O filho do barqueiro

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Mirage: Miscelanea de Narrativas Irreais vol. 01

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O filho do barqueiro
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Essa história começa com um barqueiro que navega no obscuro das águas dos

rios Estige e Aqueronte. Um deus velho, mas imortal. Filho da deusa Nix, a personificação

da noite. Adorada pelos amantes da bruxaria. Aquela que controla a vida e a

morte dos homens e dos deuses.

Naquela época, as crianças da minha idade tremiam ao ouvir as histórias contadas

sobre Caronte. Não posso negar que às vezes perdia o sono, entretanto, minha

curiosidade sempre sobressaía ao medo.

Me chamo Therasia. Aos dez anos de idade foi quando o vi pela primeira vez.

Esperava o adormecer dos meus pais, para poder brincar perto da água. Era uma

menina travessa, louca para encarar uma aventura. Por isso, não hesitei em querer

comprovar o que havia ouvido dos pescadores do vilarejo. Eles juravam tê-lo avistado.

Talvez estivesse ali para carregar a alma de alguém.

Naquela noite, caminhei próxima à margem. Ouvi sussurros. Mas na verdade,

tratava-se do canto de alguém. Sentado numa pedra, jogando uma moeda para o

alto e, pegando-a para atirá-la novamente, estava um garotinho de cabelos longos e

brancos.

Me aproximei para saber seu nome e o que ele fazia sozinho naquele lugar.

“Ámmon” foi o que disse para responder a primeira pergunta. Estava à espera de seu

pai, pois havia perdido sua mãe naquela mesma tarde.

Conversamos bastante e até brincamos um pouco. Ele era meio esquisito.

Não tirava os olhos da água. Também não me deixou tocar na moeda. Ficou irritado

quando tentei pegá-la e me chamou de atrevida.

Não foi a minha intenção aborrecê-lo. Todavia, meu novo amigo me mandou

ir embora. Disse que eu não devia estar ali. Então o fiz. Fingi, para ser sincera. Me

escondi atrás de uma árvore. Logo, meus olhos estatelaram ao perceber a cortina de

fumaça que se formava no rio. Dela, surgiu um barco que, por si já era assustador.

Porém, aquele que o conduzia foi a verdadeira casa dos meus arrepios. Trajado com

vestes sombrias, por baixo do capuz, havia a face de um velho magro, alto, cuja barba

era longa e espessa.

Vi quando Ámmon entregou sua moeda e embarcou. Concluí que estava

morto. Seu objeto valioso era na verdade a passagem para o submundo. Meu novo

amigo havia mentido, talvez para privar-me do susto. De nada adiantou, uma vez

que durante anos carreguei sua imagem, deixando a margem para desaparecer na

neblina, dentro daquele barco.

Passaram-se doze anos. Eu sempre voltava àquele lugar após completar mi-

nhas tarefas. Sabia que não veria o garotinho de cabelos brancos novamente. Porém,

havia uma força que me arrastava para a água.

Não demorou muito para que meus pais viessem com a ideia de esposar-me.

Segundo as tradições, já passava da hora de encontrar um marido. Entretanto, meu

coração não havia desperto para ninguém. A escolha deles foi péssima. Petrus. Um

sujeito que me olhava feito um lobo sedento.

Certo dia, estava caminhando rumo ao rio e fui seguida por meu suposto noivo.

Claro que suas intenções eram perversas, ao me perceber sozinha, longe do povoado.

O infeliz tentou encostar suas mãos asquerosas em mim. Revidei e consegui

correr até a margem. Entretanto, para o meu azar, tropecei. Era para ter acontecido

o pior infortúnio da minha vida, se não fosse pela aparição de um herói que, não

hesitou em mata-lo com sua espada. Sua beleza cegou até mesmo a minha razão. Era

um anjo e tinha longos cabelos brancos.

— Ámmon? É você? — Indaguei ao relembrar a imagem daquele garotinho.

— Ainda continua a mesma atrevida. Ousa a tratar tão intimamente um ser

como eu?

