Prólogo
Epílogo
Conto
“Em noites de lua cheia, não ande sozinho pela beira do rio, ou Zamuth vai te pegar”. Era os que os avós contavam em suas histórias para dormir. “Criatura macabra!”, diziam as mães da cidade, mas para os ribeirinhos, a coisa era diferente.
A lenda permanecia como um meio de controlar o furor hormonal dos adolescentes que, em noites claras, iam namorar à beira do riacho que cruzava os vilarejos. Os igarapés são rios estreitos que correm sinuosos, adentram pela floresta e se perdem de vista encobertos pela mata. Mas, não adiantava muito. “Os jovens são tão atrevidos...”, reclamavam os idosos.
As comunidades no interior do Amazonas têm muitas histórias. É um povo humilde, escasso em recursos, mas rico em cultura nativa. São esquecidos, quase invisíveis. Talvez, exatamente por isso, a natureza tenha achado um meio de protegê-los com os espíritos das matas e dos rios.
O alerta não servia apenas para os mais jovens, mas também para assustar os grileiros, madeireiros, garimpeiros e toda sorte de invasores que, por séculos, insistiam em navegar pelos riachos ocultos, atravessar a mata mais densa e chegar de surpresa nas aldeias quando era época de cheia. Vinham sempre durante a noite, para quando o dia amanhecesse já estarem estabelecidos. Queriam extrair o ouro, madeira rara, caçar animais exóticos, e pegar nossas crianças. Os ribeirinhos ficavam em constante temor e as aldeias tinham a sina de migrar cada vez mais para dentro da floresta, a fim de se protegerem.
Contudo, não havia quem detivesse a ousadia dos invasores. Órgãos de proteção foram criados, mas ainda que acionados, raramente chegavam a tempo de evitar as históricas barbaridades contra os indefesos. Então, a própria natureza se encarregava de fazê-lo, como desde os primórdios.
Como costume, numa determinada aldeia indígena, toda noite de lua cheia o cacique se reunia com a tribo ao redor de uma fogueira para contar-lhes histórias. Era o ancião, o eleito pelos espíritos da floresta, o detentor da sabedoria dos ancestrais, que vivia para passar os ensinamentos e feitos antigos, preservando a cultura da tribo e sua descendência do avanço da chamada colonização.
Dentre tantas lendas indígenas, a mais conhecida era sobre Zamuth, um guerreiro que amaldiçoou os deuses por não poder se unir a uma jovem de outra tribo. Foi banido e condenado a viver sozinho às margens dos igarapés. Indignado com a punição, Zamuth contrariou o cacique e roubou a amada de sua aldeia. Tupã, furioso com a desobediência, transformou-o em um jacaré de papo amarelo, mas, ainda assim, os jovens amantes insistiram na rebeldia. O fruto desta união fugia às normas da natureza. Tupã então lhes lançou uma maldição: assim que a criatura nasceu, virou um monstro que devorou a própria mãe, obrigando Zamuth a matá-lo. Louco de tristeza, Zamuth se inflamou de fúria, transformando-se em um ser gigantesco e imortal. Por ser muito perigoso, foi contido, condenado a viver eternamente sob a lama, eclodindo apenas para salvar a floresta e proteger seus guardiões humanos.
Certa vez o cacique contou que um grupo numeroso de homens, vindos de muito longe, invadiu as terras pelo rio durante a noite. Eram muito diferentes, tinham pele clara e cabelos da cor do cobre. As tribos tinham seus guerreiros, mas nada podiam contra as armas que cuspiam fogo, jamais vistas. A floresta, pressentindo o mal à espreita, acordou os espíritos dos animais mais fortes e poderosos para defendê-la, transformando os peixes de água doce no tamanho de homens adultos. As árvores iludiam os incursores tomando a forma de mulheres, cujos cipós se transformavam em longos cabelos que laçavam e enforcavam os mais violentos.
A voz grave e profunda do cacique incitava o respeito dos adultos e o temor dos mais jovens. Contudo, eram as tatuagens espalhadas por todo seu corpo que intimidavam a qualquer um que o observasse mais de perto. Era um registro, uma espécie de arquivo vivo, atestando que ele esteve presente em cada uma das histórias contadas durante anos. Isso assustava muito, pois algumas delas datavam cerca de quinhentos anos, desde a colonização dos portugueses.
“Os homens vieram em suas canoas armados até os dentes”. – contou ele certa vez – “A lua estava alta e ajudava a iluminar o caminho e desviar as canoas das ciladas escondidas nos igarapés. Tinham bastões de fogo, facões, cordas e machados enormes. Eram de todos os lugares, mais de trinta. Sussurravam sua ganância e sobre os sonhos que pretendiam realizar. Alguns traziam dentes de ouro na boca, que brilhavam ao reflexo da lua. Tinham cheiro de bebida forte e uma determinação no olhar de que nada poderia ficar em seu caminho. Mas, a floresta também tinha uma resposta para aqueles que entravam sem pedir licença”.
