Prólogo
Epílogo
Conto
Nunca pensei que me sentiria em casa aqui. Na primeira vez que vi o temeroso prédio de tijolos vermelhos e antigos, senti o estômago esfriar. Eu pensei: “Isso está cheio de fantasmas.” Sempre senti medo de pessoas mortas porque, de alguma forma, elas murmuram no meu ouvido. Desde a noite em que vi a cabeça de mamãe explodir, o estampido da bala ecoando pela sala e os miolos pregados na parede, comecei a escutar o chiado da sombra.
A vida me trouxe para o lugar onde estou; crianças sem família moram aqui até que alguém se interesse em criá-las, mas quase ninguém faz isso. Pelo menos não em relação aos garotos como eu. As pessoas preferem bebês ou crianças bem pequenas, assim poderão moldar o caráter ou moral que desejarem. Nem sempre caráter e moral podem ser moldados; algumas crianças simplesmente nascem para a maldade. Foi isso que a diretora me disse assim que cheguei. Estou quase na maioridade e com uma ficha repleta de problemas dos quais não me lembro de ser o responsável.
Eu lembro da sensação que tive, as borboletas em meu estômago ao dar os primeiros passos pelo corredor, o frio que fazia todos os pelos do meu corpo se arrepiarem ao observar os quadros dos velhos diretores do orfanato naquele imenso corredor repleto de poeira e solidão, mesmo com diversas crianças no recinto.
A solidão nunca passa, só aumenta. É algo que sinto desde a infância, quando estava entre outros garotos criando brincadeiras nas quais eu nunca era incluído. O único momento em que me sinto menos só é quando estou na pequena biblioteca da instituição. É apenas um cubículo que foi reformado pelo velho inspetor Firmino, que, apaixonado pela leitura, quis passar o hábito às pobres crianças sem esperança. Bom, não deu muito certo, pois eu era um dos únicos, se não o único, a frequentar a biblioteca. Cheguei a ler e reler os poucos livros do acervo pessoal que o inspetor compartilha. Sempre aguardava por um novo, mas Firmino parou de trazer livros... Ele desapareceu no meio do mês de agosto.
Alguns garotos comentaram que ele tinha sido despedido por causa do seu problema com a bebida, mas duvido. Eu acredito que Firmino morreu porque dá para saber quando alguém está prestes a partir dessa para uma melhor. Eu notava como seu rosto estava ficando magro e cinzento. Ele fumava quase dez cigarros por dia, então, eu me convenci que o inspetor nunca mais iria abastecer a biblioteca. E eu acabei cuidando dela, pedi para que a diretora Consuelo não a fechasse. Ela ficou em silêncio do seu jeito carrancudo, mas deixou que eu cuidasse dos livros.
Eu reorganizei as prateleiras por ordem alfabética e descobri alguns volumes que ainda não tinha lido. Eles estavam dentro de uma caixa numa abertura na parede, lugar estranho. Não compreendi o motivo de Firmino nunca ter arrumado os livros daquela caixa, mas começou a fazer sentido depois que folheei alguns. Havia coisas eróticas em algumas histórias, com desenhos e tudo! Conferi esses livros com a porta do pequeno cômodo fechada; tinha noção de que se o novo inspetor me pegasse vendo aquilo iria arrancar meu couro, afinal, ele era um tipo de homem cruel. As histórias eróticas não me impressionaram; o que chamou minha atenção foi um pequeno livro manuscrito. Ele tinha a capa rasgada e era atado por barbante, as letras tortuosas e diferentes como se tivesse sido escrito por diferentes tipos de pessoas. Parecia ser o tipo de letra de crianças.
Poderia ser um livro que o Firmino incentivou as crianças a escreverem. Como ele adorava a leitura, não duvido que também amasse a escrita. Deve ter algo perdido de sua autoria por aqui. Eu peguei o livro e fui em direção ao meu quarto pra poder apreciá-lo e ver qual era o seu conteúdo.
O orfanato era bem antigo, fato que pude perceber ao olhar os períodos em que os diretores da instituição estiveram no cargo, logo abaixo de seus respectivos quadros no grande corredor que dava para os quartos. Aqueles olhos pareciam me acompanhar enquanto eu andava por ali, sempre a caminho da biblioteca ou do meu quarto.
Eu sempre estive sozinho na biblioteca que passei a cuidar. Tratava como se fosse meu acervo pessoal, e, na verdade, era quase isso. Afinal, sentia como uma herança do pobre inspetor. Porém, tudo mudou depois que o orfanato passou a tentar um novo método de ensino pra evitar gastos.
Consuelo era uma daquelas diretoras bem rabugentas da qual todos sentem medo, e então ninguém se opôs quando ela cancelou a matrícula de todos no colégio para tentar emplacar uma escola dentro da própria instituição, contratando alguns professores novatos e até servindo como uma. Tudo isso para cortar gastos com o transporte, já que precisávamos de um ônibus todos os dias.
