A Barda De Ébano

Fantasia
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Taverna Bode Mágico

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A Barda De Ébano
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— Muito obrigada, senhor! — disse a jovem de pele negra e cabelos cacheados compridos, fazendo uma reverência assim que ouviu o tilintar das moedas de cobre caindo umas sobre as outras.

Stellen era dona de um par de grandes olhos castanhos e lábios arredondados e carnudos que sempre carregavam um sorriso — mesmo quando ele não externava seus sentimentos. Era dona também de um belo alaúde feito de madeira avermelhada, mas já um tanto gasto pela ação do tempo. Quando não estava no colo de Stellen, sendo dedilhado e produzindo um som harmônico acompanhado da voz mezzo-soprano da jovem, descansava no estojo que naquele momento servia de depósito para as moedas doadas pelos transeuntes que passavam por ela na praça central da cidade de Gadrian.

Estava sentada sobre o parapeito de uma fonte, com as pernas cruzadas, exibindo um belo par de botas de couro que cobriam as pernas até os joelhos. Suas vestimentas, contudo, destoavam da elegância do seu calçado: um vestido marrom de linho um tanto amarrotado, delineado em sua cintura por um cordão de juta, e uma capa verde-escura que caía na diagonal por cima de seu ombro esquerdo, descendo pelo braço que usava para dedilhar o alaúde. Sobre a cabeça, uma pequena boina, também verde-escura, levemente inclinada para a direita, indicava que ela era uma barda.

Bardos eram músicos e trovadores que normalmente se apresentavam em praças e tavernas nas cidades e vilarejos, comumente reconhecidos por carregar um instrumento nos braços e uma boina na cabeça. O mais famoso dentre eles era chamado de Mestre Galdezan, que vivera em Gadrian séculos antes e que, além do grande talento para compor e executar canções, possuía o conhecimento da magia barda. Galdezan foi um herói na sua época, sendo motivo de inspiração para todos os jovens bardos que o sucederam.

A magia barda consistia em saber empunhar seu instrumento — fosse um alaúde, uma lira, uma flauta, um tamborete ou qualquer outro utilizado pelos bardos — e fazer ressoar melodias que se conectavam com a aura daqueles a quem a canção era direcionada. Dessa forma, era capaz de colocar um dragão para dormir, fazer uma pessoa se afeiçoar à outra, tornar o alvo temporariamente desprovido de seus sentidos ou até mesmo causar dores angustiantes nas entranhas de um inimigo. Contudo, sua execução era de extrema complexidade e difícil direcionamento, fazendo com que muitos dos aspirantes à magia barda acabassem causando efeitos contrários e em pessoas erradas.

Tal fato fez com que o reino proibisse o estudo desse tipo de força arcana. Quem fosse pego utilizando a magia barda era preso, perseguido ou até mesmo condenado à morte. Com o tempo, a proibição tornou o conhecimento dessa arte em algo tão raro quanto encontrar um dragão dourado vivo.

— Poxa vida, Stellen! Desse jeito vai ficar rica! — disse um rapaz de vestimentas vermelhas feitas de seda e boina na cabeça, carregando uma lira em sua mão esquerda. Era loiro, alto, de rosto esguio e bem-delineado. Claramente fazia parte da burguesia. Estava acompanhado de outro rapaz, também loiro, não tão alto, com roupas similares e uma rabeca presa em seu ombro por uma correia.

A jovem barda interrompeu a música que estava melodiando e olhou para o rapaz, com o mesmo sorriso de sempre, mas seus olhos diziam que tal sorriso era de desdém.

— Boa tarde, Rufo. Que os deuses te ouçam! — respondeu ela, e voltou a tocar o alaúde.

Rufo deu um leve chute no estojo do alaúde de Stellen postado no chão, a fim de espalhar um pouco mais as moedas que estavam dispostas lá.

— Quanto tem aqui? O equivalente a umas duas peças de prata?

