Prólogo
Epílogo
Conto
A única coisa que me vem à cabeça quando saio do banheiro é que havia sido uma péssima ideia ter ido naquela festa. O bar estava lotado e o cheiro de cigarro, suor e perfume era enjoativo. Quem diria que tanta gente se empolgaria com uma noite temática dos anos 80?
— Merda.
Ignoro o Bowie subindo no palco e vou para o balcão, tentando não prestar atenção nos gritos animados das minhas amigas mais atrás. Normalmente, eu seria a última pessoa do mundo a rejeitar uma despedida de solteira, mas hoje definitivamente não estava no humor. Alice que me perdoasse, mas naquele instante eu só queria a companhia de um certo escocês chamado Johnnie Walker.
Ergo o braço para chamar atenção do barman e peço minha bebida, me sentindo um tanto masoquista quando o líquido desce queimando minha garganta, dispersando meus pensamentos — mas não o suficiente. Peço mais uma dose e, enquanto espero, encosto o copo vazio na testa.
As lembranças da minha ida ao médico ainda me assombram, grudadas na minha mente como um chiclete sujo na sola de um sapato. Já fazia alguns dias que eu vinha tendo dores de cabeça e me sentia cansada, então hoje pela manhã resolvi ir em uma consulta para conseguir uma prescrição de um remédio mais forte que aspirina. Qual não foi minha surpresa quando o maldito de jaleco voltou com minha tomografia em mãos e uma expressão condescendente?
Sorrio de maneira amarga e fecho os olhos. Não consigo lembrar o nome da droga que estava no meu cérebro, apenas o diagnóstico bizarro de que tenho apenas mais um mês de vida. Um mês. Trinta dias. Não dava nem para terminar de ler meu livro do Stephen King até lá. O maldito palhaço morria ou matava as crianças? Aparentemente eu nunca saberia.
— Este lugar está ocupado?
Penso seriamente em falar um palavrão, mas mudo de ideia assim que ergo os olhos. Um homem aloirado usando óculos escuros e um sorriso fino me retribui o gesto, coçando de leve a barba por fazer e apontando para o banco ao meu lado.
— Posso?
Com aquela cara de Ryan Gosling, ele poderia ter mais do que o banco, se quisesse, mas seguro minha resposta inapropriada e concordo, endireitando minhas costas enquanto ele senta ao meu lado e pede um drinque. Meu segundo copo chega, e eu o bebo ainda mais rápido que o primeiro. O estranho nota, mas não diz nada, pegando um palito e mordiscando a ponta enquanto analisa o bar sem tirar os óculos arredondados.
— Vejo que não está vestido para a ocasião — comento, fazendo um aceno para abranger o ambiente. Alguém havia acendido luzes coloridas na pista, e várias pessoas usando ombreiras e lantejoulas agora dançam. Ele sorri e muda o palito de lado.
— Nem você.
— Eu não gosto de me fantasiar.
— Mesmo? E eu achando que todos gostassem de fingir ser outra pessoa de vez em quando.
Sinto o uísque se revirar no meu estômago e respiro fundo, engolindo em seco enquanto tento decidir se meu mais novo companheiro era interessante ou estranho. Os dois? Olho-o de lado e sinto um aperto no peito, que se espalha e explode em uma gargalhada depreciativa.
— O quê?
— Desculpe, desculpe… — murmuro, passando a mão no rosto. — É que hoje está bizarro pra caramba.
— É mesmo?
Concordo, sentindo os olhos arderem. Eu precisava contar para alguém.
— Sim. Sabe o que eu descobri?
— O que você descobriu? — Ele se inclina em minha direção, e um perfume amadeirado vem junto, um cheiro que parece cutucar uma memória escondida em algum lugar na minha mente. Provavelmente, ao lado do tumor.
— Eu vou morrer. Fui ao médico hoje, e ele disse que eu tenho algo aqui… — Aponto para a cabeça. — E que só tenho mais um mês de vida.
O estranho concorda devagar, tomando mais um gole da bebida e me encarando por trás das lentes escuras. Eu quase lhe dou parabéns por não ter se levantado e saído correndo.
— Você não vai morrer em um mês.
— Não vou?
— Não. Você vai morrer hoje… — Ele olha para o relógio no pulso. — … À meia-noite e cinquenta e oito.
— Hã?
Ele dá os ombros, me fazendo sorrir nervosa. Isso é uma piada de mal gosto ou...?
