Prólogo
Epílogo
Conto
Gesmodin abriu as cortinas com um gesto teatral, permitindo que a luz da lua se derramasse pelo interior da cabana. Então se virou para enfrentar o espectro. Do outro lado da sala, a lareira de pedra começou a vomitar uma neblina espessa e cheia de tentáculos brancos. Pela Obra Solar, pensou Gesmodin. Odeio quando eles fazem isso.
Um arrepio percorreu seu corpo, a despeito da túnica almofadada que ele vestia. O alquimista parou por um instante para ponderar suas alternativas. Passou os dedos em torno da boca, no sentido da barba escura; um velho gesto que ele usava para oferecer ao macrocosmo a forma de seus próprios pensamentos.
O bule de cerâmica estava sobre a mesa, onde ele o deixara. Por sorte, o conteúdo ainda devia estar quente, a julgar pela lâmina de vapor que subia do bico curvo. Era a arma secreta do alquimista, e ela nunca havia falhado, pelo menos naquela região. Mas só teria utilidade depois que o espectro tomasse forma.
Gesmodin agarrou o objeto que deixara ao lado do bule: uma vareta de bronze. Com um gesto brusco, como se estivesse golpeando o ar, o homem soltou suas travas. A ponta abriu e se desdobrou em uma fina rede metálica. Com a arma em punho, o alquimista deu um passo em direção à lareira.
Tentáculos de névoa rodopiavam, subindo até a altura dele e pulsando com um brilho espectral.
— Aqui, fantasminha — disse Gesmodin, como se chamasse um cão-de-caça bem treinado. — Aqui, menino...
A neblina deslizou para fora da lareira e se ergueu como uma cobra armando o bote; seus dedos brancos se contorceram no ar. O hálito do alquimista se condensou em uma nuvem à frente de sua boca. Igualzinho àquela vez na Mesopotâmia, pensou ele.
Quando o pescoço de névoa se inclinou para trás, Gesmodin cerrou os dedos em torno da vareta.
A coisa avançou.
O alquimista golpeou a neblina a poucos centímetros do próprio rosto. Os tentáculos se dispersaram ao atravessar a rede metálica. O homem deu um passo para trás, pronto para desferir um segundo golpe; o peito arfando, a testa coberta de suor frio.
Mas o vapor fantasmagórico se esparramou pelo chão. Conforme o ar acima da lareira se tornava menos denso, uma forma humana foi aparecendo, prateada e translúcida, flutuando um palmo acima do chão. Era uma mulher idosa; seus cabelos brancos se agitando em torno da cabeça como se ela estivesse embaixo d’água.
Seus olhos leitosos encontraram os do alquimista.
— Boa noite — disse Gesmodin.
A fantasma escancarou a boca. Devia estar surpresa por encontrar uma pessoa viva que pudesse vê-la. Mas se recompôs rápido, erguendo os braços e fazendo cara de má. Uma nuvem escura se condensou às suas costas, fazendo o interior da cabana relampejar.
— Tá bom, tá bom. — Gesmodin fez um gesto de menos. — Você tem reclamações a fazer; eu já entendi. É por isso que estou aqui. Agora, por que não nos sentamos e conversamos um pouco? Eu preparei um chá.
Só a última palavra pareceu ter efeito na fantasma: os trovões sumiram e as nuvens perderam densidade, revelando mais uma vez o fundo da sala. A boca da mulher ainda estava aberta em um rugido silencioso, mas seus olhos brancos deslizaram para o conjunto de cerâmica.
Ilhéus, pensou Gesmodin.
Ele apanhou o bule e serviu duas xícaras de chá; o vapor subia e rodopiava, espalhando um aroma de camomila. O alquimista olhou de esguela para a fantasma. A boca da mulher foi se fechando devagar à medida que ela flutuava para perto da mesa; os olhos fixos na bebida quente.
Separarás a Terra do Fogo, o sutil do denso, suavemente e com grande perícia. Líquidos e sólidos nunca tinham atraído o alquimista. Transmutação metálica era fácil, e até uma criança podia destilar óleos vegetais. Mas purificar a alma humana? Remover o ódio, deixando as paixões? Esse era o feito máximo da arte da transformação.
