Prólogo
Epílogo
Conto
— Desdê, está acordada?
— Hm?… Sim… Mais ou menos.
— É o Kid, ele te chamou. Parece que houve algum problema na última entrega.
— … Diga que já vou. Quantas vezes já não aconteceu “algum problema” esse
ano… Talvez seja hora de eu mudar de vida mesmo.
Por quanto tempo Luxúria não foi o refúgio dos drogados de Antros. Cidade
noturna, alheia à ordem, Luxúria foi levantada sobre tudo o que há de pior no universo;
cidade noturna, vizinha do inferno, Luxúria é onde fiz minha vida. Com Kid
não foi diferente— esse homem parece que nasceu nesse buraco. Mais um problema
na entrega, então, o que será agora? Nesses oito anos de vivência, quanta coisa já não
tive que resolver… Enfim, não vim pra Luxúria senão para ganhar dinheiro— e isso
ela me garante. Que tipo de problema, então, teremos hoje?
Chegar ao Beco é sempre uma emoção a mais. Os cabeças de Luxúria se reúnem
aqui para discutir seus próximos movimentos, manter as diplomacias, trocar
capangar, propor ideias e executá-las; tudo acompanhado de Syn-X, a droga sintética
que circula em Lux como ar. Syn-X 1, Syn-X 2, Syn-X 3, e a lista vai; quantas variantes
dessa merda já não existe? Apesar do ar de importância dessas mesas, estes
caras não estão nada mais que entorpecidos até o limite humano; julgam realmente
discutir próximos movimentos, manter diplomacias, etc. Luxúria é uma cidade de
mentira; todo mundo acha que está fazendo alguma coisa, mas, na realidade, só estão
com o cérebro corroído de drogas, fantasiando coisas. Luxúria é linda quando se está
sob o efeito do Syn-X— e fica mais ainda conforme a intensidade da droga. Os que
perdem o efeito, têm que voltar pra realidade, fazer algum trabalho nesse lixo de
cidade: se livrar de algumas carcaças humanas que explodiram as cabeças tamanha
empolgação sob o Syn-X; fazer algum serviço pros condes da noite; roubar algum
lesado em algum lugar, esperando não ser descoberto; e a lista segue— e segue muito.
De tudo isso, uma ou outra coisa não fiz. Frente a sala do Kid, me pergunto, mais
uma vez, qual será meu trabalho.
— Ó, Dêmona, como é bom vê-la! Venha, venha, tenho um trabalho pra
você. Sente-se. Isto. Como é bom olhar pra esses olhos verdes mais uma vez. Numa
terra onde todo mundo cospem os olhos pra fora das órbitas, vê-los assim, calmos,
serenos, me causa um efeito simplesmente… instigante! Como eu te amo, mulher!
— Vamos lá, Kid, sem isso. O que pega? E o que esses dois degenerados estão
aqui ainda?
Havia dois fodidos do Kid na sala, e eles me incomodavam muito. Dois cabeludos
com porte esquelético, quase se despedaçando por si só; curiosamente, eram
“seguranças” do careca. Kid era uma pessoa boa, apesar do lugar em que estávamos.
Ele tinha uma vozinha fina, doce, e a aparência de um touro, e claramente poderia
resolver seus problemas por si só, sem a ajuda das marionetes horríveis que ficavam
em sua sala. Ele pediu pros dois saírem, e assim eles fizeram, sem falar muita coisa,
como se fossem realmente marionetes.
— Pra que caralhos você usa esses caras, Kid? Uma porretada e eles se espatifam.
Aliás, como diabos eles sobreviveram todo esse tempo? Desde que te conheço
esses caras estão aqui.
— Ah, deixe eles, por favor, Dêmo. Por que você implica toda vez com eles,
aliás? São meninos tão bons: Rod e Rig, os irmãos trapo, homens tão distantes dessas
terras, que transcenderam. São camaradas perfeitos, eles, Dêmo, não reclamam de
nada e fazem de tudo; mas, como você disse, “uma porretada e eles se espatifam”, e
é por isso que eu te chamei; e te chamo. É o seguinte, Dêmona, Rig fez uma entrega
ontem e tudo parecia ocorrer bem. Três caixinhas de Syn-X 2, num apartamento lá
na Fossa, aquele bairro das “coisinhas secretas”, sabe, né? Há gente pra tudo nesse
mundo! Então, o que pegou foi o seguinte: o conde de lá veio aqui hoje me dizer
que estou fornecendo Syn-X adulterado, e que uns vinte cidadãos de bem morreram
por causa do produto que mandei pra eles; era o Syn-X de ontem que o Rig levou.
Como eu não posso dar uma resposta pro conde sem antes ter averiguado a situação
de perto, estou te enviando pra lá justamente pra isso. O conde, inclusive, está aqui.
Odek, pode entrar!
Um sujeitinho de óculos, baixinho e franzino entrou. Estava trajado de maneira
elegante, o pobrezinho, tentando provar sua importância através da roupa que
usava, não da aparência que tinha— quem o visse sem as roupas, com certeza o tomaria
por um pigmeu entorpecido, viciado no mais forte Syn-X. Ele me olhou de cima
a baixo, deu uma risadinha e voltou-se para o Kid, mas, assim que o fez, grudei-lhe
pelo pescoço e coloquei-o contra a parede. O que pensou quando olhou pra mim?
— Riu por quê, desgraçado? Algum problema comigo?
— Ah, Mona, não faça isso! Nada como a de Otelo, nada, nada! Solte o rapaz.
Isso vai me causar ainda mais problemas, Dêmo.
— Vejo que não anda cuidando bem de suas cadelas, Kid; elas andam violentas.