— O que posso dizer? O povo adora minha música — retrucou, com sua notória ironia no tom de voz.

— Se isso realmente fosse verdade, você estaria em uma taverna, tocando por dez peças de prata por noite, como eu e o Franz aqui. Mas ninguém quer te ver num palco, não é?

Stellen fingiu não ouvir e continuou a dedilhar as cordas de seu instrumento. Vendo que não teve o efeito que esperava, Rufo a provocou mais uma vez.

— Então, o que sobra é tocar nas ruas, como uma mendiga, tal qual aquele seu tutor maluco! — Rufo e Franz riram debochadamente.

A garota respirou fundo, fechou os olhos e interrompeu mais uma vez sua música. Antes de olhar novamente para Rufo, exibiu um largo sorriso.

— Prefiro tocar para o povo em troca de uns poucos trocados a ficar sobre um palco entoando canções para um bando de bêbados e almofadinhas que sequer notam a presença do músico na taverna! De qualquer forma, obrigada por se preocupar comigo.

Rufo fungou com um risinho zombeteiro e abanou a cabeça.

— Não me entenda mal, Stellen... Faz sentido que uma plebeia como você não compreenda como funciona o cenário musical, mas tente colocar nessa sua cabecinha provinciana que tocar nas tabernas te faz um músico profissional! E lhe garanto: minha presença é muito notada pelo público. Não consigo nem contar quantas garotas me encaram enquanto entoo músicas como Vem me Esperar ou A Melancolia do Cancioneiro! Até as vejo suspirar! — terminou ele, com uma feição satisfeita e encarando o horizonte, como se lembrasse da visão que descrevera.

— Ou talvez elas estivessem segurando o riso, afinal, deve ser cômico ver um homenzarrão do seu tamanho tocando um instrumento feminino — retrucou Stellen, com um olhar travesso, tirando Rufo de seu transe. Sabia que o valentão gostava de se mostrar másculo sempre que possível, e qualquer ato que colocasse sua macheza em cheque o irritava profundamente. — De onde venho, não vemos problema algum em um homem dar vazão à sua feminilidade. Contudo, as pessoas desta região parecem achar graça desse tipo de situação.

O rapaz burguês começou a apresentar um rubor no rosto à medida que sua feição se fechava. Franz procurava segurar a risada diante da piada de Stellen.

— A lira é um instrumento belíssimo, que soa muito melhor que esse monte de madeira velha que você carrega nos braços! — esbravejou Rufo. — E outra: você nem sabe fazer os acordes corretos! Olhe as posições dos seus dedos! Digno de uma aberração!

Stellen conseguira o que queria: deixar Rufo fora de si. Sabendo que as ofensas proferidas por ele faziam parte de um acesso de raiva, não se deixou abater com elas e preparou seu golpe final.

— Rufo, diga-me: quando você e Franz executam O Duque e a Meretriz, você performa a parte da mocinha em apuros? Combinaria com seu instrumento!

Rufo se aproximou num rompante na direção de Stellen, mas foi segurado pelo braço por Franz.

— Deixe ela, Rufo! Vamos embora — disse o rapaz.

— Você é uma forasteira insolente mesmo, não é? — sibilou Rufo por entre os dentes. — Está muito longe de casa para querer se meter em encrenca!

Stellen se fez de indiferente e se voltou novamente à sua música.

— Adorei nosso papo, Rufo! Venha mais vezes para conversarmos.

Rufo mais uma vez se forçou para tentar atingir Stellen, mas Franz o segurou com mais força.

— Vamos, Rufo! — exclamou. Logo depois, baixou o tom de voz. — Tem pessoas olhando.

Eles não haviam notado, mas uma parte dos transeuntes havia parado para acompanhar a discussão, curiosos. Alguns inclusive riram do deboche da jovem para com o burguês. Algo que Rufo, cego de raiva, sequer havia reparado.

O rapaz olhou em volta, se pôs de forma ereta e fungou novamente.