— Estou falando sério. Os médicos me deram um mês.
— Eu também estou. Eles estão errados.
Levanto uma sobrancelha. Quem esse idiota pensa que é? Olho-o de lado e mordisco meu beiço. É isso que dá se abrir com estranhos, principalmente quando doses não aconselháveis de álcool estão envolvidas. Coloco o copo na mesa e me viro.
— Você é um babaca, mas vou seguir com sua brincadeira — declaro, cruzando as pernas. — Como você pode saber disso?
Ele se vira também, ficando de frente para mim enquanto o palito passeia calmamente por sua boca.
— Eu sou a Morte. — E abaixa os óculos.
O ritmo eletrônico que ecoava em meus ouvidos repentinamente cessa, e um silêncio anormal me atinge em cheio. Fico parada, olhando nos olhos de… algo. Um esqueleto ou um abismo, não sei diferenciar. Um buraco negro que parece me sugar, causando uma inexplicável onda de pânico por todo o meu corpo. Meu peito dói, minha respiração acelera e eu sinto como se estivesse sendo esticada por cães raivosos, perdendo a mim mesma para essa terrível sensação de vazio. De repente, eu não sou nada além de um amontoado sufocante de medo.
Ele ergue novamente as lentes e me toca nos ombros, seu toque frio me trazendo de volta à realidade. Meus sentidos se sobrecarregam, e a música volta alta, machucado meus ouvidos. O ar entra em meus pulmões e me afoga, me fazendo engasgar enquanto meu coração martela contra minhas costelas. Tento me mexer, ignorando as lágrimas que escorrem por minhas bochechas.
— Shh! Está tudo bem. Você está tendo um ataque de pânico. É perfeitamente normal; ainda não está preparada para encarar a sua morte. — Ele pede um copo de água ao barman e continua acariciando meu braço. — Vamos, retome o controle, respire e solte o ar. Faça comigo.
Tento obedecer, e aos poucos sinto que volto a funcionar, aceitando o copo que ele estende a mim. Tomo um longo gole, e o líquido desce gelado, machucando a minha garganta e me causando alívio. Eu ainda estou viva. Olho para o homem à minha frente e percebo que estou tremendo, quase derrubando as coisas em cima do balcão ao me levantar rápido demais. Minhas pernas falseiam, e ele me segura.
— Eu não tenho por que machucá-la, Antônia.
— Mas você disse que vai me levar.
— Assim como vou levar todo ser vivo em dado momento. Isso não significa que lhe quero mal.
Engulo em seco, me afastando com cuidado.
— Isso não pode ser verdade, não é? Eu estou alucinando. Isso tudo é culpa do tumor, você não é real.
Morte dá um sorriso torto e paga o barman, agradecendo calmamente quando ele lhe devolve o troco e deseja uma boa noite.
— Eu sou real.
Eu sinto que vou chorar de novo.
— É isso que acontece toda vez que alguém vai morrer? Você aparece igual um ator de cinema e… E faz o quê? Ceifa a alma deles?
Ele balança a cabeça e finalmente tira o palito da boca.
— Cada um me vê de uma maneira diferente. Normalmente como algo ou alguém que lhes cause conforto ou lhes remeta a uma memória boa.
Franzo a testa, relembrando as tardes mornas e seguras que passei assistindo Drive com meu pai, antes de ele adoecer e tudo ir por água abaixo. Pergunto-me como ele viu aquele ser quando chegou a hora. Tento respirar fundo mais uma vez, passando as mãos no rosto e afastando meus cabelos para trás dos ombros.
— Eu não entendo como isso pode ser possível. O que mais existe? Deus, o diabo?
— Eu não sei.
— Como pode não saber?
— Eu conheço apenas a minha realidade. Uma flor não tem noção da abelha que pousa nela, não é mesmo?
Fico parada, refletindo. Então, desisto. Viro-me e faço menção de pedir outra bebida, mas Morte me segura, dando um sorriso divertido e ajeitando a gola do meu casaco.
— Chega de beber; quero você sóbria para o resto da noite.
— Para quando você for acabar com a minha vida?
— Para eu lhe ajudar a usufruir do resto dela. É para isso que estou aqui. Não é meu costume, mas vou abrir uma exceção para você.
— Como assim?
— Antes de te levar, preciso encontrar outras quatro pessoas nas redondezas. Quero que me acompanhe.