Ao ouvir aquilo, senti-me na completa liberdade para espancá-lo, e assim
o fiz. Kid levava as mãos à cabeça, começava a murmurar algumas coisas, e o homem
no chão se defendia como podia. Pisoteei o homem até não aguentar mais, e
ele eventualmente apagou. Kid chamou os irmãos e eu fiquei olhando pro nojento
jogado no chão.
— Bem… Não era exatamente isso que eu precisava de você, Mona, mas acho
que tenho de me contentar. Provavelmente virão atrás dele em breve, e eu quero que
você tenha uma boa explicação para eles, pois eu não tenho. Rod, Rig, levem esse
coitado lá pra fora e peça para que comunique os amiguinhos dele sobre o ocorrido,
eles estão na mesa 13. Oh, Mona, você é incontrolável. E agora, o que vou fazer?
— Kid, eu te conheço. Você me chamou aqui pra dar uma surra nesse vagabundo.
Pare de dramas. Me diz o que tenho que fazer agora. Mesa 13?
— Calma, calma. Não se adiante. Deixe o pessoal lá, eles estão à vontade,
consumindo do bom e do melhor, e serão eles quem farão teu pagamento hoje. Eu
preciso de algo diferente. Esse conde aí queria ir contigo pra lá, e isso atrapalharia
a investigação; eu temo que eles armaram algo pra nós lá. Eu nunca trabalhei com
Syn-X adulterado. Eles provavelmente querem aplicar um dos velhos golpes do negócio:
sequestrar alguém de confiança de um conde pra trocar em carregamentos do
nosso Syn. Quero me certificar de que não é isso, então tirei o homem da jogada. Eu
me resolvo depois com ele, não se preocupe. Se o negócio realmente pegar pro seu
lado, eu te arranjo um jeito de voltar pra Antros com tudo o que você quiser; você
não precisa mais viver nesse buraco, Mona, você merece mais que isso. Vá até o
apartamento onde foi feita a entrega e investigue; o que encontrar lá, traga pra cá. Se
realmente tiver sido adulterado, então temos um grande problema, pois começamos
a usar aquele carregamento hoje mesmo… Que barulho é este?
Barulhos de todo quanto é tipo eclodiam além da porta de Kid. Ao abri-la, a
cena mais brutal se desenhou pelo arco da porta. Os condes, seus capangas, e todo
o resto, se espancavam mutuamente, fazendo jorrar sangue pelos salões do Beco,
num frenesi nunca antes visto. Kid pediu para que eu fechasse a porta e se mantinha
calmo, apesar de tudo.
— Que porra é essa, Kid? O que está acontecendo?
— É uma longa história, Desdê. Só alguém que conhece meu passado poderia
compreender isso. Eu sei que você é uma das poucas nesse lugar que não usam o
Syn-X, que encaram essa realidade como ela é, esse buraco imundo que é Luxúria.
Você não merece isso. Ninguém merece isso. Eu trabalhei essa fórmula e fiz ela ser
espalhada pela cidade. O caso de ontem, do apartamento, foi controlado, pra comprovar
a funcionalidade da droga. Realmente todo mundo lá morreu, mas porque
estávamos lá pra abatê-los; caso contrário, Fossa estaria tomada por gente tipo essa
aí de fora. Luxúria vai se tornar um inferno de agora em diante. Essa droga é um
psicoativo poderosíssimo que fará com que todo mundo entre num estado extremamente
violento, e ela é contagiante. Eventualmente, as ruas serão tomadas pelo caos.
Você, Mona, é uma das únicas pessoas que não usam o Syn-X, e é por isso que você
está aqui. Desdê, espalhe meu nome. Eu acabei com Luxúria, eu fiz o que ninguém no
mundo poderia fazer. Essa é minha contribuição para o mundo, e é por isso que quero
ser lembrado. Há um motoqueiro te esperando na viela de trás do Beco, que você
pode chegar por essa porta atrás de mim. Meu trabalho foi feito, deixe-me só. Foi um
prazer. Eu queria te dizer que isso é coisa de sua cabeça. Que você usou o Syn-X e é
tudo mera criação da droga, mas não, meu anjo. É o fim, realmente. Vá, fuja. A realidade
de Luxúria nunca foi espaço pra você. E, após testemunhá-la também, soube
o quanto você sofreu nesses oito anos. Se for pra viver isso aqui, é melhor não viver.
Fui incapaz de interromper o que veio a seguir. Kid explodiu a cabeça com
um revólver. A gritaria continuava, lá fora, e tudo parecia se quebrar. O caos, como
disse Kid, tomaria conta de Luxúria. Eu estava atônita, e procurava injeções em meus
braços, pois aquilo não poderia ser real. Nada. Não podia ser. Eu peguei o revólver de
Kid e fui pra viela. Eu sairia dali viva, não importa como. Este foi meu compromisso.
Luxúria acabou. Saio com uma mão na frente e outra atrás, mas, ao menos, sairei
com vida— coisa que pouquíssimos, ainda mais agora, irão. Lá estava o motoqueiro.
E lá estava a multidão que o cercava, estraçalhando cada pedaço de seu corpo. Vitros
se quebravam pelas ruas, uma gritaria constante ecoava pelas vias. O inferno era
aqui. Acordar na normalidade e dormir num apocalipse. Este seria o dia de hoje, se
eu dormisse. A porta do escritório foi arrombada, corriam em direção a mim aqueles
mesmos cabeludos de mais cedo— injetaram agora, será? Não, não haviam injetado
nada. Logo cravaram-lhes pedaços de vidro nas costas. Ainda gritavam por socorro.
E assim o fiz também. Mas era tarde demais. Já me cercavam. Eu atirava, mas não
havia força que poderia parar o ímpeto dos drogados. Sim, eu não dormiria hoje.
Seria isso bom ou ruim?