— Perdoe-me. Só quero agradecê-lo. Salvou a minha vida.

— E agora você me deve sua alma. Ao menos é mais valiosa que a deste infeliz.

— Não entendo. Vi quando embarcou... Caronte veio te buscar.

— Ele veio buscar o filho. Agora, terá que vir comigo.

— Por que eu iria? Estou viva. Não pode me arrastar para o submundo.

— Sim, eu posso. Devo a Hades. Você quitará minha dívida, Therasia.

— Então se lembra de mim. Mas para que precisa que eu me torne sua moeda

de troca?

— Meu pai foi condenado por um ano ao exílio nas profundezas do Tártaro,

por ter carregado Hércules vivo em sua barca.

— É apenas um ano. Logo será liberto.

— Não se puder oferecer algo para mantê-lo aprisionado.

Fiquei abismada ao perceber o rancor que tomava seus olhos. Só podia pensar

que Caronte havia lhe feito um grande mal. O que mais levaria um garotinho a se

tornar tão frio?

Fiquei meio atônita com tudo o que havia acontecido em poucos minutos.

Quando dei por mim, Ámmon já havia me colocado no barco. Pensei em contestá-lo

e até mesmo pular na água. Todavia, ao olhar o corpo de Petrus na areia, concluí

que estava destinada a sofrer de qualquer maneira. No vilarejo havia muitos homens

iguais a ele ou até piores. Conhecer o submundo seria loucura, mas o risco me atraía.

Ainda mais na companhia daquele carcereiro que, mesmo sendo uma criatura da

escuridão, era fascinante aos meus olhos.

A neblina envolveu todo o barco. Antes que pudesse me dar conta, nossa rota

havia mudado. Estávamos agora nas águas do rio Estige. Logo adentramos para um

lugar mais sombrio. Os sons dos murmúrios de lamento e os gritos eram atormentadores.

Me abracei com o ramo de ouro que meu companheiro de viagem havia me

dado. Tratava-se do meu salvo conduto, vindo de uma árvore fatídica, consagrada a

Perséfone. Estremeci quando vi Cérbero. O monstruoso cão de três cabeças era real.

E me estraçalharia por estar viva naquele lugar proibido. Porém, me surpreendi ao

perceber a forma dócil que nos recebia. Estava mais do que claro que a entrada seria

fácil. Difícil seria se eu tentasse fugir.

Navegamos mais um tempo. Tentei usar o diálogo para tirá-lo da defensiva.

Àmmon não deu muita trela no início. Mas minha insistência acabou arrebatando

um sorriso de seus lábios. Então usei cautela para sanar a minha curiosidade.

— Perdoe-me por mais um atrevimento. Preciso perguntar por que sente

tanto ódio por Caronte. Não que eu seja uma admiradora, é claro.

— Ele armou a morte da minha mãe e quis me usar como moeda de troca para

se redimir diante de Hades.

— Certo. Acho que posso conviver com isso. Prefiro servir a um deus eternamente,

a me casar com um dos bêbados do vilarejo.

— Está ciente que vamos rumo ao Tártaro? E irá de livre e espontânea vontade?

— Sim. Desde que não precise esperar mais doze anos para vê-lo novamente.

O filho do barqueiro largou o remo para me observar. Havia surpresa presente

em seus olhos. Um novo sorriso, mais sereno dessa vez, surgiu. Ele caminhou até

a extremidade, a qual me encontrava sentada.

— Não posso prosseguir com isso.

— Por quê? Acaso fiz algo para tornar-me indigna?

— Não. Mas não posso dar a Hades o que se tornou cobiça aos meus olhos.

Sua fala tocou em cheio o meu coração. As palavras haviam sumido da minha

boca. Estremeci quando ele me arrastou bruscamente para os seus braços.

— Salve a minha alma, Therasia. — Disse sob um sussurro embriagante.

— Só se você tomar a minha.

Àmmon agarrou o meu pescoço, fazendo com que uma corrente elétrica percorresse

o meu corpo. Como um vampiro sedento por sangue, ele beijou os meus

lábios. Um beijo fervoroso o suficiente para incendiar o submundo.

