Segunda Chance

Fantasia
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Miguel Dracul

Autor
Autora
Organizador
Organizadora
Autor e Organizador
Autora e Organizadora
Editor
Editora
Ilustrador
Ilustradora
‘‘A morte destrói um homem: a ideia da morte salva-o.’’—Edward Forster

Conquista Literária
Conto publicado em
Taverna Bode Mágico

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Segunda Chance
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Destiny não parou de correr até ficar exausto. Evitou instintivamente as câmeras de segurança espalhadas por toda a cidade, esgueirando-se por trechos pouco iluminados. Pressionou suas costas contra os tijolos frios que formavam um beco, arfando, sua respiração descompassada pelo esforço físico e a adrenalina. Fechou os olhos e tentou recuperar o fôlego enquanto assimilava a seriedade de sua situação. Estava enrascado... muito enrascado. Talvez outras pessoas no seu lugar sentissem medo, ou até mesmo chorassem pelo desespero, mas ele estava com raiva. Revoltado porque, mais uma vez, sua vida seria posta em risco pela cobiça de um homem poderoso. Olhou para baixo, a camiseta branca, cor que raramente usava, molhada de suor e, assim como suas mãos, manchada de sangue.

***

Deodora tocou no dispositivo de comunicação instalado ao lado de sua cama e disse o comando em voz alta:

— Aceitar ligação.

Estava tentando crescer no escritório, e para ser bem-sucedida nisso precisava estar pronta para resolver emergências em horários pouco ortodoxos. Sua mente imergiu no cenário de comunicação. Com um segundo de atraso, lembrou-se de ativar seu avatar profissional para que quem quer que estivesse tentando falar com ela às duas da madrugada não a visse de pijama.

— Deodora, boa noite — disse um homem de terno, dono de um olhar frio e um rosto belo mas marcado pela idade.

— Boa noite, senhor Silvervarg. — Tentou segurar o bocejo. — O que posso fazer pelo senhor?

— Você está familiarizada com o caso Houltslang? — inquiriu sem transparecer qualquer emoção.

— Sim, eu conheço o caso.

Deodora se lembrava do processo; não trabalhara nele, mas havia sido uma das vitórias prodigiosas da firma. Um garoto havia sido acusado de assassinar o padrasto. A vítima não tinha nenhum antecedente, o acusado era filho de uma mãe viciada e negligente, e, embora nenhuma queixa formal tivesse sido prestada contra ele antes disso, o menino tinha fama de briguento. Devia ser bom de briga, já que ninguém ousou testemunhar comprovando agressões.

Seria só outro moleque da parte ruim da cidade indo para um reformatório ou até mesmo pegando uma sentença mais severa, no entanto, o acusado aparentemente era protegido de algum figurão internacional, cliente da firma onde Deodora advogava. Silvervarg e Associados assumiu a defesa do jovem Destiny pro bono, sem que nenhum nome externo à empresa fosse associado a essa iniciativa. Conseguiu que as acusações fossem retiradas por falta de provas, além de manter o caso todo sob o máximo de sigilo, resguardando a identidade e integridade do jovem acusado, que não teria seu futuro afetado de maneira alguma pela situação.

— O garoto está em uma situação problemática. Eu quero que você o busque, mantenha-o seguro e o interrogue sobre os acontecimentos recentes.

— Devo levá-lo para o escritório? — O avatar de Deodora se movimentava dentro da simulação virtual do diálogo, replicando os movimentos que a advogada fazia em seu quarto ao se vestir apressadamente.

— Não. Seu carro receberá as coordenadas de uma casa segura, e um de nossos consultores os estará aguardando. Este é um caso especial.

Deodora parou por alguns segundos, boquiaberta. Esse era o momento que havia esperado. Quando algum dos sócios falava sobre casos especiais, isso queria dizer clientes grandes e trabalhos perigosos, mas também muito bem-remunerados e que a colocariam no radar dos chefes. Eram casos que envolviam as raras forças místicas que existiam em seu mundo e que serviam propósitos de filiais e sócios em outras dimensões.

— Eu compreendo, senhor. Esteja certo de que suas ordens serão cumpridas com excelência — assegurou, voltando-se para Silvervarg.

— É o que espero. Boa noite.