— Tome. — Jogou uma mísera moeda de cobre dentro do estojo do alaúde de Stellen. — Não quero que morra de fome hoje, afinal, ainda quero te ver aqui amanhã, passando vergonha. — E então saiu, batendo os pés, seguido por Franz.

Depois que Rufo se afastou, a jovem olhou para trás, com pesar nos olhos, encarando uma das tavernas da área central de Gadrian. Apesar de seu orgulho e desenvoltura refutarem a ideia de tocar em uma taverna, era uma das coisas que seu coração mais desejava.

Stellen deixara sua cidade natal, a centenas de quilômetros ao norte de Gadrian, antes mesmo de atingir a adolescência. Estava determinada a realizar seu sonho de ser tão talentosa quanto seu ídolo, Mestre Galdezan, e poder ajudar seus pais, que viviam em situação de pobreza extrema.

A cidade de Gadrian era um grande centro cultural, cuja política encorajava o crescimento do cenário musical do reino — razão pela qual Stellen a escolheu como sua nova morada.

Contudo, ao chegar na cidade, Stellen percebeu que a realidade era muito mais cruel do que ela imaginava ser. Viveu na rua por semanas, pedindo esmolas e tocando seu velho e judiado alaúde para tentar chamar a atenção de algum habitante. Um elfo idoso e cego a encontrou por acaso durante uma de suas caminhadas, tendo sua atenção desviada à menina quando ouviu-a assobiando a melodia de O Canto das Tormentas, uma canção amplamente conhecida em todos os seis reinos. Era bonito, suave, afinado e melancólico.

— Menina assobia como um passarinho, mas toca como um elefante. Passarinho quer aprender a tocar também? O Maestro pode lhe ensinar! — disse ele ao se aproximar de Stellen. A jovem prontamente rejeitou, tomando o velho como louco. Como poderia um cego saber tocar um instrumento?

Dias depois, o tal Maestro levou seu alaúde para a praça, sentou-se no parapeito de um estábulo e começou a percorrer os dedos pelas cordas do instrumento, produzindo um som que atraiu Stellen como um imã atrai um punhado de pregos. A música soava tal qual sua imaginação acreditava que eram as canções de Mestre Galdezan. Desde aquele momento, ela aceitou viver e crescer junto ao Maestro, que a ensinou a arte da música dos bardos.

Passaram-se cinco anos desde então, e, mesmo Stellen tendo adquirido muito conhecimento com o Maestro — mais do que muitos bardos profissionais sonhariam em aprender —, ainda lhe faltava algo para chamar a atenção dos espectadores de Gadrian. Maestro sempre dizia a ela que o dinheiro e a fama não eram importantes, mas sim a forma como o bardo se conecta com a música. No começo, Stellen se irritava com tais sermões — dizia que o dinheiro que trazia comida à mesa —, mas agora ela sentia falta deles. Cerca de meio ano antes, o Maestro falecera, deixando a ela a humilde cabana onde moravam, seu antigo alaúde de madeira rubra e um legado de canções antiquíssimas, que utilizavam acordes já desconhecidos pelos bardos contemporâneos.


No dia seguinte ao episódio com Rufo, Stellen estava novamente sentada no parapeito da fonte da praça central, apresentando seus números musicais. Um homem baixo, bem-trajado, com um vasto bigode escuro e um chapéu de topo arredondado, chegou próximo a ela e depositou duas moedas de bronze e uma de prata no estojo do alaúde. Era quase o valor total do que havia ganhado no dia anterior, e ainda não fazia muito tempo desde o horário do almoço.

Os olhos dela brilharam ao ver as moedas, e Stellen ergueu o rosto para agradecer ao homem. Apresentou seu melhor sorriso e recebeu um risinho em retorno.

— Muito obrigada, senhor — disse ela, fazendo uma grande reverência.

Aproveitando que a canção havia sido interrompida, o senhor de olhos pequenos e espremidos se sentou ao lado de Stellen e cruzou as pernas, repousando as mãos sobre o joelho.