— O quê? Não! Por que eu faria isso? Aliás, como pode estar aqui e…
— Eu já disse. Minha realidade é diferente da sua, não tente entender. — Ele se levanta e me estende a mão. — Confie em mim. Vamos?
Fico parada, tentando ao máximo encontrar alguma lógica nesta situação. Não consigo.
— Que se dane, vamos. — Aceito a mão dele e o sigo, olhando de relance para minhas amigas e Alice dançando. Elas parecem tão felizes e ignorantes do que está acontecendo. Respiro fundo e saio para a rua.
O vento noturno me alcança, um pouco frio, e pinica minha pele. Pela primeira vez, aprecio a sensação, me perguntando se seria a última vez que iria senti-la. Morte calmamente tira o casaco e o coloca sobre mim, me causando um arrepio. Eu o olho de lado, desconfiada daquele sorriso inocente. Por que justo minha morte tinha aquela cara de babaca, aliás? Quer dizer, era adorável, mas…
— Por aqui.
Sigo-o por reflexo, absorvendo cada detalhe da rua para ter certeza que isso não é um pesadelo. O cheiro de lixo misturado ao de fumaça, ferrugem e bebida não parece falso, nem as expressões despreocupadas das pessoas que passam. É tudo absurdamente comum e quase ofensivo. Paro quando noto que havia ficado para trás e Morte estava abrindo a porta de um prédio comercial mais à frente, desatento. Eu posso fugir.
Dou as costas, preparada para sair correndo, mas estanco. Eu havia sido uma covarde a minha vida inteira, uma pessoa que tomava riscos idiotas para não ter que se comprometer com nada de real valor. Havia ignorado minha família depois que perdi meu pai e fugido até mesmo do enterro da minha mãe um ano depois. Havia decepcionado minha irmã, meus amigos e a mim mesma com um medo irracional de viver. Agora, é tarde demais e aqui estou eu, agindo da mesma maneira. É um círculo vicioso, e eu estou cansada.
Solto um resmungo e olho para o céu. Não dá para ver estrelas na cidade. Ergo meu pé e dou uma volta, retornando para onde o homem loiro me aguarda com a porta aberta.
— Nem uma palavra.
— Eu não disse nada. — Ele ergue as sobrancelhas e segura um sorriso, entrando logo depois de mim.
A recepção é aberta e enfeitada, um tanto brega demais para o meu gosto, mas esta realmente não é a hora para ficar julgando os outros. Franzo o cenho e olho ao redor, deduzindo que o lugar parece estar fechado e quase deserto, fora dois vigias mal-encarados mais no fundo.
— Eles vão nos deixar passar?
Uma mão gelada toca meu ombro, indicando para eu continuar.
— Eles não vão nos ver.
De fato, não há nenhuma reclamação ou movimento quando entramos nos elevadores e começamos a subir, saltando no último andar. Atravessamos um corredor limpo de mármore branco e passamos pela porta de um escritório de advocacia. Não há mais ninguém na sala além de um homem de meia-idade encostado em uma mesa, fumando um cigarro e lendo uma apostila. Olho para Morte, e ele meneia a cabeça positivamente.
— Ele se chama João Manuel Silveira. Foi diagnosticado com câncer de pulmão há três meses, mas recusou tratamento. Disse que era um erro do hospital e, mesmo depois de outros dois testes positivos, não contou para ninguém e nem acreditou estar doente.
— Ele não contou nem para a família? Por quê?
— Algumas pessoas não conseguem conceber que algo assim possa acontecer com elas. Algumas não conseguem me aceitar até mesmo quando chega a hora.
Ele dá um passo em frente e, quando cruza as portas, se transforma em um rapaz jovem de cabelos escuros. Engulo um grito e o vejo caminhar tranquilamente até João e tocá-lo no ombro, assustando-o. O homem o fita de volta, em choque, deixando os papéis caírem no chão, e com medo toca-lhe no rosto. Desvio o olhar, sentindo que estou espionando um momento privado, e, sem saber o que fazer, me encosto na parede ao lado e observo os quadros pendurados. Um em especial me chama a atenção, onde uma mulher nua e de costas está envolvida com uma figura borrada e esquelética. Pinceladas em azul-escuro os contornam, e outros dois humanoides os observam de longe.
— Døden og Piken de Edvard Munch.
Olho para o loiro ao meu lado e depois de volta para a imagem.
— … Eu e você.
— Eu e você. — ele concorda.
Sinto um aperto no peito.