O homem nem mesmo esperou Deodora responder à despedida antes de encerrar a ligação, fazendo-a subitamente voltar a enxergar apenas o próprio quarto, já fora da simulação de escritório produzida pela chamada. Deodora prendeu seu cabelo escuro em um rabo de cavalo e calçou os saltos ao entrar no carro.

O mapa holográfico que se elevava no painel mostrava a área onde deveria procurar pelo garoto. Ao lado do mapa, girava uma imagem tridimensional de seu cliente. Seu primeiro pensamento foi de que o jovem era muito bonito. Enquanto o piloto automático lançava o automóvel na cidade, Deodora revisava a lista de suas ambições, certa de que naquela noite estaria um passo mais perto de alcançá-las.

***

Destiny respirou fundo, se forçando a raciocinar. Tocou o botão metálico em sua têmpora buscando instintivamente ativar seu Konmax, mas imediatamente retraiu os dedos. Se já estivessem buscando por ele, isso apenas facilitaria para a polícia.

Assumiu que, com Vermont morto, seus capangas não seriam as pessoas a procurar por ele. Talvez seria melhor se fossem. Eles provavelmente o matariam rapidamente. Se ele fosse para a cadeia, seriam anos de sofrimento enjaulado. Uma voz escarnecida sussurrou em sua mente: “Você sabe o que fazem na prisão com garotos bonitos como você?” Tremendo ansiosamente, Destiny vomitou no chão do beco. Foi surpreendido pelos faróis de um carro, que iluminaram seu rosto suado e assustado.

Em seu estado atual, era pouco provável que escapasse dali com charme. Cerrou os punhos esperando pelo pior. As luzes do automóvel baixaram, e dele saiu uma mulher branca: não parecia ter mais de 30 anos, cabelos escuros presos em um rabo de cavalo, vestindo um terno que certamente havia sido feito sob medida.

— Destiny? Eu estou aqui para ajudar; meu nome é Deodora.

Destiny a encarou. Precisava pensar rápido; com luz e movimentação, as câmeras de vigilância móveis logo seriam atraídas para onde eles estavam.

— Quem mandou você? — Era possível que algum rival de Vermont já soubesse o que havia acontecido?

— Silvervarg e Associados. Nossa firma já o representou anteriormente, e eu fui enviada pessoalmente para garantir sua segurança e orientação. Câmeras já captaram seu movimento pela cidade nesta noite, então preciso que você me acompanhe e entre no carro.

— Qual é o seu número de cadastro? — o garoto questionou, aproximando-se cautelosamente e mantendo o punho direito preparado para um avanço físico ao mesmo tempo que acionava o dispositivo em sua têmpora com a mão esquerda.

— 40.S90T-3002K — Deodora respondeu de pronto. Em seguida, recebeu uma notificação em seu computador de pulso: uma transferência no valor de três créditos no nome de Destiny Houltslang havia sido feita em sua conta. — O que você...?

— Essa é minha garantia. Nós temos um contrato, e legalmente você não pode me entregar. Eu sou seu cliente. — Se já havia sido visto, não fazia diferença ter seu dispositivo ligado por um momento. Sendo assim, Destiny inseriu o cadastro da advogada em uma pesquisa na base de dados apropriada, encontrando sua conta bancária. Valendo-se de uma brecha nas leis atuais do estado onde viviam, usou a transferência feita como possível comprovante de seu laço legal. Em seguida, desligou seu dispositivo e disse: — Agora, nós podemos ir.

***

— Qual foi a primeira coisa que você notou nele? — Fátima perguntou, displicente.

Ela e Deodora estavam em uma cozinha bonita, em uma das casas usadas pela firma quando precisavam manter clientes afastados do olhar público. Deodora preparava um sanduiche, na esperança de conquistar alguma confiança da parte de Destiny.

Depois de conseguir fazê-lo entrar no carro, o garoto não havia dito mais nenhuma palavra. Ao chegar no endereço, sugeriu que ele tomasse um banho e trocasse de roupa. Isso o rapaz acatou imediatamente, sem qualquer oposição.

— Ele é inteligente. Parecia desesperado quando o encontrei, mas no segundo em que me viu conseguiu ocultar isso, falou com clareza e usou o que sabia das leis a seu favor.

— Esta foi a primeira coisa que você notou? — Fátima questionou, pouco convencida, levantando uma sobrancelha.