— Como se chama, mocinha?

— Stellen, senhor — respondeu, fazendo um gesto de apresentação com os braços.

— Muito prazer em conhecê-la, Stellen! — disse o homem, sorridente. — Diga-me uma coisa, menina: a senhorita estava cantando e tocando aqui ontem à tarde, neste mesmo lugar, não é mesmo?

— Sim, senhor. Estou aqui quase todos os dias. — Ela o olhava com ternura, mas por dentro estava desconfiada. Nunca um espectador havia se interessado tanto nela a ponto de perguntar seu nome.

— Ah... Muito bom! — Ficou em silêncio por um momento, sob a mira do olhar curioso de Stellen. Então, suspirou e continuou: — Foi a senhorita que também enfrentou um rapaz de família nobre e o fez passar vergonha na frente das pessoas que passavam por aqui, certo?

O coração de Stellen congelou e seu sempre presente sorriso se desfez por um momento. Os olhos se arregalaram e a pele escura ficou levemente ruborizada. Sabia que a família de Rufo era tradicional na cidade e temeu que estivesse em apuros por conta do que fizera no dia anterior. Contudo, não viu razões para mentir.

— Fui eu, sim, senhor. Ele veio me provocar, e apenas reagi.

O baixinho deu uma risada que parecia tentar ser contida, mas que acabou escapando.

— Não se preocupe, mocinha. Não há necessidade de se justificar. Conheço bem esse tipo de almofadinha. Mas diga-me outra coisa: por acaso a senhorita já tocou em alguma taverna?

— Não, senhor — bastou-se a responder, com uma sobrancelha erguida, tentando desvendar quais eram as intenções daquele desconhecido.

Ele abriu a boca, deu uma longa inspirada de ar e olhou bem nos olhos da jovem, balançando o indicador na direção dela.

— Vamos ao que interessa, menina Stellen: gostei da sua voz e do seu dedilhar, mas gostei mais ainda de como você se virou com aquele moleque riquinho. Gosto de pessoas de atitude, que demonstram ter sangue correndo nas veias! E isso que me chamou a atenção em você. Sabe, eu tenho uma taverna aqui em Gadrian. Não é muito grande... Na verdade, é bem humilde, mas bem movimentada. Fica a três quadras naquela direção — disse, apontando para uma rua à direita deles. — Diga-me: a senhorita teria interesse em apresentar sua música lá hoje à noite?

“É o que eu mais quero no mundo!", Stellen gostaria de dizer, enquanto pularia em círculos ao redor do homem. Mas não queria parecer infantil ou desesperada pela oportunidade, então manteve-se serena e respondeu quase com indiferença.

— Aceitaria de bom grado, senhor. — E deixou escapar um sorriso no fim da frase.

— Ótimo! — exclamou o homem, dando um tapinha nos joelhos antes de se levantar. — Aguardarei a senhorita assim que o sol se pôr! A taverna se chama “Bode Mágico”.

Bode Mágico?, pensou ela, segurando o riso. Ainda assim, era melhor do que qualquer outra oportunidade que já tivera.

— Estarei lá, senhor...? — disse, esticando o braço para cumprimentá-lo e dando a entender que esperava receber como resposta o nome de seu benfeitor.

— Schwalz, senhorita. Francis Schwalz. — Terminou a frase tirando o chapéu, em sinal de reverência, exibindo a cabeça calva, lisa e brilhante como uma pérola. — Ah! Esqueci de dizer... Como falei, minha taverna é humilde, logo não tenho condições de pagar pelo músico da noite. Mas toda gorjeta que a senhorita receber é integralmente sua!

Saber que não seria paga esfriou um pouco da empolgação de Stellen, mas ela não deixou isso transparecer.

— Sem problemas, senhor Schwalz. Até a noite!

— Até! — finalizou, dando um rápido aceno.