Me entreguei sem remorsos em uma paixão tão insana quanto a de Hades e

Perséfone. O suficiente para causar inveja em ambos. Ali, onde residiam os mortos,

havia dor, havia ódio, mas também havia amor.

— Foi um erro trazê-la. — Àmmon falou enquanto recolocava suas vestes,

quebrando o encanto no qual havia me aprisionado. — Preciso tirá-la daqui.

— Mas eu não quero partir.

— Não seja tola.

— Pensei que me quisesse ao seu lado. Te ofereci a minha alma.

— E ela agora me pertence. No momento certo eu a tomarei. Agora, você

pegará o ramo de ouro que lhe dei. Por sorte, tenho nas mangas um truque para

adormecer Cérbero. — Falou, ao pegar uma espécie de flauta mágica.

— E o que fará sobre Caronte. Ele estará livre em um ano.

— Encontrarei outra forma de vingança. Afinal, os rios do submundo precisam

do seu barqueiro. Não quero continuar nessa vida pela eternidade. Adeus, minha

bela Therasia.

Antes que pudesse contestar, Ámmon empurrou o barco. Vi seu rosto desaparecendo

em meio a neblina. Acabei adormecendo. Quando abri os olhos, o céu

havia se tornado azul, para o meu desgosto.

Mais dias angustiantes vieram. Tornei-me noiva de Antonius, irmão de Petrus.

Era um bom homem. Fazia todos os meus gostos. Quase me sentia culpada por

não amá-lo. Todavia, meus pensamentos já pertenciam a outro.

Todas as noites, voltava ao mesmo lugar. Sentia-me observada, porém, tratava-

se do meu desejo de vê-lo outra vez, gritando alto. Seria capaz de tudo para estar

em seus braços novamente. Trocaria a luz pelas sombras.

Finalmente chegou o dia do casamento. Os comentários sobre a minha beleza

que recendia através do vestido, não me afetavam. Eu me sentia a noiva mais infeliz

daquele mundo.

Diante de todos, caminhei até o altar. Antonius segurou minhas mãos com

ternura. Em uma delas, deixou uma moeda de ouro. Era a amostra do seu presente

de casamento.

Meu coração gelou ao sentir a presença de alguém. Lá fora, distante dos olhares

daqueles presentes na cerimônia, eu o vi. Meu noivo, tomando meu rosto para

fita-lo, questionou o que estava havendo. Ao me virar, Àmmon havia desaparecido.

Uma mistura de desespero e adrenalina começava a surgir dentro de mim.

Olhei para a moeda de ouro e em seguida para o meu prometido e lhe pedi perdão.

Suspendi o vestido e corri rumo à margem. Para minha infelicidade não havia ninguém.

Uma lágrima escapou. Entretanto, percebi um punhal cravado na areia. Seria

um sinal do meu amado? Me aproximei para pegá-lo. Lembrei-me das histórias sobre

as famílias que colocavam moedas de ouro na boca dos defuntos para que estes

pudessem pagar o barqueiro por sua passagem. Assim, o fiz. Com a moeda presa

entre os dentes, cravei o punhal no peito. A dor não era maior que o amor que eu

sentia.

Fiquei imersa na escuridão por um tempo, ouvindo gritos que pareciam pertencer

a minha família e ao meu noivo. Senti que alguém me carregava nos braços.

Ao abrir os olhos, vi meu corpo na areia, rodeado de pessoas angustiadas. Ele ficava

cada vez mais distante.

Dei-me conta que estava deitada em um barco. Alguém me guiava para adentrar

o submundo. Àmmon estendeu sua mão e me trouxe para junto dele com um

beijo apaixonado. Agora sim, sentia-me feliz. Abraçada ao seu corpo, enquanto ele

remava rumo à escuridão. Podia haver luz em qualquer lugar. Até mesmo lá. Nenhum

mal nos afetaria, desde que minha eternidade estivesse selada ao lado do filho

do barqueiro.

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