“Quando os pássaros noturnos começaram a gritar e os bichos pequenos correram para se esconder nas ocas, sabíamos que aquele era um sinal da chegada dos estranhos. Uma nuvem negra escureceu a face da lua e cegou a vista daqueles homens, mas eles não se intimidaram, pois tinham trazido luzeiros com eles. O rio então se agitou com a chuva que caiu de repente, deslocando os troncos do fundo junto com peixes grandes. Os peixes eram maiores que as canoas deles e causaram grande assombro, mas não o suficiente para que tomassem o caminho de volta. Um deles quis atirar, mas o que aparentava ser seu líder, com uma profunda cicatriz no rosto, não permitiu. No facão não daria para matar as criaturas das águas, mas, aparentemente, também não queriam alertar nossos guerreiros com sua presença.”
“Apavorados, desistiram de continuar pelo rio. Prenderam suas canoas nas raízes ciliares e seguiram a pé por terra. A floresta sentiu o perigo que eles representavam e, para algo assim, despertou seu melhor guerreiro. Uma bocarra, com dez fileiras de dentes, já os esperava. Dois deles foram devorados numa mordida só. Ouvi os gritos de minha rede e, mesmo sabendo que estavam perto, aquietei-me".
“Os invasores não demonstraram apreço pelos seus, continuando a se embrenhar pela floresta sem qualquer lamento. As árvores se agitavam a cada passada deles e os arbustos choravam removidos pelo brandir dos facões que desciam com corte certeiro. Guerreiros lançavam suas flechas do alto das árvores. Formigueiros de saúvas explodiram de debaixo da terra, alvoroçados com a carne nova. As cobras se despenderam de seus galhos, picando áreas descobertas e os cipós dobraram de tamanho chegando até o chão para enlaçar suas pernas e os sufocar debaixo da lama. Mais dois desapareceram, e os sussurros se transformaram em um choro desesperado, diluído na chuva forte. A mata gritava: “Vão embora”! Não queremos vocês aqui!” - mas, eles tinham olhos e não viam, e ouvidos que não queriam ouvir. Estavam cegos e surdos pelo que a terra poderia cuspir para seus bolsos famintos. Demos o aviso. “Não os deixaríamos avançar”.
“A carapaça dura de Zamuth reluzia de sangue fresco, mas não se deu por satisfeito e os seguiu por debaixo da lama. Desviava das raízes que apontavam a direção dos invasores. Seus olhos amarelos a tudo enxergavam e sua boca grande ainda trazia pedaços de ossos presos entre seus dentes. Não pensava que avançariam depois de terem perdido alguns dos seus, mas não eram unidos como nós, apenas aglomerados. Não procuravam lutar por uma causa para todos, mas todos lutavam por seus interesses pessoais. Morreriam antes que relassem num fio de cabelo do nosso povo. A terra engoliria sua carne antes que o luzeiro amarelo se levantasse no céu.”
“Preparei o Ayahuasca para consultar nossos ancestrais e esses aos deuses de nossos antepassados. Precisava estar na cabeça de Zamuth. De minha oca, passei a ver o que ele via e ouvir o que ele ouvia. Entoei os cânticos pedindo para que mais dentes aparecessem na boca de Zamuth e, se possível, na minha também. Escamas brotaram sobre minha pele e na dos valentes de nossa tribo, que acabaram se juntando a mim.”
“A mata tentou detê-los, e agora os aniquilava com toda a força que tinha. Formigas de fogo entravam por suas botas. A chuva abria covas nos desfiladeiros e os engolia para dentro dos mesmos buracos de onde queriam extrair nosso ouro; os macacos roubaram seus paus de fogo e os seus facões feriam uns aos outros por estarem enlouquecidos pelo medo.”
“Não me lembro mais do que houve naquela noite. Apenas sei que não fizemos prisioneiros. Algumas luas depois, outros tantos vieram procurar por seus perdidos, substituí-los e nos ameaçar. Chegaram a capturar alguns dos nossos, mas foram triturados pelos troncos das árvores que trocaram sua seiva pelo sangue vermelho deles. Os que conseguiram escapar de nossa ira levaram um pedaço de nosso coração, mas não o suficiente para nos dizimar. Sobrevivemos. Subsistimos”.
“Décadas se passaram desde aquele dia em que a terra chorou encharcada de sangue. Toda vez que o vento chacoalha a copa das árvores, novamente a história é contada pelo sussurrar das folhas. Assim permanecemos vivos, gravados no sulco dos troncos e na fenda das pedras.”