— Isso está mesmo acontecendo, não está? Eu vou morrer em algumas horas.
— Sim.
Crispo os lábios, incerta do que estou sentindo. Em minha mente, eu nunca concebi meu próprio fim. É um conceito que simplesmente não consigo entender. Não até este instante.
— Já terminou? — Ele faz que sim. — Para onde, agora?
Morte continua me analisando, e, por um momento, seus óculos parecem dois orifícios vazios. Ele coloca as mãos nos bolsos e aponta, indicando que deveríamos descer. Em silêncio, voltamos pelo mesmo percurso de antes e continuamos a andar pela rua principal. As luzes dos postes estão amareladas e atraem insetos. Observo uma mariposa voar até lá e pousar na lâmpada.
— Chegamos.
Abaixo os olhos e noto com receio uma senhora de bengala tirando dinheiro do caixa eletrônico. Dois homens suspeitos se aproximam, as mãos escondendo algo por baixo da camisa e os bonés lhes cobrindo os rostos. Abro a boca para alertá-la, mas é tarde demais. Eles puxam uma arma e começam a exigir o dinheiro dela, que, assustada, derruba a bolsa. Um deles solta um palavrão e se abaixa para pegar a carteira, não notando quando um transeunte pula em cima do colega dele e lhe dá um soco.
O assaltante fica surpreso e derruba a arma, cambaleando ao que o outro começa a correr com o dinheiro. O rapaz tenta impedi-lo, mas é derrubado e leva um tiro na perna. O agressor foge. A senhora começa a gritar, e logo dois guardas se aproximam com cassetetes em mãos. Quase suspiro aliviada, mas então um deles começa a bater no garoto negro caído. Um círculo de pessoas se forma, encarando a cena ou filmando com o celular, e a idosa é empurrada enquanto grita desesperadamente para que os homens parem.
— Eles vão matá-lo! — Uma voz se perde em meio às outras.
Olho para o meu lado, horrorizada. Uma mulher de cabelos brancos e expressão cansada me encara de volta. Ela espera que os guardas finalmente se afastem para dar alguns passos em direção ao adolescente agredido e tocá-lo na testa. Eu me viro, tentando segurar as lágrimas.
— Daniel Braga. Dezoito anos, saúde perfeita. Irmão de três e com uma mãe que ainda não sabe o que aconteceu. — Escuto uma voz à minha frente, notando meu algoz encostado em um banco. — Para muitas pessoas como ele, eu chego lado a lado com um homem branco de uniforme.
Foi demais.
— Por que me mostrou isso?!
— Esse é o mundo em que vive. Você já leu notícias parecidas mais de uma vez em jornais.
— Mas eu não precisava ver, ainda mais quando vou morrer também!
Morte concorda.
— É diferente quando se tem algo em comum com a vítima, não?
— Argh, que droga! Isso é injusto! O que aconteceu com ele foi injusto, o que está acontecendo comigo é injusto!
— Ninguém falou que não era. A vida é injusta. — Ele se aproxima e olha mais uma vez para o círculo de pessoas. Ninguém parece nos notar. — Já eu os torno iguais.
Começo a chorar de novo.
— Eu ainda estou viva. Por que está fazendo isso comigo?
Ele limpa as minhas lágrimas e envolve meu pescoço com uma das mãos, quase carinhoso. Eu soluço baixinho, cerrando os punhos. Quero socar algo ou gritar com alguém, qualquer coisa para tirar esse sentimento venenoso de mim, essa certeza de que não há nada no mundo que possa me salvar. Viro-me para uma lata de lixo e a chuto. Chuto uma, duas, três vezes. Meu pé arde, meus sapatos estão imundos e o meu peito queima. Solto um palavrão e dou alguns passos para trás, tropeçando e caindo sentada em meio à sujeira que espalhei.
Morte se aproxima e analisa o estrago por alguns instantes.
— Se sente melhor?
Eu limpo as mãos nas calças e me levanto, engolindo em seco.
— Sim. — Ajeito a lata e coloco o lixo de volta, fazendo uma careta diante do meu estado e o olhar do outro.
— Vamos. — Ele me puxa pela mão.
Desta vez, não andamos muito, parando em frente a uma casa de muro alto e pintura desgastada. Morte abre a porta e entra devagar, passando pelo pátio e entrando pela sala até uma escada de aparência antiga. Uma mulher com olheiras profundas desce com uma bandeja em mãos.
