Prólogo
Epílogo
Conto
Horrível pode ser a melhor palavra para descrever o estado em que meu amigo, o doutor Eric Damásio se encontrava. Devido a eventos de natureza duvidosa à qual afirmava estar passando, mergulhou cada vez mais em um abismo profundo da própria mente, conduzindo-o para um estado de insanidade. Outrora um homem reconhecido da ciência, agora lembrado como senil. Nos conhecemos desde a juventude e acompanhamos a formação um do outro, meu nome é Charles Gleiser e escrevo este caso em minha pasta particular sobre pacientes as quais não pude tratar, particularmente jamais esperaria colocar neste arquivo alguém tão próximo a mim.
O Dr. Damásio, formado em neurociência, se destacou pelo grande domínio que tinha sobre a funcionalidade do cérebro e das estruturas neuronais, ávido pela pesquisa e amante do conhecimento. Confesso que o admirava por tamanha paixão pela curiosidade, recordo de passarmos horas e horas conversando sobre teorias de diversas áreas, afinal, ele possuía uma instrução de causar inveja, mas mesmo tendo tamanha inteligência não se deixava levar pela arrogância como a maioria fazia, muito pelo contrário, adorava as mentes simples e alegava que nelas teria a verdadeira sabedoria de vida. Mal visto pelos colegas de trabalho por conta de seu interesse em saber como a mente funcionava, admito que ele era aberto para todo tipo de especulação, consequentemente o fez aderir a possibilidades que no meio acadêmico não eram tanto aceitos, entretanto para se justificar dizia que uma cabeça fechada não era apta para a ciência.
Uma noite veio até minha casa de forma abrupta animado e eufórico, pois era desta maneira que ficava ao ter uma ideia. Buscou pelo meu auxílio por conta da formação que possuía em psiquiatria e doutorado em doenças mentais causadas pela loucura. Em suas mãos tinham papéis de artigos científicos de uma instituição psiquiátrica que mal conhecia, acho que era Arkham ou algo assim, localizada nos Estados Unidos.
Tivemos uma longa conversa até quase a alvorada do dia sobre a ideia que tivera, determinado estava em provar a existência da mente humana, pois devido aos avanças científicos, tudo se resumia a matéria e o homem era visto como um ser biológico apenas, isso causava um certo incômodo para meu amigo, pois vendo as coisas de forma somente física tirava toda a subjetividade humana e sua capacidade de ter vontades, paixões, sonhos e liberdade. Estava determinado a provar o "espírito", onde o cérebro era seu receptáculo, desta forma tal substância invisível poderia se manifestar no mundo material. A pesquisa que tinha como base era que loucos possuíam uma mente hipersensível, capaz de captar e perceber coisas além do normal, seus sentidos aguçados levavam à loucura por conta da impossibilidade de suportar tamanha noção real das coisas. Desta forma, a premissa do experimento conduziria o voluntário a aflorar os sentidos ao ponto de se perceber as atividades mentais a olho nu, tendo acompanhamento para que haja um processo gradual na hipersensibilidade evitando a loucura imediata. Começamos a experiência um tanto quanto simples, criamos uma câmara pequena capaz de deixar duas pessoas separadas por uma parede de vidro um de frente para o outro, tendo o ambiente forrado e nenhum som entrava ou saia, a luz era fraca, mas possível de se enxergar lá dentro. Colocamos duas pessoas voluntárias em cada lado do vidro, vendamos elas com óculos preto que cobria todo o campo visual e fones que filtravam o som, desta forma se algo ali fosse percebido, teria que passar tanto do obstáculo da visão quanto da audição, além disso plugamos eletrodos nas mentes para captarmos partes do cérebro responsáveis pelo controle sensível, talvez entendendo a forma de regular poríamos excitar tal parte e o espírito teria mais liberdade para agir no mundo material.
Deixamos os indivíduos ali e observamos por câmeras, meu amigo acreditava que deixando em tal circunstância o cérebro não via outra opção a não ser regular a sensibilidade para entender o que estava acontecendo e para isso a atividade mental precisaria aumentar consideravelmente ao ponto do invisível ser percebido, o próprio espírito se manifestar devido sua intensa força. A tese de Damásio se fundamentava na evolução, onde a consciência tinha limites a partir da sobrevivência humana, bloqueada pelo próprio receptáculo para processar e reconhecer o ambiente, é como se tivéssemos chegado à um estágio e não conseguimos usufruir plenamente ele.
