar, e ganhei seu nome. Quando minha mãe decidiu se divorciar, acabei morando com meu padrasto, seguindo o mesmo princípio de meus irmãos e irmãs de seus romances anteriores. Não, eu não tenho uma cauda de raposa, nem de vaca (mesmo que adorasse dormir em cima da de minha mãe), e o furo nas minhas costas é quase imperceptível, a menos que eu saia de biquíni. E, sim, é considerado rude perguntar como alguém que parece uma árvore velha funciona (“seus órgãos não caem?”, “Você guarda alguma coisa aí dentro?”, “Mas... como?”. Humanos.).
Vendo por esse ponto de vista, não é de todo estranho imaginar que antes de saber andar direito eu já conseguia traçar círculos mágicos competentes e que minhas primeiras palavras foram o início de um dos rituais de exorcismo que meu padrasto estuda. Eu cresci na cidade mais mágica do mundo, em uma casa dedicada ao estudo de fantasmas, sendo criada por um especialista. Enquanto fazia faculdade, eu pagava por minhas coisas fazendo bicos como exorcista temporária (somente a Morte S.A. tem os contatos necessários para os permanentes), passeadora de poltergeists e revisora de encantamentos (consegue imaginar todos os desastres que ocorrem quando feitiços e corretor automático são combinados?).
Uau, mas isso foi extremamente narcisista, não? Eu começo a explicar a cidade e acabo em uma digressão narcisista com meu histórico mágico (e currículo, acidentalmente), sem jamais terminar o primeiro tópico: a prefeitura. Qual a razão para eu detestar entrar naquele prédio, afinal? São várias: funcionários desagradáveis, burocracia excessiva, a família quase inteira da prefeita — conhecida pelas minhas tias como “esposa número cinco” — trabalhando nas salas vizinhas e fingindo que nós nunca fomos no mesmo jantar de Natal... Mas a principal é o cofre.
Cripta tem um contrato bastante elaborado com a Morte, garantindo a coleta regular de almas em determinados locais e horários. Apesar disso, as coletas são espaçadas, ocorrendo uma vez por semana em cada localidade, às vezes menos. Nesse meio-tempo, os moradores são sujeitos a assombrações de qualquer natureza. Por isso, temos tantos contratos particulares, além dos pagamentos públicos: afinal, poltergeists soltos por um bairro podem causar um estrago gigante. Quando alguém não pode contratar nossa empresa, porém, ou um espírito sai do lugar de onde estava e decide vagar causando estragos, a prefeitura é chamada para resolver o problema. Exorcismos temporários só os irritam ainda mais, piorando o problema; então, os fantasmas são coletados e colocados no cofre. E depois? Depois, nada. Eles ficam lá, presos pelos feitiços nas paredes e o material de cada um dos cubículos dentro, indefinidamente. Jaulas dentro de uma jaula maior, e prisão perpétua irrevogável.
Já houve algumas tentativas de mudar as políticas públicas quanto ao tratamento dos mortos e mortos-vivos, claro (contêineres de zumbis ainda são uma realidade). Mas não houve resultados significativos. Sempre que uma família ameaça processar a prefeitura pelo tratamento de seus mortos, na manhã seguinte uma caixa contendo o espírito lhes é entregue pelo correio, para que façam o que preferirem. Não vou comentar o estado de almas deixadas em tais condições; seria gráfico e desagradável demais. Mas sempre que nos chamam para um desses casos, pode ter certeza que o funcionário responsável vai estar no nosso bar habitual, de onde não sairá tão cedo.
***
Fui recebida por uma secretária entediada e sonolenta, que me direcionou para o escritório do chefe de segurança; se alguém saberia por onde o Otto andou caso tenha chegado até o prédio, ou a origem do espírito que motivou a chamada inicial, era ele. Agradeci. O nó que se instalara antes no meu estômago parecia só ter crescido, e trazido alguns amiguinhos com ele, deixando minha garganta apertada. Ótimo. Tudo o que eu precisava.