— Sente-se, por favor — disse Gesmodin. — Sinta-se em casa.
— Em casa! — A fantasma se ergueu e voltou a relampejar. Sua voz era um vento frio e sibilante. — Seu insolente! Esta É a minha casa!
— Sim, sim... — Gesmodin ofereceu-lhe uma xícara fumegante. — Era essa a piada.
A fantasma baixou os olhos para o chá; os dentes ainda à mostra.
— Vamos — insistiu Gesmodin. — Tente pegar.
— Insolente! Eu estou morta! Nada que venha do mundo mortal pode ser tocado pelas minhas velhas e inúteis mã...
— Pela Obra Solar, ao menos tente! Confie em mim. Você quer um gole de chá, não quer?
A fantasma hesitou por mais alguns segundos, então agarrou a xícara com um movimento brusco, respingando água no chão. Levou o chá aos lábios e tomou um gole. Pela primeira vez, um sorriso se formou em seus lábios.
— Bom, não é? Eu ponho algumas gotas de limão. Tenho um pouco de gengibre em pó também, da minha última viagem ao oriente, mas não é todo mundo que aprecia.
A mulher prateada continuou bebericando seu chá em silêncio. O alquimista sorriu consigo mesmo e puxou uma cadeira, sentando-se e apanhando a outra xícara. Não é bem como a Mesopotâmia, afinal. O limão foi uma má ideia daquela vez.
— Bem, por que não conversamos um pouco agora? Imagino que a senhora não esteja muito satisfeita com seus... ahn... hóspedes. O senhor e a senhora Hall relataram que andam escutando sons estranhos à noite. Eu gostaria de ouvir o seu lado da história.
— Os Hall! — Novos relâmpagos. — Eles o contrataram para me expulsar! Eu não serei expurgada! Esta casa é MINHA!
Gesmodin bebeu um gole de chá. Seus olhos castanhos seguiam inabaláveis por trás da cortina de vapor.
— Perfeitamente. Na verdade, o contrato que firmei com o senhor e a senhora Hall não foi o mais... honesto da minha parte. Não que eu tenha mentido, é claro. Nós, da Ordem, não podemos mentir.
A fantasma havia parado de relampejar, mas ainda não se sentara à mesa com ele.
— No entanto — continuou Gesmodin —, a exposição que fiz de meus serviços não foi completa, por assim dizer. Eu prometi livrar a casa das manifestações espectrais. Com isso, os Hall entenderam que eu expulsaria o espectro, mas minha ideia é convencer esse fantasma, que no caso é você, a fazer um pouco de... ahn... silêncio.
Dessa vez as nuvens de tempestade retornaram por completo, obscurecendo a sala e fazendo a cabana inteira estremecer com seus trovões.
— SILÊNCIO? Os Hall ousam exigir SILÊNCIO? Esta casa pertenceu à minha família durante séculos!
— Eles não são seus parentes, então?
Os trovões fraquejaram.
— Deixa pra lá — adicionou Gesmodin. — Genealogia é uma coisa complicada. Eu mesmo sempre chamo de primos todo aquele pessoal do Cairo, por falta de uma palavra melhor. Mas me diga... Se você está nesta casa há séculos, por que começou a protestar logo agora?
— Por quê, você pergunta? Porque os Hall não têm respeito! Porque eles não sabem honrar a história destas fundações!
— Estou ouvindo...
— Porque arrancaram da terra as raízes centenárias!
— Continue, continue...
— Cujas folhas filtravam a luz do sol e davam à Sala Verde o nome pelo qual era conhecida!
Gesmodin assentiu, vitorioso, e torceu o corpo para olhar sobre o próprio ombro. As cortinas às suas costas ainda estavam abertas, revelando a lua cheia.
— Eles cortaram uma árvore, então? Que ficava do lado de fora desta janela?
O alquimista sorriu. Era típico de qualquer ser dotado de consciência que tentasse alterar o espaço à sua volta, principalmente o próprio lar. O que está dentro é como o que está fora. Gesmodin tinha passado muito tempo estudando esse tipo de fenômeno, algo que ele chamava de magia in situ. Era a especialidade dos fantasmas domésticos.