Quando o taverneiro saiu do campo de visão de Stellen, ela abriu um vasto sorriso, colocou as moedas no bolso, guardou seu alaúde e saiu correndo. Ainda era cedo para voltar para casa, mas queria se aprontar o melhor possível para a apresentação à noite.

Estava a poucos passos de sair do perímetro da praça central quando recebeu um encontrão. Girou no próprio eixo e caiu sentada no chão, com o estojo do alaúde caindo em seu colo.

— Você deveria olhar por onde anda, Stellen. A praça está cheia de pessoas, não deveria andar com tanta pressa!

A voz era conhecida. Rufo. Ele chegou a esticar a mão para ajudá-la a se levantar, mas, quando Stellen tentou alcançá-la, ele a recolheu.

— Muito engraçado, Rufo! Você entrou na minha frente! Eu teria visto caso você estivesse parado — retrucou ela, irritada, se levantando e batendo no vestido com as mãos, para limpar a sujeira do chão.

— Você me ofende se pensa que eu poderia ser capaz de ato tão vil! Jamais machucaria uma dama — disse ele, em tom debochado.

Stellen percebeu que ele estava carregando, no lugar da lira, um belíssimo alaúde de madeira avermelhada, tal qual era o dela, mas envernizado num tom vinho e com trastes e tarraxas douradas. Com certeza pagara muito caro por ele. A jovem deu um sorriso de canto de boca e apontou para o alaúde.

— Ficou tão chateado por eu ter caçoado de sua lira que resolveu trocar de instrumento?

Ele respirou fundo e deu riso zombeteiro.

— Ah, minha cara... Se acha que esse tipo de atitude irá me atingir, ficará decepcionada! Seu pensamento sobre a lira apenas expõe sua ignorância musical. Um verdadeiro bardo sabe tocar qualquer instrumento com maestria. Hoje, me apresentarei com o alaúde. Amanhã, talvez use uma flauta doce, ou até mesmo um saltério.

A jovem revirou os olhos, deu as costas para Rufo e continuou a caminhar na direção de sua casa.

— Está indo embora cedo hoje — continuou Rufo, aumentando o tom de voz para ser ouvido. — Finalmente percebeu que não tem talento o suficiente e resolveu buscar outras formas de sustento?

Stellen parou e olhou por cima do ombro, retirando os cabelos encaracolados da frente do rosto.

— Vou para casa me preparar para a noite. Irei tocar em uma taverna. — E terminou com um sorriso malicioso.

Rufo ficou pasmo por um segundo, e então se recompôs.

— Rá! Boa, essa... Quase me enganou!

— Pois então vá até a Bode Mágico hoje. Será bom ter na plateia alguém conhecido. — Virou-se novamente e voltou a caminhar para casa, sem olhar para trás.


Ao chegar na cabana, Stellen correu para o quarto e começou a revirar suas roupas. Escolheu o seu mais belo vestido, feito de linho e tingido de um azul vivo, com pequenos brilhantes no colo e na cintura. Vestiu as botas de couro e se dirigiu até o espelho, onde passou a trabalhar nos vastos cabelos escuros e encaracolados. Prendeu-os num coque, deixando alguns cachos caírem ao lado das orelhas e do lado direito da franja. Por fim, repousou uma boina preta sobre a cabeça, como se fosse a confirmação que ela era realmente uma barda. Queria ter alguém para perguntar se estava bonita, mas o único amigo que Stellen chegou a ter desde que chegara a Gadrian não estava mais na terra dos vivos — e, mesmo que estivesse, não possuía visão.

A luz do sol já havia se escondido nas costas dos montes à oeste da cidade quando Stellen, esbaforida, adentrou a taverna. Estava visivelmente tensa — sabia que era sua melhor oportunidade desde que chegara a Gadrian, e não queria decepcionar.

— Ah, aí está a estrela da noite! — exclamou o senhor Schwalz, assim que bateu os olhos na jovem. Ela quase que instantaneamente desfez o semblante fechado e abriu um sorriso verdadeiro ao dono da Bode Mágico.