— Ela comeu. — Comenta com um homem vendo TV.
— Isso é bom.
— Sim. — Ela sorri.
Seguimos em frente, um degrau de cada vez até o quarto no meio do corredor. Ao entrar, encontramos uma senhora ajoelhada na cama rezando um terço. Ela fala baixinho, pensando estar sozinha.
— … Só quero que tome conta da minha filha, ela é uma boa garota.
Me mexo, incomodada. Minha mãe também era religiosa e rezava todas as noites.
— Maria Conceição Andrade, setenta anos. Pneumonia.
Contemplo o que responder, mas acabo por cerrar os olhos quando uma luz reluzente e um par de asas surge ao meu lado. Dou alguns passos para trás, surpresa, vendo o anjo se aproximar da senhora em um movimento suave. Ela para imediatamente o que estava fazendo.
— Um filho do Senhor, eu…! — E se encolhe, começando a recitar em voz alta: — Não temais; porque sei que buscais Jesus…
Mordo o lábio e saio, parando em frente a uma janela e espiando o lado de fora. O jardim está amarelado, semimorto, e as estátuas de anjinhos na varanda estão criando musgo. Olho de lado para uma cruz pendurada na parede e solto um suspiro. Sem saber bem o que estou fazendo, me aproximo e junto as mãos, entoando um pai-nosso. Abro então os olhos e encaro a figura crucificada. Ela parece me olhar de volta.
É tarde demais para acreditar em algo do tipo, mas talvez… Talvez eu possa pedir por mais tempo, por um milagre. Milagres acontecem toda hora, não é? Eu estou vivenciando um, posso muito bem ter outro. Se tivesse uma segunda chance, tomaria jeito na vida, iria rir mais, ser mais bondosa. Conversaria com minha irmã.
Sim, eu seria diferente. Eu faria valer a troca. Fecho os olhos de novo. Preciso de mais um tempo. Pouco. Apenas mais um ano. Um mês? Qualquer coisa. Tento esvaziar minha mente, me deixar aberta para receber uma resposta. Mas só encontro silêncio.
Balanço a cabeça e me viro, esbarrando com Morte me esperando.
— Ele respondeu?
— Não.
— Isso não significa que Ele não tenha ouvido. Ou que não exista.
— … Obrigada.
Ele concorda.
— Continuamos?
— Continuamos.
Somente quando viramos na rua seguinte é que lembro que estou com minha bolsa e celular. Que horas seriam? Aperto a alça ao redor do meu ombro, tentada. Eu realmente queria saber?
— Não.
— O quê?
Morte aponta para um beco.
— Você não quer saber quanto tempo ainda tem.
— Como você…?
— Caixa de Pandora.
Ele ignora minha expressão curiosa e entra pela porta lateral de um clube. Eu acelero o passo para alcançá-lo, parando ao sentir o cheiro de charuto no ar. Olho ao redor, absorvendo o visual vintage do lugar, desde as luzes baixas até as cortinas vermelhas. Paramos ao lado do palco onde um senhor gordo toca saxofone.
— É ele?
— Sim. Ricardo Mota. Cinquenta e quatro anos. Músico, perdeu a família dois anos atrás em uma colisão de carro. Ele estava dirigindo. Depressivo com pensamentos suicidas.
Cruzo os braços e observo a apresentação. O som do instrumento ecoa nas paredes, envolvente, e me deixa triste. Em breve eu perderia tudo e todos que amava. Em breve, eu teria que enfrentar um futuro incerto completamente sozinha, ou mais assustador, a ausência de um. Sinto minha garganta fechar e procuro me manter forte. Observo o homem criar notas e mais notas, dando luz a uma melodia que eu entendia bem.
Ao meu lado, Morte solta um suspiro.
— Eu sempre tive um carinho especial por artistas — comenta, começando a bater palmas com a plateia assim que a apresentação termina.
— O noivo da minha irmã é um artista.
— Eu sei.
Ricardo pega o saxofone e se levanta do banco, agradece, e volta para os bastidores. Passa por nós e vai até uma sala vazia, colocando o instrumento com cuidado na mala. Senta-se e tira um frasco de remédio do bolso, encarando-o pensativo. Parece ser um homem com nada a perder, sem realmente entender o quanto isso é mentira.
Olho para Morte, mas ele continua parado, o mesmo de antes. O músico solta um gemido alto e leva uma mão ao rosto, chorando.