— Agora que você falou, acho que eu cheguei a ver a terra remexida hoje mais cedo.
— A terra flagelada!
— Exatamente. — Gesmodin sorriu para a fantasma. — Problema resolvido, então. Farei com que os Hall plantem uma nova árvore!
A tempestade desapareceu. Pela primeira vez, a mulher prateada deslizou para perto da mesa, atravessando o encosto de uma cadeira e parando sobre ela como se estivesse sentada.
— Fará?
— Mas é claro! Temos um trato, então? Os Hall plantam uma nova árvore, e você para com o barulho.
— É o que exige a honra e a tradição...
— Perfeito.
O alquimista se levantou, dando o assunto por terminado, mas a fantasma disse:
— Como você fará isso?
— Perdão?
— Como você os fará plantar uma nova árvore? Se a intenção dos Hall é que eu seja expurgada...
— Ah, eu vou inventar uma bobagem qualquer. Dizer que era a árvore que protegia a casa dos espectros malignos, ou algo parecido.
A mulher prateada abriu um sorriso cúmplice. Não era fácil proteger fantasmas dos humanos mal-intencionados com os quais viviam, mas o resultado sempre valia a pena.
O alquimista estava para ir embora, quando um véu branco emergiu da parede e atravessou seu rosto.
Gesmodin se virou, sentindo o mundo girar à sua volta, e deu com uma segunda fantasma, que flutuava no meio da sala. A garotinha ofegava; os longos cabelos platinados caídos sobre os ombros.
Seus olhos cinzentos encontraram os do homem.
— Senhor alquimista! Senhor, por favor, me ajude! Meu irmão... meu irmão está morto!
— Lady Reid — disse a fantasma velha. — O que está dizendo? Seu irmão está morto há muitos anos. Vocês dois estão.
— Não! Ele está mais morto do que antes. Eu o encontrei no nosso antigo quarto, e estava tudo cheio de... de...
Gesmodin compreendeu de imediato. A palavra saiu sozinha de seus lábios:
— Ectoplasma.
A menina caiu no choro, e ele se arrependeu de ter aberto a boca. A velha fantasma a abraçou. O alquimista deu um passo à frente, querendo consolar a garota, mas não podia tocá-la.
— Não se preocupe. Eu... ahn... vou descobrir o que houve. Não vai acontecer nenhum mal a você. A ninguém.
— Mas... — A velha levantou o rosto. — Que tipo de horror é capaz de matar um fantasma?
Gesmodin engoliu a seco. Algumas possibilidades surgiram em sua mente, e nenhuma delas era boa.
•
O castelo dos Reid apontava para o céu cinzento como uma unha suja no topo da colina. Gesmodin ergueu os olhos para as ameias que coroavam as muralhas de pedra: altas demais, lisas demais. Então estudou o rastrilho à sua frente, fechado de maneira que a grade enferrujada mordesse a lama do chão.
O alquimista suspirou. Vencerás todas as coisas sutis, disse a si mesmo, e penetrarás em tudo o que é sólido. Ele percebeu que estava alisando a barba escura em torno da boca; seu velho gesto de raciocínio. Sim, havia um jeito de entrar, mas ele preferia um método que não envolvesse mandar a garota sozinha lá dentro.
Um vento frio cortou seus pensamentos como uma lâmina de gelo. O alquimista se encolheu, abraçando a túnica almofadada que sempre usava. Era um bom modelo, daqueles que os locais chamavam de Gambeson, todo feito de lã e recheado com crina de cavalo. Protegia tão bem quanto uma malha de aço, além de ser quente e flexível.
Ou pelo menos flexível.
Gesmodin se virou para a garota fantasma. Ela estava flutuando um palmo acima do chão, quase invisível na manhã nublada, e seu cabelo platinado balançava no sentido oposto ao da brisa. Quando seus olhos cinza encontraram os do alquimista, ele engoliu a seco.
— Então... ahn... Eu não perguntei o seu nome.
É claro que não; ele nunca perguntava. Mas desta vez isso parecia pertinente.
— É Mary Mary, senhor alquimista. — Sua voz era o canto de um pássaro em uma manhã fria. — Mary Mary Reid.