Dias se passaram e nada, irritado com o andamento ele mesmo foi à câmara, passava horas ali para saber se conseguia sentir além do considerado normal. Até que um dia me chamou para ir até o caixote, apelido que deu ao meio experimental, entusiasmado falou que talvez teria um progresso, só precisava confirmar com outra pessoa. Sentei e fiquei parado o observando, ele estava com os óculos e o fone, então percebi que estava eufórico, como espantado em ver alguma coisa inusitada, logo ao sairmos de lá relatou o que viu e ouviu. Ao estar de frente comigo, percebeu uma silhueta tendo minha forma, nela pequeninos olhos amarelos, ouvia um ruído pequeno aparentemente sincronizado com as cores que saíam de minha cabeça e rodeavam oscilando em minha volta, ali alegou ver as atividades mentais e o espírito humano, aparentemente conseguiu visualizar a atividade de um ser consciente. Com os eletrodos captou as áreas no cérebro dele onde a hipersensibilidade conseguiu perceber outro organismo pensante, logo desenvolveu escondido nas dependências da Universidade um instrumento, espécie de capacete capaz de excitar os neurônios e conduzir a pessoa a ter sentidos além humanos.
Confesso que estava animado pelas descobertas, mas a partir de então que começou toda a desventura, o crepúsculo do cientista, o entardecer de uma mente brilhante. Depois de criar tal invento, passava horas com ele, não compartilhava com ninguém, nem mesmo os relatórios de toda a pesquisa divulgou no meio acadêmico, estava feliz com o que descobrira e queria um tempo com sua invenção. Entretanto, ele sumiu durante cinco semanas, não conseguia de jeito nenhum entrar em contato com ele, até o reitor na Universidade perguntou se sabia o paradeiro de meu amigo, mas nada tinha para compartilhar. Até que um dia, fui com uns colegas de trabalho sair e descontrair um pouco já que o Instituto Psiquiátrico e a própria instituição de ensino desgastavam, confesso que é algo árduo, mas tolerável.
Durante a madrugada passamos em frente de um bar, neste momento vi espantando o estado do doutor Eric Damásio, estava próximo a uma caixa de som e com os olhos fatigados e profundos, aparentemente não dormia a dias, rosto pálido e feição horrorizada, logo fui a seu encontro contento e triste, primeiro por vê-lo e segundo em me deparar pela sua situação.
O levei para minha casa, relutante no início, porém cedeu pela minha insistência, chegando na residência me contou o que passou durante essas semanas. Alegou que em um entardecer, estava com seu invento observando as pessoas no pátio da Universidade, vendo através de seus sentidos aguçados os seres conscientes interagindo, dizia parecer um quadro com cores diversas e de fundo uma sinfonia de sons pequenos e sensíveis, era assim que via os humanos, até mesmo os animais dizia possuir espírito, mas bem menor comparado a nós. Foi então que na mesma noite de céu limpo, se deparou com uma visão assustadora da Lua, disse que sua cor era diferente e seu brilho era intenso, mas sombrio, além disso, parecia que no nosso satélite tinha algo inesperado, um olho imenso que não cessava de se mexer vendo o espaço.
Segundo seu relato, ficou horas e horas observando o olho lunar, o som que saia era ensurdecedor e agonizante, mas tolerável; se surpreendeu com o caso pois para tal evento era conclusivo que haveria de ter um ser consciente sobre nossas cabeças. Visualizou este evento inesperado até que a visão do espaço parou como se notasse estar sendo visto, desta forma ficou imóvel na direção de meu amigo, espantado saiu às pressas, parecia que a cada passo o olhar o acompanhava.
Depois de tudo tirou o capacete, mas relatou que mesmo assim, depois de tanto usar já estava com seus sentidos aguçados ao ponto de notar sem usar o aparelho. Não conseguia dormir, pois toda noite um brilho estranho penetrava em sua janela, com ele vinha um barulho estridente, ao fechar a cortina se deparava com o grande olho que se fixava em enxergá-lo. Para esquecer e se distrair, procurava meios de focar a hipersensibilidade, às vezes ia de bar em bar para deixar de ouvir o barulho e com a agitação das pessoas notar somente a mente humana e não a clarividência que vinha do céu noturno.
O deixei em minha casa, mas nas noites seguintes o convívio se mostrava difícil, pois ele sempre acordava assustado dizendo que o olho lunar vinha até ele, como se uma mente falasse com outra, mas nas visões que tinha em sonhos mal conseguia descrever para mim o que se passava e se perdia com coisas sem sentido, sempre parando por conta do choro.