Fátima tinha a pele escura e os longos cabelos presos em uma trança que lhe ia até a cintura. Era uma consultora para casos especiais na firma — então não partilhava do estilo empresarial de Deodora —, vestindo uma calça larga de algodão, uma camisa rústica do mesmo tecido e um sari por cima desta. Fátima era uma telepata de competência impressionante, então era muito comum que fosse chamada quando entrevistavam clientes ou quando queriam se certificar sobre o que jurados pensavam acerca de algum caso. Deodora considerou que, se Fátima quisesse saber o que ela achara do garoto, não haveria como esconder, e corrigiu sua resposta:

— Ele é bonito. Muito bonito.

— Você se lembra da época que as pessoas tinham televisões? Ele parece a mistura de um cantor de rock com um ator daquela época. Não admira ter escapado das acusações anteriores — pontuou.

— Você trabalhou no caso dele?

— Não, mas todo mundo na empresa ouviu sobre, logo... — disse com um gesto sugestivo apontando para a própria cabeça.

— Claro...

— Não se preocupe, eu não fico bisbilhotando a vida pessoal dos outros. Além disso, para acessar suas memórias eu precisaria chegar mais perto — Fátima confidenciou, com um sorriso. — Esse menino ainda está no banho?

A pergunta de Fátima foi respondida imediatamente com Destiny entrando na cozinha e soltando um tímido “Ei!”. Limpo e sob a luz, ele parecia ter menos do que seus 16 anos de idade. As roupas emprestadas haviam ficado um pouco largas em seu corpo magro mas claramente forte: escolhera vestir um jeans e camiseta escuros que contrastavam com sua pele branca. Os olhos azuis faiscavam entre os cabelos pretos que ainda pingavam gotas de água.

— Você deve estar com fome — sugeriu Deodora, oferecendo-lhe o sanduiche e o suco.

— Obrigado — Destiny respondeu, conciso, puxando a refeição para mais perto mas a olhando com desconfiança, sem se atrever a comer.

— Acredito que você esteja ansioso para descansar. Nós iremos contatar sua mãe para que ela saiba que você está seguro, mas antes que você durma eu preciso que me diga exatamente o que houve hoje à noite. Você pode fazer isso?

— Eu posso confiar nela? — Destiny inquiriu, indicando Fátima com a cabeça.

— Fátima trabalha com nossa firma, ela é de total confiança — afirmou, em seguida lapidando a própria pergunta. — Comece me explicando qual é seu envolvimento com Adalberto Vermont e por que você, um menor de idade, estava em uma das casas noturnas dele.

— Eu e o filho adotivo dele, Noran, estudamos na mesma escola. Ele me apresentou o Vermont. Ele parecia ser um cara legal, me deu presentes, me deixava beber e comer de graça, qualquer coisa que eu quisesse, mas aí.... Acho que eu não tinha entendido o que ele esperava que eu fizesse por essas coisas. — Destiny admitiu, encarando o prato a sua frente, incapaz de nomear o que sentia naquele momento.

Deodora ouviu com atenção, tentando manter uma postura receptiva, mas sem se deixar levar. Clientes mentem o tempo todo; se o garoto fosse metade do que diziam, não seria surpresa que tentasse manipulá-la.

— Eu disse para ele parar, que eu não queria, mas ele insistiu. Eu... eu acho que o matei. — Destiny engoliu em seco, encarando o chão. Suas mãos tremiam.

Adalberto Vermont era um dos homens mais ricos do país, dono de diversas casas noturnas que serviam como negócio de fachada para prostituição e tráfico internacional de drogas. Todos sabiam disso, inclusive a polícia, a qual, diante de um pagamento aceitável, se mostrava pouco interessada em provar tais crimes.

Se realmente o havia matado, o garoto acabara de colocar em si mesmo um alvo grande e vermelho. Deodora olhou para o Konmax na têmpora de Destiny. Mesmo desligado, o aparelho poderia ser rastreado; infelizmente o modelo, diferentemente de sua pulseira, era parte do dono, e não poderia ser retirado senão por uma demorada e perigosa cirurgia. Teria de confiar que estariam seguros escondidos naquela casa, até que pudessem ir ao escritório.