— É mesmo? — Ele já tinha ouvido falar de muitas Mary Alguma-Coisa, mas nunca de uma Mary Mary. — Que interessante. Ora, muito prazer. O meu nome... quer dizer, o nome pelo qual me chamam... é Gesmodin.
— Eu sei, senhor alquimista. Todos no vilarejo sabem sobre você. Foi por isso que eu fui atrás do senhor.
Ele apenas assentiu. Seus anos na Ordem Herdeiros de Trismegisto o tinham elevado muito acima de qualquer tipo de arrogância.
— Tem mais alguém dentro do castelo, Mary Mary?
— Meu papai. — Ela estremeceu. — Os criados fugiram, mas ele ainda está lá dentro. Por favor, senhor alquimista, o senhor precisa salvá-lo! Ele é muito velho e doente, não vai conseguir se defender dos monstros!
Gesmodin ergueu os olhos mais uma vez para o castelo. Aquelas pedras estavam assombradas; não havia dúvida. Mas pelo quê? Dois fantasmas inofensivos não justificavam a aura de destruição que o alquimista sentia.
Um, corrigiu-se o alquimista. Um fantasma. O outro havia retornado ao Plano Astral.
— Monstros... Então você viu o que atacou seu irmão?
— Não. Mas, quando eu cheguei, tudo estava tão... tão...
— Tudo bem. — Gesmodin queria poder encostar a mão no ombro da garota. — Vamos focar no seu papai, está bem? Você disse que ele é velho. Imagino, então, que ele esteja vivo. Vivo como eu, quero dizer.
Ela assentiu.
— Papai é um bom homem. Eu e meu irmão continuamos conversando com ele depois da nossa morte. Ele não conseguia nos ver, mas sempre respondia. Ele sempre parecia tão feliz em nos ouvir!
— Continue...
— Mas depois ele foi ficando triste, e começou a passar muito tempo na biblioteca, lendo livros difíceis. Será... será que ele já sabia que algo ruim ia acontecer?
Se havia uma coisa que Gesmodin havia aprendido sobre não-iniciados, era que livros difíceis significava livros alquímicos. Se fosse esse o caso, então explicava parte da situação.
— Mary Mary, você sabe por que fantasmas conseguem assombrar a casa onde costumavam viver?
Ela balançou a cabeça.
— É porque todos os seres têm poder sobre o espaço que os cerca. Quanto mais estão entranhados em um lugar, mais o afetam, e mais são afetados por ele. É o que eu chamo de magia in situ. É algo que acontece mesmo com os não-iniciados, e se torna ainda mais forte com o auxílio de feitiços. Mary Mary, eu acho... que seu papai é o responsável pelo que está acontecendo aqui.
— O quê? — O rosto da garota era puro choque. — Não pode ser! Ele não faria isso! Ele não...
— Calma, calma... Acho que ele está fazendo isso sem querer. Que ele tentou um ritual alquímico, pensando que poderia trazer você e seu irmão de volta à vida, mas algo deu errado e ocorreram... ahn... efeitos colaterais.
O alquimista queria ir adiante em sua hipótese, mas a garota estava ficando cada vez mais transparente. Se ela ficasse do lado de fora por muito mais tempo, acabaria se dissolvendo no ar. Precisava voltar logo para a casa onde morara durante a vida; mais um efeito da magia in situ.
— Mary Mary, eu preciso pedir um favor a você. Preciso que você entre no castelo e abra os rastrilhos.
Ela esfregou os punhos nos olhos, secando-os.
— Abrir? Mas, senhor alquimista, eu não consigo tocar nas coisas.
— Você não, mas isto sim...
Gesmodin enfiou a mão no bolso da túnica e apanhou a última xícara de cerâmica encantada. Além dela, ele trouxera a vareta de bronze, que era capaz de desconectar objetos do sujeito que os estava manipulando, o que ainda poderia ser útil.
O alquimista ergueu a xícara.
— Este objeto pode ser tocado tanto pelos vivos quanto pelos mortos. Com ele, você pode abrir os portões.
A garota apanhou a peça de cerâmica, segurando-a com ambas as mãos, como se fosse feita de ouro.