Tentava confortar ele, mas ficava histérico, ligava o som até quase o último volume e nem queria sair de frente da TV, "preciso me distrair", repetia isso constantemente. Até que em uma manhã, ocorreu o inesperado, viu outros olhos no céu claro do dia juntamente com os sons insuportáveis, agora tanto ao amanhecer e pelo entardecer suas paranoias se intensificaram. Não via outra escolha a não ser interná-lo na ala psiquiátrica da instituição onde trabalhava. Mesmo estando em uma das melhores instituições nada adiantou, todo tipo de tratamento realizei nele, desde a psicoterapia até medicamentos para ver se a parte excitada ficava mais tranquila, acreditei realmente que seus delírios e paranoias eram devido a anormalidade das reações químicas no cérebro causadas pelo aparelho que criou.
Sua situação só se agravava, no quarto onde ficava havia desenhos circulares escuros, mas com um outro círculo no meio tendo cores psicodélicas no epicentro, de vários tamanhos tinham as gravuras, uma me chamava a atenção por conta do espaço que ocupava, praticamente quase metade da parede, ao indagar sobre me relatava acerca desse grande olhar escuro e vermelho escarlate no meio, vendo no céu noturno parecia um buraco negro que sugava os outros olhares e desapareciam, se sobrepondo a tudo. As cores, a suposta atividade mental, eram constantes e ondulavam de tal maneira que segundo o relato dele pareciam contorcer a própria realidade. O som que emitia era tão agudo para ele se assemelhava a um apito de navio antigo, acredito que tenha feito tal comparação já que nascera próximo a um porto e as embarcações o amedrontavam pelo ressonante barulho, tal entidade sugava toda a luz em volta e só aquela íris sangrenta ficava, brilho intenso como o Sol.
Dia após dia ficava cada vez mais desesperado pela sua situação, nem tranquilizantes o faziam descansar, seus pesadelos eram intensos ao ponto de acordar sob efeito de forte anestésico, até mesmo utensílios tive que tirar de seu aposento, nas refeições tinha de ser acompanhado e alimentado pois um dia com o garfo mutilou um do olhos dizendo que não queria mais enxergar aquela realidade insuportável. Fui obrigado a amarrá-lo até mesmo para dormir, pois em uma das noites foi pego batendo forte na parede, gritando agoniado dizendo: "Pare, pare não quero mais saber de suas visões". Ao ir de encontro para ver o que se passava explicava coisas estranhas e fantasias de seres majestosos, imponentes, relatava sobre seu sentimento de impotência e como foi imprudente, nunca esqueci as palavras dele: "Eu os vi e eles me viram, dádiva nossa é a ignorância, somos seres rastejando lambendo o próprio pó tendo como vista o chão onde pereceremos, nunca devemos olhar para cima, os deuses não são belos e perfeitos, são horrendos!".
Não explicava o que precisamente sonhava, mas o deixava em estado de insanidade, me vi forçado em deixá-lo preso em uma cadeira a todo momento, a partir daí que o inimaginável aconteceu, gritos eram ouvidos a todo momento, balbuciava palavras inteligíveis e sem sentidos, no começo me incomodava, mas inclinados somos nós humanos pela comodidade, confesso que me habituei e já o tratava como um paciente e nem o via mais como um amigo. Todo esse sofrimento, a decadência de um homem conhecido pela sua genialidade e curiosidade acabaram, infelizmente por minha negligência ou quem sabe pela paixão abusiva pelo conhecimento que ele detinha.
Os gritos acabaram e quando o visitei uma imagem horrível, o outro olho estava completamente seco lacrimejando sangue e a pupila toda dilatada, seus ouvidos com os tímpanos estourados, na cadeira a imagem de assustado, espantado em sua fisionomia. O levaram para o necrotério, perguntei ao legista como isso aconteceu e nem tinha explicação, sobre seu olho era preciso estar constantemente vendo algo de luz intensa como o Sol e os ouvidos precisariam estar sujeitos constantemente à um barulho estridente demasiadamente forte, seu cérebro estava deformada com partes desgastadas e outras com tumores.
Seu caso foi arquivado e o corpo usado como estudo, indagaram para mim se soubesse de algo que o levaria a tal estado, mas infelizmente não pude falar a verdade já que o doutor se livrou das pesquisas e do aparelho, logo ele foi tratado como um caso impossível e raro de ser avaliado. Fiz o relatório do caso sobre sua psique, arquivei juntamente com os demais, porém este relato a qual escrevo permanecerá juntamente com outras circunstâncias peculiares, de indivíduos com uma mente tão desafiadora de se compreender que a maioria se sujeita às explicações místicas e pseudocientíficas para encontrar conforto e desta forma algum tipo de explicação, entretanto, somente este específico relato fica em um grau de anormalidade espantosa.
Já não sei mais em que acreditar, só sei que depois de tudo isso, a Lua nunca será a mesma para mim.