Prólogo
Epílogo
Conto
É como morrer e não morrer, experimentar o gosto da morte, seja amargo,
doce, salgado, azedo, apimentado, e voltar a viver em seguida, sabendo, com toda
certeza que vai morrer algum dia, e definitivamente, viver, ou morrer, pelo resto dos
seus dias, que compõem a eternidade. Morrer antes do tempo, mas não exatamente.
Saber que ainda resta algum tempo depois da experiência realizada, e que há possibilidade
de rever muitos quais sejam os conceitos. Viver renovado, sabendo que vai
morrer, em algum tempo, seja longo, ou curto.
Como os vendilhões de caixões no bairro central da cidade de Curitiba, que
prometiam, a quem comprasse caixões, que tivesse um dia de morto, mas só para
aqueles que comprassem seus caixões, e especificamente, um caixão em especial, que
tinha alguns zeros adicionais em seu preço, o conforto era garantido, e a experiência
prometida. Afirmavam que se o conforto não fosse conhecido, poderiam colocar, os
clientes, o próprio corpo morto em algum outro lugar, bem longe dali; algum caixão
mais barato, ou outro de melhor conforto.
O bom da história era que todos os clientes, ricos milionários, estelionatários,
políticos corruptos, enormes empresários, pagavam tudo a vista, com um desconto
razoável. Já, pobres fantasiados com roupas muito caras, nunca pagavam de uma só
vez. Assim, prometiam o cartão de crédito, mesmo depois de mortos, que continuaria
a pagar prestações a perder de vista, com muita regularidade, provavelmente
comprometendo a renda familiar em algumas décadas, quem sabe.
O certo era que o ensaio era também bem pago, estava com o preço escondido
em algumas prestações adicionais daquele objeto fúnebre tão bem divulgado.
No dia marcado, o morto ainda vivo, se maquiaria com ajuda de uma moça
especialista em famosos, que ela dizia estarem todos mortos por dentro, só esperando
o enterro apropriado, já que deviam esperar chamar a senha deles, como todo cidadão
bem educado. Ela, que maquiava tudo muito pálido, depois aprontava a roupa
adequada, um terno de fina costura, um vestido cheio de seda frágil. Feito tudo isso,
o cliente, ensaiando, deitava no seu canto de repouso, e provava daquele conforto tão
prometido, sabendo que quando seu dia chegasse, toda aquela almofada amorteceria
o peso daqueles ossos, e da carne seca que estaria longe de toda a alma, e assim, um
pouco mais leve em termos de consciência.
Na cerimônia ensaiada, existiam aqueles que choravam, aqueles que comentavam,
aqueles que falavam mal do morto, aqueles que discursavam. A experiência
era autêntica.
Diziam os organizadores de todo aquele negócio que muitos clientes tinham
vontade de chorar, mas tinham de se segurar para que tudo corresse conforme planejado,
afinal mortos não choram.
As flores estavam lá de acordo com a personalidade do morto vivo. Tinha até
um religioso convidado, que variava de padre, pastor, rabino, ministro espiritual, pai
de santo, filósofo no caso dos ateus para falar do grande nada que se seguiria após o
fim daquele momento terreno.
Assim era tudo aquilo. Um verdadeiro espetáculo, de fazer contemplar e chorar
qualquer um que sentisse e ouvisse tudo que se passasse lá naquela pequena capela
ecumênica.
Após a experiência, o cliente, muito bem respeitado em seus desejos, os últimos
a se realizar, comentava e criticava tudo que se passara. Frequentemente dizia
como queria que tudo fosse feito, e o que queria que os vivos, no seu grande dia, mudassem.
Sim, sim, como quiser meu querido, este será seu dia, você, portanto, deve
escolher como ele será celebrado; todos só estarão falando de você, todo mundo de
algum ou outro modo, você será o centro das atenções.
E todos saiam de lá muito bem agradados, cheios de expectativas para o grande
dia, que seria o último deles, no mundo dos vivos. O último. Por isso um ensaio é
tão importante, tão cheio de expectativas. Nele todos os erros são cometidos, todos
os cronogramas colocados à prova, vêem se cada um está de acordo com a sua função
no grande espetáculo, nada poderá sair errado. Todos devem fazer algo próximo do
combinado, e então, eles serão criticados por tudo que foi prometido, colocado no
planejamento daquele momento.