— Mas não vai quebrar?
— Bem... você vai ter que tomar cuidado. Acho que, se encaixá-la no mecanismo e usá-la para girar, vai dar certo. O rastrilho é pesado, mas o sistema deve estar cheio de polias. Tenho certeza de que você consegue. Só tome cuidado, está bem? Não sabemos o que tem lá dentro.
Ela assentiu enfaticamente, ao modo das crianças.
— Ah, e mais uma coisa. Lembre-se de que a xícara encosta nas coisas, o que significa que você não vai conseguir atravessar paredes com ela. Vai ter que fazer o caminho que os vivos fariam.
A garota mirou o vazio por alguns segundos. Gesmodin lhe deu tempo para pensar na arquitetura do castelo. Afinal, devia fazer décadas desde que ela tivera que se preocupar com isso.
— Tudo bem. Eu acho que consigo.
— Ótimo. Abra o caminho o mais rápido que puder, depois volte para perto de mim. Vamos salvar o seu papai.
Mary Mary assentiu, então flutuou para cima das muralhas e desapareceu atrás das ameias.
O alquimista voltou a alisar a barba em torno da boca, contemplando o furo em sua hipótese. O que tinha acontecido ao irmão de Mary Mary não podia ser atribuído a efeitos colaterais. Fantasmas não morrem por acidente; aquilo havia sido intencional.
Logo um rangido metálico chamou a atenção de Gesmodin. O rastrilho havia começado a se mover; a grade enferrujada estava subindo lentamente. Muito bem, Mary Mary. Eu sabia que você conseguiria. Ele deu um passo à frente, abaixando-se, e se esgueirou por baixo do portão.
Levantou-se e olhou em volta. Do outro lado da passagem havia um segundo rastrilho abaixado, que a garota abriria em seguida. Entre os dois, nada além de lama e armadilhas. No teto, os buracos por onde a guarda verteria óleo ou areia quente sobre invasores; nas paredes de pedra, fendas pelas quais uma flecha podia passar zunindo.
Não havia ninguém vivo por ali, mas, naquelas circunstâncias, era melhor pecar por excesso de cuidado do que pela falta dele. Assim, Gesmodin avançou lentamente, contornando o espaço abaixo e à frente das aberturas, sem se importar se estava sujando suas belas botas de couro.
Já estava quase do outro lado quando o segundo rastrilho começou a subir. Em vez de passar por baixo dele, o alquimista parou e observou o pátio central, todo forrado de palha. Bem como a fortaleza central que se erguia do outro lado. Era óbvio que aquela estrutura era a mais antiga, e que todo o resto fora erguido à sua volta ao longo dos séculos.
Era o coração do castelo. Devia ser o coração do problema.
O eco de algo batendo nas pedras o fez se virar. Mary Mary surgiu do teto; a xícara saindo de um dos buracos-assassinos ao lado dela. A garota segurou o objeto de cerâmica em frente ao peito e abriu um sorriso envergonhado.
— Desculpa, bateu um pouco. Mas olha: não quebrou!
Gesmodin já tinha aberto a boca para dizer que estava tudo bem, quando escutou o estalar de uma corda de arco; o som de uma flecha sendo puxada.
O alquimista pensou rápido.
Ele sabia que estava seguro, fora do alcance das fendas; logo, o alvo era Mary Mary. Pulou na direção dela. Seu corpo a atravessou, mas a xícara encantada o atingiu na barriga como um soco: todo o peso da garota ancorado naquele pequeno objeto, que transferiu o impacto para ela. Os dois voaram juntos para o chão. A fantasma foi engolida pela terra, e Gesmodin se esparramou na lama.
Um estalo seco. Devia ser a flecha errando seu alvo e atingindo a parede oposta. Pela Obra Solar, essa foi por pouco.
O alquimista se levantou; a lama escorrendo de sua túnica. A garota já tinha emergido do chão no pátio interno, onde era seguro, e estava com os olhos arregalados de susto. Ótimo, agora fique aí.
Gesmodin procurou a flecha caída. Não encontrou nada.