Respirei fundo e contei até dez lentamente antes de entrar, sorriso falso congelado em meus lábios. O lobisomem era enorme, quase duas cabeças mais alto do que eu. O fato de estar sentado atrás de uma mesa só diminuía um pouco o efeito assustador de suas presas e garras. A gravata azul, no entanto, conseguia deixá-lo surpreendentemente parecido com um cachorro recém-saído do banho e tosa...
— Edgar. Me falaram para falar com você.
— Lara. Porque meu dia não podia ficar pior, claro. — Acho que ele estava franzindo a testa, mas era difícil interpretar expressões caninas. — Muito bem. Fale.
Geralmente, eu entendo a má vontade dele; a mãe dele se casou com a minha poucos meses depois de ela e meu padrasto se separarem, e o casamento foi breve e tumultuoso. Elas tentaram, no início, que nos tratássemos como irmãos, e foram parcialmente bem-sucedidas: os xingamentos constantes, a agressão irracional e as tentativas de esquecer a existência do outro por quase o ano inteiro estavam definitivamente lá.
Decidindo me ater ao protocolo, expliquei da forma mais breve e concisa a situação. Meus instintos diziam para manter tudo aquilo em segredo, mas os ignorei também: era isso ou ser agradável com o Edgar, e há limites para o que uma pessoa fará pelo seu emprego.
— Não sei de Otto nenhum, e nós não temos nenhum espírito novo desde o ano passado. — Sua voz estava ainda mais dura do que o normal, o que chamou minha atenção. Ele estava desconfortável, e não somente no sentido que sempre era presente quando nos víamos. Não, essa era a atitude de uma pessoa tentando esconder algo.
Agradeci educadamente e saí. Pressioná-lo mais não iria resultar em nada além de uma possível expulsão de prédios públicos. Saindo da sala, entrei no primeiro banheiro que encontrei, trancando a porta. Ser polida não ajudou. Hora de voltar à moda antiga.
Digam o que quiserem de mantos pretos, mas a quantidade de bolsos que podem ser escondidos neles é fabulosa. Apanhei um pacote de areia, giz e sal misturados de dentro de um, e espalhei o conteúdo em um círculo no chão ao meu redor, com um pequeno tracinho cruzando-o em cada um dos pontos cardeais. Quatro velas em miniatura (com o formato e aroma de maçãs, compradas em uma promoção), então, uma sobre cada marca feita, foram acesas. Por fim, um pote plástico contendo meu lanche — algumas bolachas e três pedaços de bolo — foi aberto no meio, ao meu lado. Então, comecei o cântico.
A foice era desajeitada, e sempre me atrapalhava na hora de fazer feitiços. Delicadamente, coloquei-a no chão dentro do círculo, não querendo quebrá-lo e ter que começar do zero. Meu objetivo era atrair qualquer espírito recentemente visto no prédio, tanto para conseguir mais informações quanto para simplesmente terminar a tarefa inacabada de meu colega. Esse pequeno encanto é bastante útil com fantasmas inofensivos e sombras, mas completamente inútil com poltergeists (que, se ainda não percebeu, são suas versões agressivas). Isso, é claro, não seria um problema: ninguém fofoca tanto quanto os mortos.
Não precisei insistir: tão logo terminara os primeiros versos do ritual, e uma névoa se formou, pouco a pouco ganhando feições — e formando, para a minha surpresa, um rosto extremamente familiar.
— Otto? O que diabos você está fazendo aqui, nesse estado?
Ele era um homem franzino, tornado ainda menor por esse estado incorpóreo. O uniforme em que estava acostumada a vê-lo fora substituído por um terno mal ajustado e de um cinza indefinido. Suas mãos se esticavam à maneira típica dos ghouls, e seus óculos continuavam meio tortos (não importava quantas vezes fossem ajustados, bastava ele colocá-los e, pronto: tortos novamente). Não havia sinal de sua foice.