Fátima se aproximou com um copo de água, falando com voz mansa:

— Nós vamos cuidar de você. Beba água e tente descansar; vai ficar tudo bem — assegurou, entregando o copo para o jovem e segurando sua mão.

Deodora observou, ciente de que Fátima precisava do contato físico para se aprofundar na mente do menino. Só um instante seria o suficiente. Saberia do passado dele, veria o que ele passou com os próprios olhos e poderia atestar a veracidade do relato. Mas quando Fátima o tocou e Destiny se afastou por reflexo, derrubando o copo no chão e estilhaçando-o, Deodora teve certeza: o garoto não estava mentindo.


***


Fátima cobriu o rosto com as mãos e abaixou a cabeça. Deodora se perguntou se a outra mulher estava chorando; jamais a havia visto assim. Destiny havia ido para o quarto, e agora a telepata deveria partilhar suas descobertas com a advogada, mas aparentemente faria isso em seu próprio tempo. De súbito a viu levantar-se e se servir de uísque, cuja garrafa repousava na mesa de centro da sala. Tomou todo o copo em um gole só, respirou fundo e depois de alguns segundos encarando a parede silenciosamente deu ordens a seu dispositivo móvel, um conjunto de quatro anéis dourados que usava na mão direita:

— Iniciar protocolo, reportar caso Houltslang v.2, finalizar atualização de relatório. Envio de prioridade 01 para Silvervarg_sócios_majoritários um, dois e três. Incluir alerta de urgência.

Deodora decidiu intervir:

— O que você viu, Fátima?

Levantando-se e começando a andar nervosamente pela sala, abraçando a si mesma, Fátima respondeu:

— Esse garoto é perigoso.

— O que você quer dizer?

— Ele é... A mente dele é como uma sala de espelhos com monstros e espinhos. Cobras em troncos e lobos à espreita. Não é como nada que eu tenha visto antes. Ele realmente fez, sabia? Matou o padrasto. O pervertido abusava do menino e a mãe nunca esteve sóbria o bastante para notar. Pelo que vi, se notasse ela teria ciúme, nada além disso. É horrível. E hoje à noite... — Fátima tomou outra grande dose de uísque — ... Vermont tentou drogá-lo e se aproveitar dele, o canalha. E, claro, o garoto se defendeu. O que ele esperava? Mas não é esse o problema. Eu já li pessoas com traumas, eu já li violência, crime, abandono, mas esse garoto... Tem algo dentro dele, algo poderoso, feroz, capaz de destruir tudo que cruze seu caminho. Ele tem tanta raiva! E vive com isso todos os dias. Ele está ferido, Deodora, e finge que não é nada, porque ninguém se importa!

Era visível que as memórias do garoto haviam marcado Fátima profundamente. Considerando os anos de experiência da colega, Deodora achou isso notável.

— Ele precisa de ajuda. Eu não me emociono fácil com dor, não depois de todo meu tempo de serviço, mas esse caso é diferente...

— Então nós o ajudaremos. Ele está seguro aqui, por enquanto — Deodora afirmou.

— Você se lembra de quando decidiu escolher essa profissão para ajudar os outros? Corrigir injustiças? Fazer com que pessoas ruins paguem e as vítimas tenham alguma chance de recuperar suas vidas? — Fátima segurou nas mãos de Deodora. — Eu sei que te soterraram com burocracia e casos de empresas milionárias tentando ficar mais ricas, mas o garoto dormindo no quarto a poucos metros de nós duas é um daqueles casos com o qual você sonhava que sua carreira seria feita, Deodora. Ele precisa ser salvo. Ele é alguém para quem você pode dizer aquele discurso.

Fátima olhava os olhos escuros da colega com fervor.

— Como você sabe...?

— Talvez eu bisbilhote um pouco às vezes, desculpe — confessou, soltando as mãos da colega.

De súbito, um toque eletrônico fez-se ouvir.

— Aceitar chamada com imersão total — disseram as duas em uníssono.

Ao redor de ambas, a sala se tornou o escritório do senhor Silvervarg, que não dispensou tempo com cortesias e cumprimentos, indo direto ao ponto:

— Vermont está vivo. Seriamente ferido e ficará no hospital por meses, mas está vivo. Isso significa que o garoto está em risco, seja por retaliação ou abdução por um dos rivais de Vermont que queira recrutá-lo. Vocês devem...