Era uma flecha encantada, então; mais um efeito in situ. Que maravilha. Mas pelo menos o ataque havia confirmado parte de sua hipótese: o que quer que estivesse acontecendo ali, a morte de fantasmas não era acidental. Isso queria dizer que...
— Mary Mary, nós temos que conversar.
Gesmodin se virou para pegar sua xícara, mas tudo o que encontrou foram cacos de cerâmica no chão. Soltou um suspiro. Aquilo não estava nada parecido com a Mesopotâmia.
Ele girou nos calcanhares e avançou até o pátio central, todo cercado pelas muralhas do castelo. Além da fortaleza principal, havia edifícios que deviam servir de alojamento em tempos de cerco, além de um estábulo e uma pequena ferraria.
— O que foi, senhor alquimista?
— Você disse que seu pai a ama muito.
— Sim! E eu também o amo. Nós temos que salvá-lo!
— Mary Mary... Acho melhor você esperar aqui enquanto eu entro na fortaleza e encontro seu papai.
— Mas...
— Mary Mary. Por favor.
A garota o mirou por alguns segundos, mas acabou abaixando os olhos e assentindo.
Muito bem, pensou Gesmodin. Agora vamos descobrir se eu estou certo.
•
Gesmodin deu um pulo quando as portas da fortaleza se fecharam às suas costas; o estrondo ecoando pela sala do trono. Aquilo ali não era o palácio de nenhum rei, e sim o salão de audiências de um pequeno senhor de terras, então se resumia a um amplo saguão com uma cadeira bem entalhada na ponta. Ainda assim, o alquimista estremeceu com o que viu.
O pai de Mary Mary estava derretendo para dentro do trono.
Gesmodin quis dar um passo à frente para ver melhor, mas se segurou e olhou em volta, à procura de mais armadilhas. O único outro objeto na sala era uma armadura completa ao lado da cadeira, com a viseira fechada. Devia pertencer ao próprio Lorde Reid, e parecia ter sido montada em algum tipo de suporte para que os visitantes pudessem admirá-la.
É, tá bom, pensou Gesmodin. Vou fingir que acredito nisso.
Ainda assim, o alquimista avançou pelo salão, porque, se toda aquela magia mal realizada tinha como objetivo matar fantasmas, então ele não tinha com o que se preocupar. Suas botas deixaram um rastro de lama na pedra fria atrás dele; o som de seus passos subindo até o teto como ondas em um lago sereno.
O homem na cadeira foi tomando forma.
— Não perguntei a Mary Mary qual era o seu nome — murmurou Gesmodin. — Então acho que vou chamá-lo de John John. Você fez uma cagada espetacular aqui, não é mesmo, John John?
O rosto do lorde estava pálido e chupado como uma ameixa seca. Seus olhos claros fitavam o nada. A madeira havia ganhado vida e injetado ramos cinzentos em seu torso nu, e seu peito ainda se movia numa respiração lenta e ruidosa.
O alquimista já tinha visto muita magia in situ, mas nunca com aquela intensidade. O lorde estava virando sua própria casa.
— Não — disse Gesmodin. — John John parece Don Jon, aquela parte do castelo que às vezes serve de prisão. É um péssimo nome; imagine dizer isso com farofa na boca. Aposto que um dia vai degenerar para uma palavra diferente. Donjon. Dunjon. Dunjeon...
Um rangido metálico ecoou no salão, fazendo o alquimista parar a um metro do trono. Ele apertou os dentes os força. É por isso que eu odeio trabalhar com crianças. Gesmodin viu de esguela que a armadura havia dado um passo em direção à entrada. Então ele girou nos calcanhares, já sabendo o que encontraria em frente aos portões da fortaleza.
Mary Mary mirava o pai com olhos úmidos.
— Pela Obra Solar, garota, saia daqui!
Mas era tarde demais. O primeiro passo da armadura tinha sido só para tirar a ferrugem; em seguida o golem começou a correr. Mary Mary recuou e bateu de costas nas portas de madeira.
O castelo inteiro está enfeitiçado, pensou Gesmodin. A garota está presa aqui dentro.
E ela devia ter se assustado, porque se atrapalhou. Quando tentou flutuar para o teto, uma manopla de aço agarrou seu tornozelo.
