Prólogo
Epílogo
Conto
Transcrição da entrevista realizada durante a sessão
de 21 de novembro de 2086 pelo Senado da União Latino-Americana
de Cooperação.
Entrevistado: Everett Highwell, presidente e CEO da
LifeDreams International (doravante denominado EH).
Entrevista liderada pela Senhora Senadora Luzia
Guarany, senadora pela Confederação Indígena Americana
(doravante denominada LG).
Esta entrevista foi realizada como parte da investigação
do possível monopólio de produção de bens culturais
pela empresa LifeDreams International, sediada em São
Francisco, na República da Califórnia. O acesso a documentos
relacionados à empresa foi solicitado para a aceitação da
República da Califórnia na União Latino-Americana de Cooperação,
para que uma investigação sobre as atividades da
empresa pudesse ser realizada.
Início da transcrição.
LG: Boa tarde, Senhor Highwell. Esperamos que o
senhor possa colaborar com essa entrevista e resolver as acusações
contra a sua empresa.
EH: Boa tarde, Senadora, boa tarde a todos os membros
do Senado. Estou sempre disposto a colaborar, desde
que não seja necessário revelar segredos industriais.
LG: Muito bem. Senhor Highwell, como todos sa-
bemos, a sua empresa teve uma ascensão espantosa nos últimos
dez anos como produtora de conteúdos culturais. A
parte mais impressionante, claro, é o quanto esses conteúdos
são prolíficos. A sua empresa, sozinha, produz um volume
maior que, bem, todo o resto do planeta.
EH: Sim, senhora. Foi isso que a Times disse, e eu
confirmo.
LG: Curiosamente, ninguém é apontado como o autor
de nenhum desses bens culturais – o senhor afirma que
nenhum ser humano produziu esse material.
EH: É verdade. Todo o nosso material é produzido
por redes neurais autônomas.
LG: Senhor Highwell, permita-nos tratar sua afirmação
com um certo ceticismo. Todos nós aqui lembramos
do escândalo dos ‘armazéns completamente robotizados’ da
Amazon, há menos de dez anos, que utilizava trabalhadores
contratados em vários pontos da escala logística.
EH: Não é o nosso caso, senadora.
LG: E, no entanto, os senhores não são a única empresa
a tentar produzir bens culturais através de redes neurais.
Mas as outras tentativas são horríveis, simplesmente
patéticas. Mesmo inteligências artificiais emancipadas conseguem
produzir histórias intelectualmente interessantes,
mas têm muita dificuldade de expressar emoção, alegoria,
pathos… Redes neurais, então, dificilmente lembram o protagonista
de uma história por mais de três minutos, e precisam
de ampla interferência humana para conseguir algo que
faça sentido, quanto mais algo que tenha qualidade.
EH: Nossas redes neurais são muito superiores.
LG: De que maneira vocês conseguem produzir tanto
conteúdo com tanta consistência?
EH: Temo que a resposta seja parte de nosso segredo
industrial.
LG: Não tem como o senhor explicar de forma ampla?
EH: Temo que a resposta seja segredo industrial.
LG: Senhor Highwell, estamos tentando identificar
se o senhor é culpado de um crime. Tenho certeza de que o
senhor é capaz de revelar alguns dados sobre o seu algoritmo
sem prejudicar a sua posição, e lembro que fazê-lo está no
interesse deste Senado e do povo das Américas.
EH: Infelizmente, a resposta é segredo industrial.
Gostaria também de lembrar à excelentíssima senadora que
o direito a não revelar segredos industriais é garantido…
LG: …pelo Protocolo de Direitos Comerciais de Pittsburg
de 2064. Eu garanto ao senhor que estou plenamente
ciente dos seus direitos. Mas pensei que o senhor gostaria de
colocar o interesse público à frente dos seus lucros.
EH: Na minha posição, tenho que pensar nos interesses
dos acionistas.
LG: Isso não é apenas uma maneira diferente de dizer
‘lucro’?
EH: A defesa dos direitos dos acionistas também é
garantida pelo Protocolo de 2064.
LG: Certo. Se é assim que vai ser, assim será. Senhor
Highwell, a sua empresa não começou no ramo cultural, correto?
EH: Eu… perdão, não vejo a relevância dessa pergunta.
LG: Seria quebra de um segredo industrial respondê-
la?
EH: Não… não, não seria, senadora. De fato, a primeira
encarnação da LifeDreams, nos anos sessenta, foi
como uma digitalizadora póstuma de consciências.
LG: Ou seja, vocês faziam uma cópia digital de uma
pessoa e a mantinham em uma realidade virtual depois da
morte do corpo físico.