— O que estou fazendo? — murmura em voz alta, fungando e guardando o frasco de volta no casaco. Respira fundo e se levanta, limpando as lágrimas com a manga.
Rápido demais, tropeça em um fio que passa pelo chão e cai, batendo a cabeça em um baú. Eu levo as mãos ao rosto, abafando um grito surpreso. Uma criança segurando uma girafa de pelúcia sai do meu lado e se aproxima dele, se inclinando sobre o corpo estirado no meio do quarto.
Uma risada desesperada sobe por minha garganta, e eu saio dali para a rua. Minha barriga se contorce, dolorida, mas eu não consigo parar. Desamparada, abraço a mim mesma e me encolho. É isso a vida, não é? Uma piada de humor negro cujo final ninguém entende. Sinto minhas pernas falharem e vou escorregando, sentindo finalmente o riso morrer em meus lábios.
Encosto a testa nos joelhos e fico em silêncio até um par de sapatos parar na minha frente.
— Chegou minha vez? — murmuro sem me mexer.
Morte se senta ao meu lado e analisa o beco, olhando depois para o céu.
— Olhe para cima.
— Para quê? Não dá para… — Eu me interrompo ao erguer os olhos e me deparar com uma única luz solitária em meio às nuvens de fumaça industrial e escuridão cósmica.
— Às vezes, não estamos olhando direito.
Eu não respondo por alguns segundos.
— … Eu não quero morrer.
— Eu sei.
Começo a chorar, mas diferentemente das outras vezes sinto que desta não vou conseguir parar. Abaixo minha cabeça e fico em silêncio, mesmo quando Morte passa o braço ao meu redor e espera. Eu desperdicei tanto tempo, tantas oportunidades. Não há mais esperança de uma saída milagrosa ou de fuga; meu destino é inevitável e eu estou sofrendo por isso. Medo e impotência, descubro, são uma combinação terrivelmente dolorosa.
— Vai doer?
— Por menos de um segundo. — Ele segura minha mão, e eu a aperto. — Acho que está na hora de voltarmos para sua festa.
Nesta altura, uma serenidade estranha toma conta de mim e eu estou mais consciente do que em breve irei enfrentar.
— Temos mesmo? — Não que eu queira morrer na sarjeta, mas meu peito ainda parece exposto demais para ficar em meio a uma multidão. Lembro, no entanto, que Alice e as meninas ainda estão lá, e isso me dá forças. — Bem, eu nunca fui de recusar uma festa. — Declaro, mais confiante, vendo a Morte sorrir. E, pela primeira vez, não é uma visão assustadora.
Respiro fundo mais uma vez e me levanto. Juntos, começamos a andar. O regresso parece mais rápido que a ida, e, quando dou por mim, estamos de volta onde havíamos começado. Eu ergo as sobrancelhas e olho ao redor, avistando o horário no relógio em cima do balcão. Meu coração falha uma batida.
— Como é possível? Só se passaram três minutos.
— O tempo passa diferente comigo — Morte conta, me olhando de lado. Eu sorrio involuntariamente.
— Eu tenho duas horas ainda?
Ele concorda.
— Use-as com sabedoria. Estarei esperando.
Afasto-me e começo a procurar minhas amigas, quase desesperada, encontrando-as na mesma mesa de antes. Corro até elas, cumprimentando a todas e abraçando as mais próximas. Algumas delas estão ao meu lado desde sempre, e eu as agradeço devidamente. Elas me salvaram mais vezes do que sabiam. Trocamos algumas lembranças e rimos juntas, brincando e espairecendo. Eu nunca me senti tão grata por alguns minutos a mais.
Quando Alice finalmente retorna da pista de dança, seu sorriso falseia um pouco ao me notar, mas eu não ligo.
— Você vai se juntar a nós?
— Sim. Podemos falar a sós rapidinho?
As meninas trocam olhares curiosos, mas Alice concorda sem hesitação. Levanto e a direciono para o balcão, sentando no banco. Ela faz o mesmo e limpa a garganta.
— E então?
— Eu queria pedir desculpas. Eu lhe decepcionei e abandonei quando mais precisou de mim. Depois que o papai se foi, eu fiquei tão perdida em mim mesma que ignorei o seu sofrimento e o de mamãe. Perdão.
— Por que está me dizendo isso agora, Antônia? — Ela segura a minha mão, e eu dou os ombros, beijando os dedos dela de leve. — O que aconteceu?
— … Nada. Eu só percebi que eu sinto muito a sua falta.