— Muito boa noite, senhor Schwalz! — devolveu a jovem, segurando a barra do vestido e fazendo uma reverência.

— Pode se preparar e começar assim que estiver pronta, mocinha. — E apontou para o humilde tablado de madeira, de iluminação fraca, postado no canto do balcão da taverna.

— ... Começar? — questionou ela, olhando para o salão. A grande maioria das mesas ainda estava vazia e o palco parecia bem afastado da área onde havia mais pessoas. — Mas não há muitos clientes ainda...

— Bom, vamos torcer para que sua música chame mais clientes para cá, não? — respondeu, esfregando as mãos e se afastando da garota.

A decepção e o nervosismo tomaram conta de Stellen. A pressão de ser responsável pelo entretenimento dos que ali estavam e ainda tentar chamar os transeuntes para dentro da taverna atingiram-na como uma grande e sólida rocha. Começou a pensar se o Maestro não tinha razão em tentar sempre desencorajá-la a se apresentar em uma taverna.

Colocou timidamente o estojo do alaúde do lado de um banquinho de madeira que se postava no centro do tablado e retirou seu instrumento. Uma das tarraxas do alaúde enroscou na aba de seu vestido e ela teve dificuldades de desatrelar. Puxou uma, duas, três vezes, até que a ponta do vestido se rasgou e o alaúde foi ao chão, fazendo ecoar pela taverna um barulho estridente e chamando a atenção de todos os clientes, bem como do taverneiro e dos atendentes.

Stellen enrubesceu, pegou o alaúde e o examinou, esperando que não tivesse quebrado ou trincado. Por sorte, nada de mais acontecera.

— Bo... Boa noite — disse, gaguejando e com voz fraca. Os clientes tornaram a não dar atenção a ela.

Vamos, Stellen! Você é melhor que isso!, disse a si mesma. Respirou fundo, fechou os olhos e deu seu primeiro acorde.

A música tinha o poder de levar Stellen a outra dimensão. Dessa forma, ela esqueceu de tudo que havia acontecido e exibiu 12 canções de seu repertório, sem parar. Sua voz casou perfeitamente com o dedilhado, preenchendo o vazio da taverna com a harmonia que somente um bardo conseguiria gerar.

Contudo, ela não pareceu causar uma boa impressão. Poucas pessoas entraram na Bode Mágico durante sua apresentação e, dos que estavam presentes, visualizou apenas dois ou três prestando atenção nas canções. Poderia jurar que viu um homem bêbado chorar ao som de A Última Noite de Lua Cheia, mas não havia como ter certeza que fora sua música que o tocou ou se o motivo era outro. No fim, despediu-se timidamente e guardou o alaúde, segurando as lágrimas de decepção.

Ouviu palmas se aproximando e ergueu a cabeça. Era o senhor Schwalz, com um sorriso amarelo.

— Foi muito bom, mocinha.

— Foi mesmo, senhor? — perguntou de forma irônica, sem conseguir disfarçar o descontentamento. — Ninguém sequer me olhou, cantou junto ou pareceu ter qualquer envolvimento com as canções. Estou saindo daqui com as mesmas míseras dez moedas de cobre com que entrei!

— Olha, menina... — disse o homem cautelosamente. — Não veja maldade nas minhas palavras, mas te falta algo. Sua voz é tocante, a forma com que maneja o alaúde é belíssima, mas um bardo não é feito só de música. Ele precisa saber se vender, se apresentar e tomar a atenção de seus espectadores para que eles reparem no que está sendo tocado.

— Como assim? — questionou ela, confusa.

— Não sou especialista em música, minha jovem, mas sei como funciona uma taverna. Um bardo só consegue envolver a clientela se souber se portar como um verdadeiro artista! Precisa saber se apresentar, cumprimentar o público, encenar as canções e instigar os visitantes a cantar junto!

Stellen então lembrou de uma frase que o Maestro repetia com frequência: “Tavernas existem há mais de dois mil anos, e quem vai nesses lugares está mais preocupado em julgar os trajes e os penteados do que a aura da canção.”