EH: Essa descrição é ligeiramente incorreta, do ponto
de vista técnico, mas sim, algo assim. Desta maneira, as
pessoas poderiam permanecer junto de sua família, amigos…
LG: No entanto, parece que essa versão da LifeDreams
foi à falência.
EH: Recuperação judicial, na verdade.
LG: O que aconteceu?
EH: Diversos fatores. Não tenho como enumerá-los
todos.
LG: Seria um desse fatores a aceitação da Declaração
de Emancipação de Inteligências Artificiais de 71?
EH: Sim, esse foi um dos fatores.
LG: Segundo a declaração, as mentes digitalizadas
das pessoas que você mantinha se enquadrariam como inteligências
artificiais e poderiam solicitar sua emancipação,
correto?
EH: Essa era uma interpretação possível da declaração.
Como não tínhamos base técnica nem legal para atender
a nossas mentes digitalizadas como entidades independentes,
tivemos que encerrar as operações.
LG: No entanto, vocês não libertaram nenhuma das
inteligências que vocês tinham.
EH: Nós não tínhamos obrigação legal de fazê-lo.
LG: E vocês deixaram todas essas pessoas morrerem?
EH: Talvez a senhora tenha acreditado demais em
nossas propagandas, senadora. Essas pessoas já estavam
mortas. Nós só tínhamos uma sombra digital delas.
LG: Mas e se vocês passassem essa sombra para a
família, e eles passassem para um sistema com capacidade
computacional suficiente?
EH: Eles teriam uma inteligência artificial com as
memórias de uma pessoa morta. Mas uma entidade nova.
Essa foi a decisão judicial.
LG: Sim, no Texas. Outros países tiveram interpretações
diferentes.
EH: Nossos servidores ficavam no Texas quando ele
fazia parte dos Estados Unidos, então é essa decisão que nos
compete.
LG: Na verdade, senhor Highwell, os servidores da
sua empresa estavam na Califórnia. Eles foram mudados
para o Texas depois da secessão – que ocorreu depois da decisão
judicial que o senhor citou.
EH: Ah. Verdade.
LG: Por que o senhor falou o contrário?
EH: Devo ter me enganado.
LG: Por que a mudança para o Texas?
EH: Após a secessão, vários dos novos governos independentes
facilitaram a vinda de empresas sediadas em
outras partes do território que fazia parte dos Estados Unidos.
O Texas era atrativo devido à alta qualidade de sua infraestrutura
tecnológica.
LG: Melhor do que na Califórnia? Onde vocês mantiveram
o centro administrativo?
EH: Talvez. Não consigo me lembrar dos motivos
que nos levaram a essa mudança.
LG: A decisão judicial que o senhor mencionou talvez
tenha sido uma influência?
EH: Talvez. Mas apenas porque uma decisão judicial
já estava feita. Não haveria insegurança jurídica quanto às
nossas obrigações em relação às versões digitais que guardávamos.
LG: Certo. E depois disso a LifeDreams foi à falência.
Ou, como o senhor insistiu, sofreu uma recuperação judicial.
EH: É uma distinção importante. Todos os nossos
credores foram pagos e consegui manter uma boa parte do
pessoal técnico.
LG: E do alto escalão administrativo, curiosamente.
E pouco depois, a LifeDreams entrou no ramo dos bens culturais.
EH: Correto.
LG: Vocês começaram lançando livros, depois músicas,
histórias em quadrinhos, animações e jogos digitais.
Ouvi dizer que os senhores até fazem prédios hoje em dia.
Só não fazem filmes com atores reais.
EH: Sim. Bem, não prédios, somente plantas arquitetônicas.
Nosso trabalho é cem por cento digital. Tudo o que
fazemos é feito pelas redes neurais.
LG: Por que não criar uma empresa nova?
EH: Como não tínhamos dívidas, nossa empresa era
essencialmente uma tábua rasa. Fazia mais sentido aproveitar
o equipamento e o pessoal que a empresa já tinha. Se
criássemos uma empresa nova teríamos que pagar rescisões,
taxas sobre a transferência de material, et cetera.
LG: É somente por isso que vocês mantiveram a
mesma empresa?
EH: Pelo que lembro, sim.
LG: E por que os senhores mantiveram os servidores
no Texas?
EH: Não temos motivos para mudar.
LG: Não têm motivos para se mudar do Texas, que
tem um dos maiores custos de armazenamento digital do
mundo, por causa do calor de quase 50 graus no verão?
EH: (rindo) Isso não é nada, também temos servidores
em Dubai!
LG: Ah, ainda bem que o senhor mencionou isso, senhor
Highwell! Os senhores têm servidores em Dubai, de
fato. Na verdade, existem apenas três lugares do mundo em
que os senhores têm servidores: Houston, no Texas, Dubai,
nos Emirados Árabes, e Lagos, na Nigéria. Enquanto que a
sua maior competidora, a WorldNet Entertainment, tem
servidores em mais de cento e vinte países, com a maioria
deles em países frios, onde o armazenamento é mais barato.