Ele abriu a boca, e achei que iria falar algo. Em vez disso, um som horrível e distorcido saiu de sua garganta, e sua mandíbula se distendeu, enquanto ele se atirava em minha direção, garras primeiro. Por puro reflexo, me abaixei a tempo, me desequilibrando no processo e quase quebrando o círculo. Se meu padrasto me visse neste momento, ele daria um sermão mais longo do que a Odisseia sobre os perigos de ficar dentro do círculo usado para sua invocação, mas nunca fui muito fã dos procedimentos de segurança — o ritual se torna muito mais burocrático, e quase dobra na duração. Dei toda a razão do mundo para o velho Sr. O'Meara enquanto fazia o possível para me esquivar de mais um ataque das garras do ghoul fantasmagórico (não acredito que minha vida envolve frases como essa...).
Não conseguia alcançar minha foice a tempo, sempre sendo interrompida por ele ou forçada a recuar. Ainda assim, já estava comemorando minha vitória, quando fui lenta demais. A dor no meu braço esquerdo foi intensa e imediata, apesar de ter sido pega quase que de raspão. O desenho de quatro lacerações paralelas rasgou meu manto, deixando visíveis os ferimentos abaixo. Sem perder tempo, ele lambeu o sangue das garras, saboreando cada instante. Suas cores pareceram ficar mais intensas, e ele ganhou um pouco mais de solidez. Em um gesto que vi uma centena de vezes, Otto ajustou seus óculos inutilmente na ponte do nariz e sorriu profissionalmente.
— Ah, Lara. É um prazer vê-la. Imagino que nossa cara Marilyn tenha te mandado para verificar o status de minha tarefa, não?
Encarei-o por alguns momentos, tentando reunir palavras em meio ao choque. Quando falei, foi com sílabas lentas e didáticas, que podiam ser compreendidas por qualquer um.
— O que exatamente foi isso, Otto?
— Peço que me desculpe, por favor. — Ele continuava falando como alguém que nunca fez nada pior do que derrubar café em uma sala de conferências, sorrindo levemente. — Aparentemente, a ausência de uma forma física não afeta meu apetite tanto como se esperaria.
Respirei fundo. Respirei de novo. Contei até dez pela terceira vez aquele dia. Havia muitas razões bastantes claras para que eu e ele nunca tenhamos passado de colegas a amigos. Essa expressão era uma delas. A obstinação que a acompanhava era outra.
— Certo. Ok. Longe de mim discutir necessidades anatômicas de mortos-vivos com você. Não, refraseando: eu prefiro qualquer coisa a discutir necessidades anatômicas de mortos-vivos com você. Mas, já que caímos neste tópico infeliz, eu tenho uma pergunta muito importante: onde está o “vivo” da sua anatomia atual? Não pude deixar de notar que você está bem mais translúcido do que o habitual.
Ele mexeu nos óculos novamente, e depois nos poucos cabelos, ligeiramente constrangido.
— Sim, eu encontrei um pequeno... contratempo, neste último trabalho. Mas não se preocupe, não é nada que eu não possa corrigir, agora que você está aqui!
Eu não gostei do tom da voz dele, e o informei desse fato. Otto riu.
— Você se preocupa demais, Lara! Relaxe e confie nos seus colegas. Trabalho em equipe é uma habilidade extremamente importante no mercado de hoje.
Minha resposta foi um grunhido. Novamente: as razões para mim e a Siobhan nunca, jamais termos convidado ele para nada são muito claras.
— Otto, será que você pode parar de enrolar e me explicar o que exatamente aconteceu por aqui?
— Muito bem, muito bem, já que insiste. — Ele ergueu as mãos, rindo. Não achei que era possível eu ficar mais desconfortável do que já estava, mas a cada nova frase ele conseguia a proeza de piorar meu estado emocional. — Como você sabe, eu fui chamado para lidar com uma alma recém-localizada neste prédio que, coberto pelo plano premium, tem garantia de remoção instantânea de espíritos sem necessidade de ligações, é claro. Mas, chegando aqui, o chefe de segurança não sabia nada a respeito de quaisquer fantasmas recentes...