Percebendo a feição de desânimo de Stellen, ele continuou, com ar paterno:

— Mocinha... a senhorita ainda é nova, começou nessa vida há pouco tempo... Conforme os anos passarem, você ganhará experiência e aprenderá como se portar.

Stellen franziu o cenho e, determinada, encarou o senhor Schwalz.

— O senhor me permite tocar mais duas ou três músicas? Quero mostrar que sou capaz de me apresentar melhor.

O taverneiro sorriu ao encarar o semblante decidido da menina e assentiu.

— Mas é claro. — Ele, então, se virou para sua modesta clientela e exclamou a plenos pulmões: — Meus caros, mais um pouco de Stellen, nossa Barda de Ébano!

A jovem sorriu, apreciando o título que Schwalz havia concedido a ela, e rumou para o palco. Contudo, foi interrompida por um sonoro chamado.

— Espere, senhor Schwalz! Tenho uma proposta melhor!

Assim que Stellen se virou, seus olhos arderam em fúria. Rufo estava de pé em uma cadeira, com o alaúde em mãos, empostando a voz de forma poderosa.

— Permita-me me apresentar antes de sua “Barda de Ébano” — repetiu com desdém —, para ensiná-la como um bardo de verdade se porta!

O dono da taverna o encarou de forma dura e planejava um sermão, mas um dos clientes se ergueu na mesa e gritou a plenos pulmões:

— Batalha!

Outros se ergueram e repetiram o brado: “Batalha!”

Uma das tradições da região de Gadrian acerca dos bardos era que, caso dois ou mais bardos disputassem o mesmo local de apresentação — fosse ele uma taverna, uma casa de concertos ou até mesmo uma área na praça central —, o povo poderia clamar por uma batalha musical, onde os bardos em questão se apresentariam da melhor forma que pudessem, até que um deles desistisse ou então que os presentes escolhessem um vencedor. Quem fosse derrotado deveria deixar o local e nunca mais clamá-lo para si.

Stellen arregalou os olhos e sentiu a boca secar. Nunca havia estado em uma batalha entre bardos antes, e sabia do potencial de Rufo. Uma derrota seria a última pá de terra no túmulo do sonho de ser reconhecida como uma grande musicista. Ela fitou os olhos no rapaz loiro, que parecia meio desconcertado, e o medo aos poucos se esvaiu. Aquela, sim, era a sua melhor oportunidade: vencer um músico de família tradicional num embate musical seria a garantia de ter um lugar cativo, ao menos, na Bode Mágico, e o boca a boca a deixaria mais famosa do que nunca.

— Pois bem, Rufo — começou, agachando-se e abrindo o estojo do alaúde. — Vamos lá.

— Você sabe que tenho mais técnica, não é? — provocou o burguês. — Essa sua forma esquisita de fazer os acordes não se compara à forma correta de se tocar! Tem certeza que quer passar por isso?

— Qual o problema, meu caro? — devolveu ela. — Por que quer que eu desista? Está com medo de fazer fiasco na frente da clientela?

Após os gritos de “batalha”, mais pessoas adentraram a taverna, esperando ver um espetáculo. Rufo encarou todos eles, meio encabulado, mas o orgulho falou mais alto e ele saltou da cadeira, repousando no chão com a altivez de alguém que possui o sangue das famílias mais abastadas. Deu o primeiro acorde e passou a dedilhar, fazendo arpejos e escalas cromáticas, abusando da técnica musical que possuía.

Em resposta, Stellen puxou da memória as canções que o Maestro a ensinara, com seus acordes raros e dedilhado frenético. Passava de uma canção à outra como se fossem uma só, aproveitando seu talento nato para captar em que momento os tons se casavam.