“Somos parte da natureza, forjados do barro cru desde o primeiro entre os primeiros, mas em algum momento o vento espalhou a semente e muitos germinaram em terra salgada, perto do mar. Separamo-nos, e nomeamos nossas tribos conforme os novos pensamentos, mas ainda tínhamos o mesmo deus. Tupã sempre nos guiou e os espíritos da floresta nos protegeram. Mas, o homem desviado da criação, nunca se esqueceu de nós. Ainda que escondidos de seus olhos, sempre lembraram daquele dia. É coisa que se passa pelo sangue e também pelas histórias que contam a seus filhos e aos filhos de seus filhos antes de dormir. Sabíamos que um dia voltariam, ainda mais porque a mãe terra sempre foi generosa conosco e isso a ganância deles não podia perdoar. Sobrevivemos sem sua tecnologia, perpetuamos sem suas artimanhas e somos saudáveis sem suas drogas”.
“Ainda que irmãos de outras aldeias tenham sido obrigados a renegar nossos deuses, serem escravizados e até exterminados, continuamos resistindo na contra mão de tudo que os chamados civilizados apregoam, sem que fosse preciso destruir nada para continuarmos a ser humanos.”
“Hoje, novamente reúno nossa tribo, mas desta vez é para avisar que Zamuth está para despertar de seu cochilo. As aves contaram que outro cobiçoso se levanta para nos desafiar. Que os jovens não andem à noite pela margem dos igarapés. Que as virgens não fiquem sozinhas à beira dos riachos. Zamuth pode aparecer a qualquer momento e querer procriar.”
“O número de nossos guerreiros está em desvantagem contra o homem da cidade. Não satisfeitos em nos roubar, e deixar suas doenças, agora querem estender seus domínios para a floresta e acabar com tudo que tenha vida, como se não houvesse um amanhã. Somos o último elo de resistência entre as tribos. Zamuth talvez não dê conta de tantos que querem um pedaço do que nos foi dado a cuidar.”
A aldeia foi dormir tensa. Os anciãos e os pequenos foram mandados para o interior da floresta, onde olhos curiosos não podiam furar as muralhas da mata fechada.
O dia amanheceu e com ele barcos com motores, que não se importavam em fazer barulho e empestear nossos rios com seu visco e outras sujeiras. As moto serras alardeavam que os machados tinham sido aposentados. Potentes metralhadoras substituíram os rifles. A arrogância dos invasores superava a prudência e Zamuth, após anos adormecido, acordou outra vez. Porém, eles eram muitos, e a ferocidade deles foi tamanha, que conseguiu acorrentar o gigante das matas. A chuva não caiu e os cipós foram surpreendidos pelas chamas que arderam os pés das árvores mais antigas. Seus galhos retorcidos não abraçariam mais os novos frutos da estação que ainda estava por vir. A floresta chorava um choro seco e coberto de cinzas que durou um dia inteiro, até obscurecer o brilho da lua. Sim, aquela deveria ser mais uma noite de lua cheia, mas seu brilho não conseguia iluminar o caminho por onde fugir.
Os animais corriam desesperados pelo breu, iluminados apenas pelo fogo a crepitar das ocas que eram incendiadas. Corpos dos guerreiros e ribeirinhos se espalhavam juntos aos animaizinhos sem vida pelo arraial, e não se ouvia o rugir de Zamuth vindo em socorro dos desvalidos. O cacique se recolheu ao interior da mata para invocar os espíritos dos ancestrais, que contaram que o grande jacaré tinha sido acorrentado. Os valentes que restaram beberam a mistura de ervas clamando por força e coragem. Não demorou muito para que os espíritos os atendessem, transformando-os numa legião de répteis com duras escamas, rabos espinhosos e dez fileiras de dentes pontiagudos em suas bocas. Enveredaram pela terra e pelos rios caçando os malditos, enquanto os cipós da árvores mais altas, que não tinham sido atingidas pelo fogo, corriam para libertar Zamuth das correntes dos homens da cidade.
Aquela foi uma noite eterna. A mãe terra, gemendo, abriu sua boca e sugou seus filhos para o descanso eterno, restando aos invasores abatidos a cremação aos pés das árvores incendiadas. Poucos sobraram de cada lado, mas ninguém noticiou o ocorrido. Ninguém se importava. A floresta achou melhor germinar e apagar os rastros da destruição.
Muito tempo se passou, desde então. Muitos de nossos jovens foram corrompidos pela ilusão da modernidade. Hoje somos muito poucos, ocultos pelo pouco verde que nos restou, e acho que os deuses ficaram tristes se calaram. Os ribeirinhos continuam esquecidos, as aldeias ainda mais escondidas, e o ar mais irrespirável. Zamuth, no entanto, sobrevive em suave cochilo, esperando pelo próximo despertar que não tardará a acontecer.