Prólogo
Epílogo
Conto
Há um ladrão de almas na Taverna Bode Mágico. O leitor deverá me auxiliar na árdua tarefa de descobrir quem é esse espectro. Sou, aos desavisados do Novo Mundo, um matador de cavaleiros das trevas; esses, por sua vez, estão por todos os flancos, sobretudo em locais onde a Morte nunca habitou. E nossa toca, ponto de encontro entre homens e elfos, possui o melhor dos ambientes; as poucas confusões pelo excesso de hidromel são as únicas notícias ruins desse estabelecimento.
Seja como for, chega de papo! Vamos falar da Taverna. Para chegar lá, no entanto, são necessárias uma miríade de aventuras. Temos de enfrentar trolls, anões com machados, lenhadores de três metros de altura e guerreiros do Grande Inimigo, o Senhor Sem Nome que governa os quatro mundos que se encontraram: o de homens, elfos, anões e magos. Como sou pertencente à raça humana, meus desafios são pesados. Tenho de derrotar cinco espectros antes de adentrar no bar que relaxa o espírito. O único contratempo foi que, nos derradeiros dias, os frequentadores do Bode Mágico passaram a se comportar de uma forma esdrúxula, pormenor que me fez pensar o seguinte: há um ladrão de almas no recinto.
Vamos, pois, aos suspeitos.
1. A elfa vermelha
A elfa de cor rubra é uma mera peoa no Novo Mundo; e é justamente por isso que ela é uma das possíveis ladras de almas. Parece ser presa fácil, criatura que não causa problemas. Ledo engano. Enquanto as peças importantes vão se matando, a elfa vai andando somente pra frente e, às vezes, na diagonal, então driblando os poderosos. Quando jogamos cartas, pôquer apostado e tudo, ela é impulsiva, age sem defesa. Seria essa a responsável pela súbita apatia dos clientes?
2. O mago
Aldo, o feiticeiro, bebe que chora nas melhores noites da Taverna Bode Mágico. Poderoso senhor dos truques, ele vive tamborilando seus dedos nodosos na mesa de carvalho do estabelecimento. Seu negócio é a política e, andando sempre nas diagonais, vai fazendo a ponte entre a nobreza e a plebe, enriquecendo em todas as classes sociais. Deu para ter visões apocalípticas, situação que o coloca como suspeito. Os magos, não obstante, sempre serão acusados de trapaças; e roubar almas, coisa de alquimia negra e proibida há milênios, combina muito bem com Aldo e sua bata da cor da graúna. Agora é melhor calar, pois ele acabou de transformar um bardo chato numa rã asquerosa, a pele verde-morta como a de um defunto humano. Credo!!!
3. O anão e suas épicas canções
O pequeno personagem enche os pulmões de ar, bebe seus licores místicos e, sem escrúpulos, canta seus hinos épicos sobre guerreiros que venceram dragões e mitos sobre templários, santo graal e batalhas onde os anões derro tam o Senhor Sem Nome e passam a ser os fodões da porra toda. Nosso anão, por sua vez, mora na torre mais alta do Novo Mundo e, contemplando quase que toda a extensão da floresta escura, vai arquitetando seus planos de modo vertical.
4. O cavaleiro sombrio
Este é o principal candidato a ser o ladrão de almas, uma vez que, além de pertencer ao grupo racial dos homens, também é conhecido por suas batalhas contra feras, orcs, goblins e contra toda e qualquer figura que tente atravancar seu caminho. Mas ele, treinado pelos melhores guerreiros bardos, só ataca por meio de movimentos em L, assim escapando de seus algozes e atacando de surpresa. Apostaria minhas fichas que ele é o culpado pela atual turbulência da taverna.
5. A jornada
Os suspeitos começaram a brigar de modo incessante; cadeiras voavam, barris de cerveja amanteigada e vinho dos deuses eram furados. Eles pareciam criaturas possuídas pelo mal. Eu, em meu canto escondido, observava toda a balbúrdia ali, a bebericar meu rum dos piratas e a pensar em aventuras de outrora. Afinal, eu já não era tão novo, pormenor que me deixava mais tranquilo que o normal. O anão atacava com seu machado; a elfa ia dando socos potentes nos adversários; o mago lançava feitiços de cor magenta para todos os lados; o cavaleiro cortava o ar com sua espada incrustada de metais preciosos. No mais, enquanto os cretinos se matavam, eu ia pensando na origem da taberna, no dia que o velho de chapéu de feltro fincou, na terra molhada de sangue, a placa com o nome: Taverna Bode mágico. Foi aqui, entre cachimbos, anéis de fumaça e um bom hidromel, que criamos um idioma único para todas as raças: a língua do povo.