O Sentido da Vida — parte 2:
Tadeu era funcionário de banco. Tinha devotado pouco mais de trinta anos,
de sua vida comum como contador de assuntos financeiros, àquele banco público
que estava vivendo um período de grande instabilidade financeira. Ele, a exemplo
de seu trabalho, vivia um período de enorme instabilidade, emocional. Entretanto,
só ele disso tinha conhecimento. Já não sabia o que era, mas tinha certeza, algo ele
tinha perdido em algum momento de sua jornada como homem, como ser humano,
como vivo. Algo importante, que estava fazendo enormes faltas nesses últimos anos
de emoções incertas, insatisfações, grande indiferença. Pensava em si mesmo como
uma máquina que lutava para funcionar sem uma peça essencial.
Ficou sabendo daquele famoso e controverso ensaio fúnebre por meio de um
cliente meio pobre, que veio emprestar muito dinheiro de uma só vez, e em segredo,
confessou a Tadeu do que se tratava a experiência. Ele, inicialmente, achou tudo
muito mórbido, polêmico demais para se gastar tanto dinheiro assim.Em casa, no segredo
de seu trancado quarto, longe da esposa e dos filhos já crescidos que quase não
ligavam muito pra ele, pesquisava sobre o que era aquilo tudo. Lia os depoimentos,
assistia aos vídeos, às entrevistas, ficava surpreso com o efeito e repercussão que um
ensaio fúnebre teria na vida de um vivo.
Com muita reflexão, resolveu aderir ao tal movimento. Nunca tivera coragem
de tirar a própria vida, acreditava que a decisão de matar o próprio corpo era
permanente demais, além de pecado em tantas religiões que ainda desconhecia. Agora,
um ensaio de um dia de morto era uma oportunidade única. Caso se arrependesse
de morrer, teria uma nova chance. Sairia ileso, sem se machucar, dessa estranha e
única experiência. Tudo isso pago por seu próprio dinheiro. Só ele ficaria sabendo,
ninguém mais, todos o tratariam com a indiferença habitual nos dias seguintes ao
ensaio. Imaginava tudo. Já ficava ansioso com o que poderia acontecer.
Emprestou toda a quantia da própria poupança, que era regularmente armazenada
para casos de enormes apertos financeiros, desemprego, doença, separação,
processos judiciais. Justificava a si mesmo que o dinheiro seria bem usado, ele estava
muito doente, devia ser de um órgão intangível como a própria alma, e só ele era
quem seria capaz de dar o próprio diagnóstico, e também ministrar o próprio tratamento.
Chegando perto do lugar onde se instalava a luxuosa agência funerária, foi
interrompido por um grupo de dois estranhos homens. Ambos sabiam que muitos
clientes chegavam naquele lugar com quantias razoáveis de dinheiro a mão. Geralmente
a abordagem era fácil, discreta, nenhuma vítima tinha ainda reagido. Tinham,
estranhamente, medo de morrer.
Com lentidão foram andando próximo a Tadeu, a passos cada vez mais pesados
e apressados. O homem, que escondia dentro do paletó, em um bolso interno,
um generoso pacote de notas de cem reais, começou a perceber que era seguido.
Ambos, um de cada lado, interromperam o contador de banco público no meio de
sua trajetória, e sem cerimônias, mostraram as armas que carregavam em seus cintos.
Cada um tinha um revólver, cada revólver estava carregado.
Tadeu que era indiferente a tudo, ultimamente, sentiu uma paixão violenta
e urgente. Parecia algo estranho, que não percebia em si mesmo em muito, sentia
novamente que vivia.
No instante que observou que de fato, poderia não desfrutar daquilo que seria
o seu momento, e apenas seu, percebeu que, de fato, teria algo importante a perder.
Não poderia deixar coisa assim acontecer.
Reagiu, com total inexperiência.
Foram dois tiros.
Um na barriga, na altura do fígado.
Outro no peito, próximo ao coração.
Os bandidos, rapidamente, tiraram o envelope com as notas; sangue escorria
daquele invólucro.
Tadeu, em seus últimos minutos, sangrava para a morte.
Ninguém precisava lhe contar sobre isso, era uma a certeza óbvia daquele
momento. A morte estava próxima.
Achou infeliz a ironia aquele momento, no qual, o instante em que se sentiu
mais vivo nos últimos trinta anos era, também, o seu último. Não teria uma segunda
chance. Não seria apenas um ensaio. Queria ter vivido mais. Em poucos minutos
tudo já estaria consumado.