A mensagem com o que deveriam fazer foi interrompida pelo som de vidro quebrando. Deodora e Fátima executaram o comando de imersão parcial para que pudessem voltar a enxergar a casa e correram para o quarto ocupado por Destiny a tempo de testemunhar uma cena surpreendente.

Destiny desviava das investidas de um homem vestindo roupas pretas, claramente um assassino profissional. Enquanto seu oponente, muito maior que o garoto, investia com uma faca, o menino desviava, até que foi atingido por um soco no estômago. Incertas sobre como intervir, Deodora pareceu se dar conta da situação e correu para o abajur, puxando-o da tomada com a intenção de o atirar contra o atacante.

Tal manobra se mostrou desnecessária. Assim que recebeu o golpe, Destiny teve a abertura necessária para revidar. Acertou um gancho no queixo de seu oponente, que foi surpreendido não só pelo golpe mas também pela força do menino. Um grito feroz saiu da garganta do adolescente e, em seguida, outros golpes que aprendera nas ruas e em academias clandestinas de artes marciais se encaixaram um a um.

Desarmou o assassino com um golpe de mão certeiro, agarrou-se ao pescoço dele e o acertou com duas joelhadas precisas. Sem dar tempo para que se recuperasse, Destiny desferiu socos e chutes seguidos. Não parou até que o homem estivesse caído aos seus pés, com uma poça de saliva e sangue que lhe escorria da boca. Parecia que pelo menos dois dentes haviam sido arrancados. Deodora e Fátima olhavam paralisadas para Destiny, que arfava, vitorioso contra mais um atentado à sua integridade física.

— VOCÊS ME OUVIRAM?! FAÇAM A EXTRAÇÃO DIMENSIONAL AGORA MESMO! — Silvervarg berrou, trazendo suas funcionárias de volta para a realidade.


***


As ordens foram para que Fátima localizasse a Taverna Bode Mágico. Sendo uma telepata, sua conexão com o sobrenatural a guiaria para o local. Lá, Deodora faria uma transação com um contato que garantiria um item para a passagem segura de Destiny desta dimensão para outra, na jurisdição de uma das filiais da Silvervarg e Associados. Fátima não falou durante todo o caminho, dirigindo o carro manualmente, às vezes fazendo pausas como se tentasse localizar um destino que não parava de mudar.

Ciente do perigo que o garoto corria se ficassem estacionados por tempo demais, às vezes se movimentava a esmo, depois voltando a usar sua concentração na busca do objetivo. Passados alguns minutos, pararam em um bairro comercial. Entre dois dos muitos prédios altos de aparência fria e intimidadora daquela rua, descansava uma pequena porta de madeira com a gravura de um bode. Estava praticamente escondida e ninguém a teria visto se não estivesse procurando. Na verdade, mesmo procurando, alguns seriam incapazes de encontrá-la.

Os três saíram do carro, coordenados por Fátima, e entraram pela porta. Destiny e Deodora se surpreenderam; era como se tivessem sido transportados para uma outra realidade. Dentro da chamada Taverna Bode Mágico, tudo era acolhedor e caloroso. O lugar parecia trazido de outra era, com sua decoração orgânica, couro, madeira, peles. Cabeças de animais empalhados figuravam como decoração nas paredes. Era vivo, como poucos lugares eram naquele mundo de tecnologias e isolamento. Pessoas de diferentes cores, traços, línguas e talvez épocas transitavam pelo salão ou ocupavam algumas das diversas mesas.

— Eu vou buscar o que precisamos. Sentem aqui e aguardem — disse Deodora, retomando o ar profissional após o deslumbre inicial.

Destiny e Fátima ocuparam uma mesa. O garoto olhava para os outros clientes sem prestar muita atenção, quando soltou abruptamente:

— Isso realmente vai funcionar? Vocês realmente vão me levar para outra dimensão?

— Eu testemunhei algo assim poucas vezes, mas nunca falhou. Quem quer que seja que contratou nossa firma para cuidar de você te considera extremamente importante.

Destiny deu de ombros e se calou, permitindo-se teorizar quem poderia achar que ele valia alguma coisa. Fátima pediu bebida e petiscos para os dois, enquanto aguardavam Deodora.

— O que isso significa? Outra dimensão? — Destiny perguntou.