Gesmodin avaliou suas alternativas. Antes de seus dedos tocarem a barba, ele já havia escolhido.
Disparou para a armadura; sua mão buscando uma arma no bolso da túnica. Puxou a vareta de cobre e a agitou no ar, abrindo a rede metálica. Sem parar de correr, empurrou um pino com o dedão, e a rede se soltou, maleável. Ele fechou o punho para amassá-la.
Tomara que entre! Tomara que entre!
A armadura o recebeu com um giro e um cotovelaço na barriga. Não fosse a túnica almofadada, o golpe teria quebrado uma costela, mas ainda assim jogou o alquimista no chão e empurrou todo o ar para fora de seus pulmões.
Gesmodin rolou e se ergueu sobre os joelhos; a bile amarga subindo à boca.
Ele se levantou e pulou nos ombros do golem. A criatura sem alma se debateu, fazendo o mundo girar, mas o alquimista se agarrou ao pescoço dela e procurou a viseira com a mão. Assim que a encontrou, puxou-a para cima, abrindo-a.
Jogou a rede metálica pelo buraco do elmo.
A armadura estremeceu. Ela continuou lutando por alguns segundos, mas então suas partes se soltaram e caíram no chão, fazendo a sala inteira reverberar.
O alquimista despencou com o torso da criatura. Não teve a sorte de ficar por cima.
— Eu mandei... — Gesmodin se arrastou de debaixo do aço. — Você ficar... — Respirou fundo, tentando recobrar o fôlego. — Lá fora!
Com um último puxão do pé, viu-se livre, e se levantou com um salto.
— Senhor alquimista, eu sinto muito! Mas eu precisava ver papai. Precisava ajudar a salvá-lo!
A garota flutuava a dois metros do chão, onde era seguro. Gesmodin abriu a boca para responder, mas outra voz falou antes dele:
— Mary Mary, minha filhinha querida... você está aí?
— Papai!
Ela disparou na direção do lorde. Antes que pudesse cruzar metade do salão, entretanto, o alquimista gritou:
— Pare! Pela merda dos pássaros nos galhos da Árvore da Vida, ouça o que estou dizendo pelo menos uma vez!
Ela parou.
Gesmodin respirou fundo. Então, mancou em direção ao trono.
— John John, seu velho cínico. É assim que você recebe o seu próprio sangue depois de tentar pintar o chão com ele?
— Minha filha! — O lorde ergueu a cabeça. — Minha princesa! Você está aí?
— Estou, papai. Eu estou aqui.
— Não graças a você — disse Gesmodin. — Agora, por que não explica o que diabos você está fazendo, para eu saber como desfazer?
O alquimista mal tinha terminado de falar quando se arrependeu de sua rispidez. A fortaleza inteira estremeceu; as pedras sacudindo, poeira caindo do teto. Lorde Reid rugiu:
— Desfazer? Não há nada a desfazer! Eu irei me reunir com minha família!
Em meio aos tremores, Mary Mary se virou para o alquimista, como se perguntasse se aquilo era verdade. Talvez, pensou Gesmodin. Mas só se esse idiota conseguir se matar.
O chão se movia sob seus pés. Se aquilo não parasse, eles seriam todos enterrados vivos. Ou mortos, no caso da garota.
Golpear John John não era uma opção. O vínculo de Reid com sua casa tornara-se forte demais; a magia in situ faria o castelo colapsar se seu dono morresse. Gesmodin precisava convencer o homem a parar. Fazê-lo sentir que seu lar já tinha a forma que ele desejava.
Para isso, entretanto, primeiro ele tinha que entender o que o lorde queria.
— Não se preocupe, minha filhinha querida, nós logo estaremos juntos!
O alquimista desviou de uma pedra que caiu do teto e se partiu no chão bem à sua frente. Pela Obra! Outros fragmentos caíram à volta dele.
Pensar. Ele precisava pensar.
Será que John John estava mesmo tentando se matar, para ficar com a filha? Não, isso não explicava nem metade do que estava acontecendo.
— Reid! O que quer que você esteja tentando, não vai funcionar!
— Vai, sim! Será como Hermes escreveu: Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra!