Alice ergue as sobrancelhas.
— Eu também sinto a sua falta. Sempre senti, principalmente quando mamãe ficou doente.
— Eu sei, eu deixei tudo desabar sobre os seus ombros. Eu não devia ter feito isso.
— Não, não devia. Eu… Eu nunca posso contar com você.
— Eu sei.
— Mas eu entendo. Eu sei que não foi fácil para você também, para nenhum de nós. Desculpas não bastam, mas é um começo. Eu não quero iniciar um novo capítulo da minha vida zangada com minha única irmã. — Ela suspira e me abraça. Eu a envolvo de volta e não quero mais soltar.
— Eu nem acredito que você vai se casar com o Vinícios Meleca.
Ela ri, os olhos marejados.
— Não o chame assim! O coitadinho tinha cinco anos quando você inventou esse apelido.
— Ei, foi ele que inventou de ser nojento no meu aniversário. — Paro por um segundo, recordando o tal dia. Foi um dos mais felizes que eu consigo me lembrar. Trato de me agarrar à memória. — Mas ele sempre cuidou de você, sempre foi um bom rapaz. Eu fico feliz por estarem juntos. Ele nunca deixou que ficasse sozinha.
— Não, ele é perfeito. — Alice suspira. Então ri e limpa o rímel levemente manchado. — Ah! Olha o que você me fez fazer. Estou um monstro.
— Você está linda.
Ela me olha novamente.
— … Está mesmo tudo bem?
— Não poderia estar melhor. Mas me promete uma coisa?
— O quê?
— Quero que seja feliz. Mesmo que eu fique para trás, reclame e seja idiota como sempre sou. Quero que você me prometa que vai ser absurdamente feliz.
— Sério, o que você…? Está me escondendo algo, não está?
— Eu te conto até o final da noite. Mas me promete?
— Claro que sim. Você me promete o mesmo?
Eu concordo, tentando me manter forte.
— Não preciso prometer; eu estou feliz. De verdade.
Ela sorri.
— Que bom!
— Hum... Pode só me dizer mais uma coisa? — Ainda de mãos dadas, eu a puxo de volta para a mesa.
— O quê?
— Você gosta de cinema, não? Como termina o filme do palhaço do Stephen King?
É como se um peso tivesse saído dos meus ombros. Não é o ideal, mas é o suficiente. A cada minuto, no entanto, meu coração aperta mais, e, como esperado, o tempo passa rápido demais. Eu pisco, e de repente é meia-noite e cinquenta no relógio. Limpo a garganta.
— Eu vou ao banheiro, tá?
— Volte logo, quero contar sobre os vestidos que escolhi — Alice diz, animada.
Eu sorrio e vou para o balcão, olhando ao redor. É melhor não ser surpreendida, e, de um jeito bizarro, eu estou pronta. Eu sei que minha irmã ficará bem e que minhas amigas e Vinícios estarão aqui para ajudá-la. No fundo, isso é o que importa.
— Procurando alguém?
Eu noto Morte encostado em um banco. Limpo a garganta e me aproximo, concordando.
— Você.
Ele olha para minha irmã por cima dos meus ombros, e depois para mim.
— Tudo certo?
— Na medida do possível.
— Algum arrependimento?
Eu respiro fundo, tentando me acalmar.
— Eu gostaria de ter dançado um pouco.
— Isso pode ser facilmente resolvido, não?
Ele me estende a mão e me guia para a pista, me envolvendo com braços gelados. Eu o abraço de volta, sentindo um arrepio. Uma mulher termina de ajeitar o teclado no palco e começa a cantar minha música preferida, cheia de ecos e significado. Rio baixinho.
— Isso foi uma coincidência?
Morte dá os ombros, me girando.
— Não existem coincidências.
Eu mordo o beiço e paro de dançar. Hesitante, ergo os braços e toco os óculos escuros dele, retirando-os com cuidado. Olhos azuis me encaram de volta, cheios de mistérios e possibilidades. Meu coração falha uma batida, e ele dá um sorriso gentil.
— Estou com medo — sussurro.
— Não se preocupe. Estive ao seu lado desde seu primeiro suspiro, e estarei até o último.
Eu concordo, me colocando nas pontas dos pés. Encaramo-nos ainda por um segundo antes de a música acabar e eu seguir em frente. Fecho os olhos e, quase como se estivesse adormecendo, recebo minha morte com um beijo.