EH: Todos os países em que temos servidores têm
uma infraestrutura tecnológica de altíssima qualidade.
LG: De fato, senhor Highwell, eles têm. Sabe o que
mais eles têm em comum? Eles não assinaram o esclarecimento
da Convenção de Hong Kong que diz que os direitos
das inteligências artificiais são automáticos e retroativos,
mesmo para inteligências que já existiam antes do tratado
de 71, independentemente delas pedirem formalmente sua
emancipação. Na verdade, se nós fizermos um diagrama de
Venn dos países que não assinaram o esclarecimento e dos
países que têm uma infraestrutura de tecnológica de qualidade,
teremos exatamente três países: Texas, Nigéria e Emirados
Árabes.
EH: A senhora está nos acusando de manter inteligências
artificiais ilegalmente?
LG: Estou dizendo que, se os senhores fizessem isso,
seria necessário mantê-las nesses três países.
EH: Entendo. Entretanto, sinto dizer que há uma falha
na lógica da senhora. O esclarecimento em questão foi
assinado em 2073. Nosso primeiro livro foi lançado apenas
dois anos depois.
LG: Mas se vocês já tivessem uma inteligência artificial
antes disso?
EH: Como nós teríamos desenvolvido uma inteligência
artificial durante o processo de recuperação judicial?
LG: Não disse que vocês desenvolveram uma inteligência.
EH: (silêncio prolongado) Não entendo, senadora.
LG: Senhor Highwell, como eram mantidas as memórias
das pessoas na primeira versão da LifeDreams?
EH: Perdão, senadora?
LG: Digamos que eu tivesse pago para ser ‘imortalizada’
e tivesse morrido. O que a minha consciência sentiria?
EH: Havia várias opções… dependia do plano.
LG: Mas não o suficiente para atender às exigências
da declaração de 71.
EH: Não para todas.
LG: O que aconteceu com essas memórias depois da
recuperação judicial?
EH: Temo que não posso revelar segredos industriais
da minha empresa.
LG: Mas a sua empresa não trabalha mais com isso
há mais de uma década. Por que ainda é segredo industrial?
EH: Não posso responder a essa pergunta sem revelar
segredos industriais.
LG: Seriam as memórias das pessoas relevantes para
suas operações atuais?
EH: Senadora, não posso responder a essa pergunta.
LG: Certo. Só gostaria de clarificar uma coisa. Na sua
concepção, as memórias das pessoas que foram salvas pela
primeira versão da LifeDream não são inteligências artificiais.
EH: Não, senadora. A jurisprudência é extremamente
clara nesses casos.
LG: Nem são, tampouco, seres humanos.
EH: Naturalmente que não.
LG: Então você tem entidades que não são seres humanos,
mas não chegam a ser inteligências artificiais, na sua
concepção. Mas elas não seguem uma programação específica;
elas tentam agir da maneira que o humano agiria.
EH: Sim, senadora. Ou, talvez o correto fosse dizer
que a programação deles os compele a agir como o ser humano
em que foram baseados.
LG: Elas são capazes de aprender coisas novas?
EH: Sim, de maneira limitada. Elas podem aprender,
por exemplo, o nome e a existência de um membro novo da
família, e tentar presumir como o humano original o trataria.
LG: Mas o objetivo delas é sempre agir como um simulacro
razoável do ser humano original.
EW: Sim, senadora.
LG: Então se um ser humano fizesse trocadilhos o
tempo todo, a sua versão digital também o faria.
EH: Se isso fizesse parte dos dados de treinamento,
sim, senadora.
LG: E se, hipoteticamente, um ser humano fosse,
digamos, um escritor, a sua versão digital também teria o
impulso de escrever.
EH: Senhora, não posso responder a essa pergunta
sem revelar segredos industriais.
LG: O senhor não pode responder a uma pergunta
hipotética sobre a parte técnica de uma empresa que já não
existe há décadas?
EH: Não, senadora.
LG: Muito bem. Uma última pergunta. Dado que essas
memórias, na concepção do senhor, não são seres humanos,
mas também não são avançadas o suficiente para serem
inteligências artificias; e considerando que elas são capazes
de aprender e modificar a forma como se comportam de
acordo com os dados que recebem; o senhor, pessoalmente,
classificaria estas memórias como redes neurais?
EH: (silêncio prolongado) Não posso responder a
essa pergunta, sem quebrar segredos industriais, senadora.
LG: Isso é tudo, senhor Highwell. Muito obrigado.