— Imagine assim: nossa realidade é um prédio completamente selado no qual vivemos, e podemos andar livremente pelo nosso andar. Ele é nosso planeta e os planetas que podemos alcançar por meios tecnológicos. Os andares acima e abaixo de nós são diferentes planos, onde vivem espíritos, seres mágicos e poderosos, sob regras similares às nossas, mas não idênticas. Ir de um andar a outro exige algum esforço, mas é praticável. Agora, lembra que o prédio estava selado? Existem outros prédios espalhados por aí, mas chegar a eles é uma tarefa quase impossível. Exige muita energia mística e encontrar pontes ocultas que liguem um prédio a outro, com portões que só abrem em momentos e situações especificas. Nós vamos movê-lo para outro prédio, em um andar muito parecido com o nosso — Fátima explicou.

— Destiny, venha comigo — Deodora disse, aproximando-se da mesa.

O taverneiro sorriu para a advogada e para Destiny enquanto os dois seguiam em direção à porta dos fundos da taverna, apenas imaginando que tipo de aventura surgiria disso.

— Me escute com atenção: esta é uma moeda de Farfanael — explicou, entregando na mão do rapaz uma moeda de ouro com uma figura angelical sob uma nuvem de chuva gravada. — Este lugar, a Taverna Bode Mágico, é um ponto de conexão. Ao atravessar esta porta, você irá para outra dimensão. Nossa dimensão é avançada em tecnologia, mas fraca em magia. Lá, as coisas são diferentes, o que significa que seu Konmax será destruído na viagem e você será desconectado da rede. Lá, você poderá contar com a ajuda de nossa filial para se estabelecer e nunca mais vai precisar se preocupar com Vermont. Tudo que você precisa fazer é abrir esta porta e atravessá-la, você me entendeu? — Destiny balançou a cabeça afirmativamente. — Então, boa viagem.

Destiny foi até a porta, segurando a moeda com firmeza, porém, ao colocar a mão na maçaneta, virou-se com hesitação.

— Eu posso lutar. Eu posso ficar aqui e lutar. Eu não tenho medo.

Deodora respirou fundo e pôs uma mão no ombro do rapaz lentamente, para que ele sinalizasse permissão.

— Se você fizer isso, você vai ser morto. Destiny, você fez coisas terríveis, crimes, mas também é uma vítima. Isto — disse, apontando para a moeda e olhando para a porta — é uma segunda chance. Uma oportunidade de ter um novo começo, longe de tudo que te fez mal. Você pode ficar, pode lutar, mas também pode ir embora. Você não precisa ser o que aqueles homens tentaram fazer com que você se tornasse. Seus pensamentos ruins e seus traumas não precisam definir quem você vai se tornar. Escolha agora. Escolha encarar a escuridão dentro de você e conviver com ela em vez de viver dentro dela.

— E se for minha culpa? E se eu realmente for ruim e por isso essas coisas acontecem comigo? — perguntou, com os olhos exibindo vulnerabilidade pela primeira vez.

— O seu nome significa destino! Se há alguém no mundo que tem poder sobre ele é você — Deodora encorajou, com um sorriso.

Destiny balançou a cabeça, concordando, e caminhou em direção à porta. Antes de girar a maçaneta, falou, sem olhar para trás:

— Obrigado.

No instante seguinte, desapareceu em meio a um clarão. Deodora foi ao encontro de Fátima; estava exausta, mas contente por ter podido usar o discurso que tantas vezes se imaginara dizendo para algum cliente: não precisavam ser o que tentaram fazer deles.


***


Deodora havia ganhado o dia de folga depois da noite agitada e bem-sucedida, assegurando a extração dimensional de Destiny. Agora, na cama, respirava aliviada e com um sorriso nos lábios; conseguira a atenção dos chefes por um trabalho bem-executado, como desejara fazer desde o início. Por seguir ordens ser uma exigência de seu cargo, pouco importava à firma se ela acreditava estar fazendo a coisa certa ou não, mas desta vez se sentia satisfeita consigo mesma.