A batalha se estendeu pelos próximos minutos, com ambos alternando suas técnicas em curtos espaços de tempo, à medida que o público vibrava ao final de cada parcial. Rufo estava suando, tentando exibir cada vez mais controle e velocidade na sua tocada, enquanto Stellen o encarava com firmeza durante a execução de sua apresentação erudita.

Estavam tão compenetrados no embate que ninguém notou os fios de luz começaram a emanar dos dedos de Stellen, unindo-se às cordas do alaúde como se fossem teias de aranha. O instrumento começou a emitir uma aura azulada, fraca e opaca, mas a intensidade com que a jovem aplicava seu conhecimento musical passou a fazer aquela energia latente aumentar. Sem nenhum indício prévio, uma onda sônica foi lançada contra Rufo, tendo o alaúde de Stellen como epicentro. O rapaz foi lançado para trás, derrubando cadeiras, mesas, canecas e pessoas. O instrumento de Rufo se partiu no meio, e suas roupas se rasgaram como se tivessem sido esfregadas em um conjunto de navalhas.

Stellen olhou para as próprias mãos, apavorada, e um silêncio tomou conta do local por alguns segundos.

— Pelos deuses! — exclamou o senhor Schwalz, cujos pequenos olhos pareciam quase saltar para fora do rosto.

Vários dos presentes começaram a ovacionar Stellen, enquanto outros a fitavam com notório medo. Uma menor parte correu para fora da taverna.

A jovem então entendeu o que o Maestro queria dizer com a necessidade do bardo se conectar com a música. Os acordes peculiares, a forma diferente de dedilhar e a estrutura das canções que o velho elfo a ensinara faziam parte de uma arte barda muito mais antiga que a música em si — ele estava ensinando-a a usar magia.

Como se acordasse de um pesadelo, Stellen se dirigiu ao dono da taverna, ainda com o alaúde em mãos.

— Mil perdões, senhor Schwalz! Eu não sabia que isso ia acontecer! Eu não sabia que podia fazer isso! Eu...

Antes que pudesse continuar a se explicar, o velho careca explodiu em gargalhadas.

— Essa é com certeza a coisa mais impressionante que já aconteceu dentro desta taverna, minha cara! — exclamou, batendo palmas.

— À Barda de Ébano! — gritou um homem, erguendo um caneco de chope para o alto, sendo seguido por um bom grupo de clientes.

Stellen abriu um largo sorriso, mas então fitou Rufo — erguendo-se de forma trôpega, com a mão na nuca — e lembrou-se que a magia barda era proibida no reino. Voltou a sentir o coração bater na garganta e segurou nos ombros do senhor Schwalz.

— Eu preciso ir! Eles irão me pegar!

O taverneiro ainda estava sorrindo, mas fechou o semblante após notar o desespero da menina.

— Venha comigo, mocinha.

O dono da Bode Mágico a guiou pelos corredores do fundo da taverna e abriu uma porta que dava para um beco, onde uma escadaria levava para a parte alta da cidade de Gadrian. 

— Infelizmente, sua façanha de hoje logo estará nos ouvidos dos soldados reais, mas esse caminho deve lhe dar uma vantagem. — Ele buscou no bolso do paletó algumas moedas de prata e as colocou na mão de Stellen. — Aqui, minha jovem. Isso vai te ajudar.

Chorosa, a barda abraçou e agradeceu veementemente o senhor Schwalz. O homem deu tapinhas nas costas de Stellen e depois ergueu o queixo dela.

— Você tem um talento e tanto, Barda de Ébano! Não deixe que esse episódio te afete.

Stellen assentiu e correu pelo beco, subindo as escadas com velocidade. Queria chegar logo à cabana do Maestro e pegar seus poucos pertences, para então partir para algum lugar onde sua nova fama não a alcançasse. Estava apavorada, preocupada com o futuro, mas um pensamento tirou dela um sorriso que a carregaria para o resto da vida: ao lançar Rufo contra aquela mesa apenas com a força arcana de sua música, ela, enfim, havia realizado uma parte do seu sonho. Ela havia se igualado a Mestre Galdezan.


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