Olha só, pensou Gesmodin. O idiota tem fontes primárias.
Mas o que diabos o lorde queria dizer com aquelas palavras? Era óbvio que ele não entendia os ensinamentos de Trismegisto. Então o que...
Gesmodin sentiu um arrepio na nuca. Reid estava pensando na Roda do Tempo, o ciclo eterno de todas as coisas. Só que estava pensando errado.
John John era mesmo um grande idiota.
— Pare, homem! — gritou Gesmodin. — Não é assim que as coisas funcionam!
— É, sim! Os... os livros!
— Você não sabe o que dizem os livros! Você não é um iniciado, mas eu sou! Ouça o que estou dizendo!
Uma pedra do tamanho de um porco começou a se erguer sob os pés de Gesmodin, inclinando-se para frente. O alquimista cambaleou, e seus joelhos encontraram o chão duro.
— Não! — insistiu John John. — Tem que funcionar! Quando os vivos morrem, eles se tornam fantasmas. Então, quando um fantasma morre... O universo é simétrico! O que está em cima é como o que está embaixo!
Gesmodin tentou se erguer, mas não conseguia se equilibrar sobre as pedras deslizantes do chão.
— Seu estúpido! Se um fantasma morre, ele não renasce como humano! Ele desaparece; se dissolve no Plano Astral.
— Não!
O alquimista engoliu a seco. Precisava pensar rápido. Precisava fazer o lorde aceitar as coisas como eram, sentir-se sentir feliz com a casa e a vida que tinha. Equalizar força e forma, intenção e manifestação. Era o único jeito de frear a magia in situ, a força motriz daquela transformação, o agente de tanta destruição. Mas como...
A garota. É claro! Como não percebi antes? A garota era a solução.
— Mary Mary — gritou Gesmodin. — Fale com ele!
— Mas... o senhor não disse que era perigoso?
— Tudo é perigoso agora! Fale com seu pai, diga para ele parar!
Ela hesitou, mas assentiu e flutuou até o trono. Gesmodin engoliu a seco. A coragem dessa garota!
— Papai, por favor, ouça o senhor alquimista!
O velho ergueu o rosto, procurando-a no ar.
— Mas, minha filhinha... Você não quer estar com papai mais uma vez?
— Eu já estou com você, papai.
— Mas...
Gesmodin ajudou:
— Sua filha está bem aí, homem! Esteve aí o tempo todo. Mesmo que você ache que pode estar certo, por que correr esse risco?
— Eu estou aqui, papai. Por favor, ouça o senhor alquimista!
— Mas...
— Papai, por favor!
John John mirou o ar bem onde a filha estava, como se pudesse vê-la. Encarou-a por alguns segundos. E por uma eternidade.
Então suspirou e baixou a cabeça.
Aos poucos, as paredes do castelo pararam de tremer; as pedras do chão voltando a obedecer à gravidade, a poeira não mais chovendo do teto. Alguns fragmentos de rocha ainda caíam aqui e ali, mas parecia que a fortaleza sobreviveria ao tremor.
O alquimista respirou fundo. Jogou-se no chão e se sentou bem onde estava; o suor esfriando no rosto.
Reid ergueu os olhos.
— Minha filhinha... Por favor, me perdoe! Seu irmão... Eu... eu só queria...
Gesmodin abriu a boca para completar a frase, dizendo que Reid só queria matar todo mundo, porque era um grande idiota e pensava que sabia de algo, quando claramente não sabia. Mas achou melhor ficar quieto dessa vez.
Mary Mary parecia estar respondendo o pai, ainda tentando acalmá-lo, mas o alquimista não conseguiu ouvir suas palavras. Era uma garota muito corajosa. Ainda assim, como ficaria quando o calor do momento passasse, e ela se visse presa ao castelo do homem que enviara seu irmão ao Plano Astral, e que tentara fazer o mesmo com ela? Como enfrentaria a realidade do que seu pai havia feito?
Gesmodin percebeu que seu trabalho ali ainda não tinha acabado. Mas ele encontraria um jeito de ajudar a garota. Separando a Terra do Fogo, pensou. O sutil do denso. Suavemente e com grande perícia.