Prólogo
Epílogo
Conto
Tantos são os que jamais tiveram um só momento de paz. Muitos são os que
esperam o dia nascer para secar as lágrimas. Cinzento era o final daquela tarde. O sol
de sábado já buscava abrigo por entre nuvens negras; o horizonte agora contrasta
com o que fora um ensolarado dia. Tudo está morno e sem cor. Não há som algum lá
fora. Existe apenas culpa e dor.
A garota se atrapalha um bocado com as chaves na fechadura. Entra correndo
tropeçando nas próprias pernas. Na pressa deixa a porta aberta e corre pelos
pequenos cômodos, atirando a bolsa entreaberta no sofá e ajoelhando-se em frente
ao sanitário; a oração feita em bílis da mais nova devota no altar dos santos tristes.
Pelo zíper mal fechado na bolsa de couro sintético, vê-se o panflete branco
e azul com um título em caixa alta. Sobre colunas de textos ilegíveis por conta do
tamanho das letras, apenas se pode identificar o duplo “P”. A garota de joelhos suja o
chão num descontrolado jato de vômito e se contorce de dor segurando o abdômen.
Está fraca e mais pálida do que sempre fora. Seu corpo frágil por mais uma vez se
debruça sobre o assento e o febril azedume é expelido de sua garganta. Ela se senta
e encara a parede por alguns segundos, enxugando a boca com as mangas da camisa.
*
No turbilhão que existe em sua mente não há espaço para outra coisa, a não
ser o ocorrido daquela tarde. A violência auto infligida, o cheiro de morte ainda nas
roupas, a dor que não cessa e parece agora residir no peito. Por fim reúne forças e se
levanta, ainda tonta pela segunda intravenosa dada pelo negro e profano sacerdote.
O pequeno espelho rachado reflete seu rosto jovem e macio. É uma pele tão
branca que se pode ver o conjunto de veias esverdeadas em seu braço. Lentamente
ela tira as roupas. As peças vão se acumulando umas sobre as outras num canto.
A pélvis inchada e vermelha. Os quadris doloridos. Ela ainda pode ouvir o som da
sucção.
A água cai como num batismo. Cada gota parece passear pelo seu corpo nu
enquanto ela encosta a cabeça na parede e se deixa massagear. Os dedos dos pés se
contraem; criam pequenas ondas pelo chão que rapidamente se empossa por conta
do ralo fechado. Rezaria, se soubesse, para que devagar a água subisse e se tornasse
uma só coisa com ela. Um aquário frente aos pequenos dedos que lhe apontam entusiasmados.
*
Na sala a fumaça passeia pelo ar. Alça voo livremente misturando o seu cheiro
com o do vinho barato num copo impróprio para tal. Mesmo a tevê ligada não
a distrai. O relógio de Fritz Lang torna-se o que repousa em sua parede — “Father!
Father! Will ten hours never end?” — seus profundos olhos são janelas para um
prédio oco.
A casa pouco a pouco mergulha numa escuridão histérica. Apenas os ponteiros
vagarosos podem ser ouvidos de seu quarto, juntamente com seus passos descalços
no piso frio. A cama não parece tão confortável como antes. Está dura com o
fundo de um caixão sobre terra plana e sob a remexida ainda fofa. As cobertas são
como mortalhas que cobrem seu cadáver vivo; o anúncio de um banquete eterno aos
famintos vermes que propositalmente se atrasarão para o jantar.
Deitada de lado, repousa a cabeça nas mãos e esquenta a fria orelha, dobrando
a cartilagem e fazendo um zumbido surdo dentro de sua cabeça. Olhando para a
parede apenas uma lágrima inexpressiva escorre, atravessando o topo do nariz, marcando
a outra bochecha e manchando o travesseiro onde metade de seu rosto tenta
se esconder; quando feliz, o diabo nunca dorme. De barriga para cima ela encara o
teto nu e branco mergulhada no silêncio claustrofóbico e ameaçador; nem mesmo
a noite parece existir lá fora. Tudo está dormente e o ar pesado no quarto afugenta
até mesmo os pesadelos. Exceto um, que de pesadelo tinha bem pouco, e a observa
no final da cama.
Agora sentada pega o maço de cigarros no criado mudo. A fumaça cancerígena
é sua única companhia, mas até mesmo as toxinas presentes parecem ter vergonha
de com ela serem vistas; saí a contragosto e sem sabor pela boca que disse “sim”, e
some rapidamente sem se despedir ou olhar para trás. Seu rosto estático se desvia
apenas o suficiente para ver a porta aberta e o chão. De imediato leva as mãos ao
rosto e chora copiosamente olhando o que lá estava, como se cada detalhe, cada vírgula,
cada esquina do que deveria ser e não mais o é, pudesse ser absorvido pelos seus
sentidos; aquele pequeno intervalo de tempo no espaço vazio, donde outrora houve
uma alma com tantas promessas esculpidas em caco de vidro.
*
Como sempre o sol nasce vigoroso e zombeteiro. São quase sete da manhã.
Ela não dorme há quatro dias. O lixo se acumula pela casa. Maços de cigarro e garrafas
de vinho pelo chão e pela mesa. A tevê desligada. O piso parece ter um carpete
feito com pontas de cigarros apagadas a esmo; o carpete vermelho de uma rainha
sem príncipes. De pé num canto da sala ela encara a sujeira da casa como se olhasse
diretamente para dentro de si.