Enfim, após perceber que o anão estava morrendo no piso ladrilhado, o desgraçado sem parar de se debater como numa convulsão, eu resolvi interromper a luta.
“Amigos, há alguém controlando nossas almas, roubando nossa paz e dominando toda nossa vontade. Pensei que o responsável fosse um de vocês.”
O mago, o mais atilado de todos, logo compreendeu.
“O Rei Invisível está nos controlando. Vamos ao castelo cinzento, é lá que ele habita. A maioria de nós vai morrer.”
E assim iniciamos nossa jornada em busca do verdadeiro ladrão de almas, o Senhor Invisível, que tudo governa. Reza a lenda que este ser, antes de mergulhar nas trevas, era um homem comum, um dos bardos que fundou o até então estalajadeiro Bode mágico. Detalhes à parte, o fato é que derrotá-lo era praticamente impossível.
“Farão canções em nosso nome”, eu sugeri, e os outros riram para disfarçar o medo; até porque o caminho era longo e perigoso. Sem contar que eu, um mero homúnculo, era o mais fraco de nossa equipe.
No mais, abandonando a taverna com acenos para nossos amigos, fomos na direção da Floresta Turva. Lá, enfrentamos demônios, animais modificados, ogros colossais e espíritos da natureza. Um desses espectros encostou no braço esquerdo do anão, que, por sempre atacar na vertical, logo foi ferido. Morreu com o corpo necrosado.
Na manhã seguinte, sob o crocitar dos corvos, a elfa foi atingida por uma flecha. O tiro foi certeiro, no meio de sua cabeça; tudo isso porque ela gostava de andar sempre na frente do pelotão.
Mais uma baixa, eu disse secamente, e o mago aquiesceu piscando um olho. Até que fomos surpreendidos por uma luz forte e diáfana, um clarão cego. E dessa luminosidade emergiu um feiticeiro negro; este, sem conversa fiada, foi logo atacando Aldo, o mago. Os dois protagonizaram um duelo épico, desses que merecem poemas e tudo. Meia hora depois, quando ambos estavam fatigados, o bruxo do mal atingiu Aldo no peito com seu poder de raios perolados. Subitamente, ao confirmar a morte do rival, o feiticeiro desapareceu dentre as brumas. Como o poder do nosso mago só tinha alcance diagonal, uma hora ele iria fenecer.
Agora só restava o cavaleiro das trevas e eu. Nós prosseguimos nossa busca sem emitir palavra alguma, afinal, ele era silencioso como um mar profundo e traiçoeiro. Percebi que seu olhar enevoado de vez em quando focava em mim. De resto, voltando ao que importa, subimos o Morro dos Antigos Ursos e avistamos, ao longe, o castelo cinzento. Sem comunicação, mas unidos por um propósito, o cavaleiro e eu começamos a correr. Vários poderes de luz e flechas de veneno vinham em nossa direção. Consegui escapar por sorte, enquanto meu companheiro desviava das armas com seu estranho talento de se movimentar em L.
Então, ouvimos uma voz estrondosa cantando um hino de reinos antigos. Ela cantava usando a língua morta e antiga: o português. Quando chegamos perto desse timbre, o sobressalto foi grande. Tratava-se de uma linda mulher coroada e com olhos de fogo-fátuo.
“Sou a rainha”, ela se apresentou.
Com um estalar de dedos da mulher imponente, eu desmaiei no ato. Ao despertar, vi que o cavaleiro estava morto e, pior, segurava seu próprio coração arrancado. Dizem os livros épicos compilados em língua élfica imortal que o confronto entre eles foi memorável. Muita briga de espada e desvios. O diferencial foi o fato de a rainha conseguir se movimentar em quase todas as direções.
A Rainha, ansiosa por ver meu rosto, ordenou que eu tirasse o capuz negro que trajava. Ao ver que eu era uma aberração, mais especificamente um homúnculo, ela não disfarçou o espanto, o asco profundo. Em todo o caso, acabou suavizando as palavras:
“Agora, sim, você é um ladrão de almas. O Rei Invisível está lá no topo do castelo cinzento. Pode passar. Mas não olhe para trás.” Eu não olhei, pois sabia que isso significava morte.
Por fim, ao subir os 100 degraus de vidro do castelo, encontrei o rei apertado numa armadura prateada. “Gostei dos corpos, das oferendas que você trouxe para mim”, ele disse; e, batendo palmas, o Senhor Invisível me metamorfoseou num homem de verdade, um novo cavaleiro das trevas. Sim, eu enganei os leitores, pois eu fui o ladrão de almas. Feliz e confuso, eu, não mais homúnculo, agradeci ao Senhor Invisível e voltei para a Taverna Bode Mágico, pois é lá onde tudo começa e termina.