Apesar da grande área cinza sobre as decisões que tomara hoje, pelo menos desta vez dormiria contente em pensar que dera para um garoto, com o qual a vida falhara repetidas vezes, uma segunda chance. Podia apenas esperar que ele aproveitasse ao máximo esta oportunidade. Talvez ele mudasse o mundo. Talvez ela fosse capaz de causar mais mudanças do que as regras e hierarquias a fizeram acreditar. Dormiu muito bem, com uma faísca de esperança em seu peito lhe dizendo que um mundo de possibilidades estava aberto diante de si.


***


Silvervarg entrou na sala de reuniões e fez um gesto na direção do captador de movimentos para que a porta trancasse atrás de si. As lâmpadas se acenderam imediatamente, revelando um cômodo com uma mesa extensa cercada de cadeiras confortáveis. Não havia nenhuma janela, e quaisquer sons externos permaneciam isolados. Sobre a mesa de vidro escuro, jazia uma bacia de pedra cinza, de aparência antiga e com símbolos místicos gravados. O homem se sentou frente à bacia e fechou os olhos, concentrando-se. Como não havia meios tecnológicos de se estabelecer uma conexão com a filial que precisava contatar, recorria aos sobrenaturais. Passou a mão esquerda pela superfície da água e, mesmo sem tocá-la, ela ondulou e tremeu, distorcendo o reflexo do advogado sisudo.

Quando as águas se acalmaram novamente, pareciam com um espelho, mas não era a imagem de Silvervarg que estava refletida e sim a de uma mulher negra, com cabelos volumosos e olhar de superior. Seu vestido vermelho era quase ousado demais para o local de trabalho, mas com a autoridade que tinha ninguém poderia questionar isso. Vincando as sobrancelhas, Silvervarg se pronunciou:

— Você não é o Kadmus.

— Prazer em conhecê-lo, senhor Silvervarg. Eu sou Veronica Keating, a nova responsável pelo projeto de ascensão.

— Ah... compreendo... — Provavelmente o rapaz anterior, com o qual havia conversado, havia feito alguma besteira e sido excluído do projeto. Uma pena; pelo que haviam discutido, ele parecia ter visão. — Bem, eu vim avisá-los pessoalmente de que a extração programada precisou ser adiantada, mas ocorreu com perfeição. O garoto já se encontra na sua dimensão.

— Eu aprecio o seu zelo; em breve teremos os primeiros relatórios da adaptação dele à nova realidade — Veronica falava, com um meio sorriso que não deixava claro se estava sendo gentil ou zombando do homem refletido na água. — Nossos associados farão todos os arranjos para que não tenhamos mais surpresas e Destiny possa viver calmamente até que tenha chegado o momento do ritual.

Dessa vez, Silvervarg sentiu a alfinetada. De fato, sua divisão havia cometido erros e posto em risco a vida de uma peça chave nos planos da firma para a sua e muitas outras dimensões, mas ele não gostava de ser lembrado de suas falhas. Haviam tomado conta do garoto a distância, soltando rumores de que uma figura importante tinha interesse nele, mas não precisavam que ele fosse feliz — apenas que estivesse vivo, e isso estava acontecendo. Até mesmo o impediram de ir para a cadeia.

Não era sua culpa se a mãe preferia gastar a pensão que possuíam consigo mesma em vez do filho ou que sua negligência o tivesse deixado vulnerável a homens mal-intencionados. Até haviam feito a instalação de um Konmax pouco após o nascimento do garoto, para que pudessem sempre saber onde ele estava e no que estava interessado.

— Eu devo adverti-la para que sejam cuidadosos, o garoto é perigoso — Silvervarg disse com frieza.

— Tenho certeza de que é. — Dessa vez, Veronica abriu um largo sorriso, sem disfarçar o escárnio. — O senhor pode dormir tranquilo, posso garantir que traremos à tona o que há de melhor dentro dele, e eu nem estou falando do Lobo Insaciável portador da escuridão e devorador de mundos do qual ele, inadvertidamente, é o invólucro carnal — pontuou, dando uma piscadela no final.

— Assumo que você nos manterá informados da progressão deste projeto — Silvervarg disse, tentando ignorar a petulância da mulher.

— Eu creio que quando o tecido que separa as dimensões for rasgado e todas as pessoas se unirem em agonia e terror, você irá notar — Veronica zombou. — Eu sinto muito, mas preciso ir agora. Tenha um bom dia — disse, soando genuína pela primeira vez em toda a conversa. — Perdão pelo trocadilho, mas preciso cuidar do destino do mundo.


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