O cheiro forte de janelas e portas fechadas lembra mofo, poeira e qualquer
coisa que já começava a apodrecer no fundo da pia. O ar é quase sólido. Ao lado de
cinzeiros cheios e copos cansados manchados de vinho, o celular toca. São mais de
vinte chamadas perdidas onde se lê “Mãe”. Ela apenas observa o aparelho tremer e
acender. O nome escrito na tela parece martelar seu cérebro a cada zumbido grave
que faz sobre a mesa. Tremendamente ensurdecedor. É como se as paredes tremessem
ou escavadeiras disputassem uma corrida dentro de seu crânio.
Sua lastimável aparência reflete-se mais uma vez. Nem ao menos lembra a
doce e bela garota que um dia fora. Suas olheiras negras profundas, o cabelo ensebado
e quebradiço, o odor de um animal há muito enjaulado. Num espasmo de
consciência o chuveiro parece apetitoso. Em ébrios passos ela caminha entorpecida
até o banheiro. Dessa vez sentada, deixa que a água caia sobre si numa cascata dolorosa
e aflitiva. Ali as lágrimas não podem ser percebidas. Todavia existem, mesmo
camufladas.
*
O tempo é sólido dentro da casa. Passa como se cada segundo durasse o próprio
existir do universo. Mesmo assim as noites e os dias ainda são percebidos pelas
janelas fechadas onde as cortinas já caíram há muito. No chão, mesmo convidativo,
nem baratas se aventuram. Sentem nojo de vê-la sentada naquele canto. A poça escura
formada pelo que da garrafa ainda goteja, faz companhia ao único movimento
que seu cansado corpo faz; a parábola traçada entre o repouso do cigarro e os lábios
rachados e gosmentos.
Antes apenas surgia vez ou outra, mas agora também mora ali. A sua única
companheira e testemunha que um dia tentou ser mais que isso. A garota de pele
outrora macia, sorri ao vê-la novamente se esgueirando por baixo do sofá. Tímida e
com medo ao perceber que era notada, some novamente, mergulhando a entorpecida
moradora em lágrimas soluçantes que apagam o cigarro — Durma tranquila e que
Morfeu te carregue. O diabo no armário tem um sono leve — e insistem em rolar e
pingar no chão sujo, lavando as pegadas feitas pelo verdugo.
*
Aquela noite chegou junto com o frio. A garota de pele macia está em seu
trono de lixo e restos, sentada no chão e encostada na parede. Seus olhos fixos ignoram
a fumaça que sai pelo nariz e pela boca. Hipnotizada ela continua a olhar para
frente, como fez nas últimas seis horas, parando apenas para acender um novo cigarro.
De costas para si a criança brinca com bonecas imaginárias. Seu vestido branco
e virginal recebe os longos e dourados fios loiros que lhe cobrem o rosto. A essa
altura uma já se acostumou com a presença da outra. Mesmo assim a criança ainda
teme sofrer novamente. É arredia e desconfiada, mas sempre se aproxima e logo
sorri.
De costas ela ergue o pescoço e se contorce em estranhos e repetitivos movimentos.
Vez ou outra parece sentir dor. Reconhece pelo cheiro que os profundos
olhos insanos lhe observam, contudo isso não mais a assusta. Ela retorna ao seu
brincar como fez durante toda aquela semana, enquanto a garota, consumida pela
própria amargura, permanece imóvel; teme que qualquer movimento brusco a afaste
novamente — um brinde ao barqueiro!
*
O quarto fechado está menos fétido que o resto da casa. Nele o silêncio é
maior. Já passam das quatro da manhã. Dali duas horas nascerá outro sábado. A casa
parece ocupada por viciados em drogas e moradores de rua. Não há o mínimo de
higiene e parece ser possível pegar uma doença ao se sentar no sanitário. A garota de
pele outrora macia, agora cinzenta e quebradiça, está deitada na cama fumando outro
cigarro, pego do maço que repousa ao lado de frascos de remédios e uma solitária
garrafa de vinho.
Tal como a casa ela também se deteriora consumida na própria miséria. Seu
rosto entorpecido encara o resto da grande cama. A criança brinca de costas sentada
aos seus pés. Seu rosto inexpressivo logo dá lugar a um sorriso alcoólico calmante,
que antecede um grito desesperado revelando veias pulsantes em seu pescoço pelo
tamanho esforço. Todavia nada é ouvido. Exceto pelo tiquetaquear do relógio na
parede, nada mais parece emitir som algum na casa.
Assim como antes do amanhecer, a noite permanece silenciosa. Em seu
canto favorito, onde o trono da realeza feita em lixo lhe serve perfeitamente, a garota,
que um dia teve a pele macia e delicada e não ferida e gelada como agora, permanece
encarando o que há em sua frente. Não há mais dor. As lágrimas já não existem;
todas foram choradas até não sobrar mais nenhuma. Ela apenas sorri — o sorriso de
um milhão tons.
O cigarro que fumava não mais pode ser segurado visto a falta de controle nas
mãos; os profundos cortes nos pulsos impedem qualquer sustentação por parte dos
dedos. Ela se contenta em assistir enquanto tudo ao seu redor esfria mais ainda e sua
pele fica um tanto azulado.
A criança em sua frente dança balé em passos sincronizados e perfeitos. Seus
pés brancos descalços tocam o chão levemente sobre cacos de vidro e cigarros apagados.
A casa mergulha num último silêncio. Guardanapos de seda na mesa de Jantar.
Lábios ruidosos que se saciam. A praia dos músicos invertebrados. O rosto dos inocentes
indispostos. A ruína do templo de Ísis. Allen Ginsberg molhado sob a cama.