— … Tanto quanto não fazia ideia de quem eu estava procurando, tenho certeza...
— … e me orientou a buscar os Recursos Humanos do prédio. Resumindo uma tarde extremamente longa: após ser passado de um departamento para outro, todos terrivelmente desinformados, decidi ir diretamente à prefeita. E assim... Bem, eu achei o fantasma.
Levei alguns instantes para entender o que ele estava insinuando.
— Não, não a esposa número cinco! Minha mãe nunca vai me deixar esquecer isso, se for ela!
Completamente impermeável a meus lamentos familiares, ele continuou com a mesma gravidade:
— Sim, a prefeita. Estava chegando lá quando esbarrei no chefe de segurança e um assessor, carregando uma jaula com o fantasma dela para o cofre. As coisas ficaram um pouco agitadas, se entende o que quero dizer, e minha foice foi partida ao meio durante o confronto, ao fim do qual tudo o que me restava era desaparecer o mais rápido possível da cena e me esconder até que alguém fosse mandado para terminar o serviço. E aqui estamos.
Ele sorriu novamente, dentes aparecendo, e deu um passo à frente. Novamente, por instinto, recuei, quase tocando a beirada do círculo. Ele riu, se abaixando e apanhando minha foice e um pedaço do bolo.
— Não precisa ficar tão tensa, Lara. Eu só vou resolver a situação atual e, enquanto isso, você faz a solicitação para uma foice nova. Nada de mais. Tenho certeza que vão abrir uma exceção, se souberem o que aconteceu.
Eu não pensei. Um segundo, estava encolhida. No outro, me atirava sobre o ghoul, em uma mímica de seu ataque. O resultado foi, porém, bem menos eficiente. Os nós no meu estômago e garganta se desfizeram, cortados pela lâmina que os atravessou rápida como um raio. Otto disse alguma coisa — provavelmente elogiando a eficiência do equipamento da companhia, ou sugerindo o telefone de serviço que eu poderia usar em minha situação atual —, mas não escutei. Só o que podia ouvir eram as batidas cada vez mais lentas de meu coração. Tudo escureceu ao meu redor, e a dor pareceu passar.
Quando a iluminação voltou ao normal, eu estava sozinha no banheiro, no centro de um círculo quebrado. Tentei dar um passo, e senti meu pé flutuando a alguns centímetros do chão. Mal precisei olhar para baixo para confirmar que podia enxergar os azulejos através da minha mão.
Ótimo. Maravilhoso. A cereja no bolo de um dia fantástico.
Acostumando-me ainda com meu novo estado incorpóreo, flutuei o mais rápido possível na última direção que esperava tomar: o cofre. Otto tinha ido para lá. Se eu conseguisse alcançá-lo e recuperar minha foice, tudo estaria certo novamente. Sim. Com certeza.
A porta estava aberta. Se eu ainda tivesse um coração, ele estaria acelerado: isso não era um bom sinal. Cautelosamente, espiei para dentro, entrando pé ante pé (ou a versão incorpórea disso) no grande salão.
O som da porta batendo foi o mais alto que já escutei. Virei-me para olhar, mas um par de mãos me puxava para dentro de uma jaula, e não consegui resistir. Pelas grades, o rosto nem um pouco culpado de Edgar, segurando minha foice partida ao meio e fechando os feitiços ao meu redor.
— Acredite se quiser, Lara, mas não é nada pessoal...
E saiu. Na jaula à minha frente, o contorno difuso do fantasma de Otto, novamente em seu estado feral. Nos meus ouvidos, o som do grito de Siobhan.
E, depois, o silêncio, mais ensurdecedor do que qualquer outro som.