O orfanato era grande, porém não tinha tantos recursos como deveria. Era mais ou menos como uma mansão de um não-abastado. Existia inúmeros corredores e cômodos, porém vários sem nada, apenas ocupando espaço. Eu estava sozinho na biblioteca até que ela começou a ser usada pela nova professora, de literatura. Ela exigia que todos lessem pelo menos dois livros por mês, e com isso tive que passar a levar para meu quarto os que eu desejava ler, para que os outros não os pegassem. Esse foi o caso do estranho livro que encontrei escondido. Confesso que senti uma certa apreensão e o guardei por uns dias até começar a leitura. Ele parecia mórbido demais, o receio era grande.
Quando eu tive a coragem em uma noite de sexta-feira, passei a folhear. Não sou muito de ler índice ou introduções, acho uma grande bobeira, porém dessa vez era algo bem pequeno e eu senti vontade. Na primeira página, estava escrito: “Não leia se você não for uma criança malcriada, você pode sofrer as consequências e também terá que escrever.” O que diabos era isso? Todos que liam precisavam escrever? Talvez por isso o livreto era composto de várias letras diferentes. Que grande besteira.
Virei as primeiras páginas, e o conteúdo das mensagens se tornava cada vez mais bizarro.
“Não importa o quanto ele tentava, mais pessoas comiam carne todos os dias. Comer brócolis não ajudaria, então ele passou a se alimentar daqueles que carne comiam, e descobriu que um bife humano pode ser mais saboroso do que de boi, se você souber temperar.”
Fiquei encarando as palavras por um tempo... Aquilo era divertido até o chiado começar a azucrinar minha cabeça. Ele começava baixinho como uma respiração ao pé do ouvido, e então ganhava força à medida que eu percorria as páginas daquele livro para crianças malcriadas. O chiado chegou ao nível insuportável, fechei o livro e fiquei tremendo ao abraçá-lo.
Alguns garotos estavam parados na porta do meu quarto, e eu vi suas sombras espichadas pela fresta da porta. Gritei “ME DEIXEM EM PAZ”, pois sabia que era a turma do Felipo. Ele é um grande filho da puta. Temos a mesma idade, e ele está aqui desde que era um bebê. A mãe o abandonou em um lixo, talvez por isso Felipo adore machucar os outros, porque ele precisa fazer alguém sofrer. Eles nunca me deixam em paz, por mais que eu grite. O chiado se tornou ainda mais alto, e eu fui embora dentro da onda de raiva que me cobria assim que a porta do meu quarto abriu.
Eu não me lembro do que aconteceu depois que o chiado cresceu e me fez ir embora nas ondas de desespero, dor e raiva. Quando despertei na manhã de sábado, ainda estava abraçado ao meu livro, meu corpo todo doía, principalmente minhas costas ardiam, e o pior era minha bunda. Não preciso dizer que Felipo e seus dois amigos puxa-sacos haviam me violentado de novo. É assim desde que cheguei; no começo eu acompanhava tudo, depois passei a ver apenas a escuridão do chiado da sombra.
“Um dia, eles todos vão pagar.” Eu não sei se escutava essa voz ou se eu mesmo sussurrava entre lágrimas quentes, mas eram palavras tugidas com frequência depois dos encontros indesejados com Felipo e seus amigos. Sentei na cama com dificuldade para continuar folheando o livro e me deparei com algo que fez calafrios subirem por minha nuca: “Não é tão difícil fazer um bebê parar de chorar; só vire sua cabeça até ouvir um estalo, e o silencio virá.” O choro ecoou pelo corredor, mas a ala das crianças menores ficava distante. De onde vinha aquele som?
Voltei a esconder o livro debaixo da cama e saí do meu quarto. Eu me sentia meio mole, os pés não pareciam pisar no chão. Caminhei pelo corredor, a direção dessa vez era para a ala onde ficavam os bebês e crianças menores. Jamais tinha ido lá, mas eu queria conferir de onde vinha o choro. Enquanto eu caminhava, pude ver minha sombra, porém ela não estava do meu lado como de costume. Ela estava muitos passos à minha frente. O corredor estava vazio como de costume, e passei a correr; porém, quanto mais corria, mais longe a ala estava de mim. Até que, enfim, cheguei ao destino.
A porta da ala do berçário estava fechada, então espiei, esticando meus pés pelo vidro, mas não enxerguei nada nem ninguém; o choro havia cessado. Eu abri a porta sem nenhum receio de ser visto por alguém que passasse por ali, porém, não havia uma alma viva por aqueles cantos. O clima era estranho e, quando abri a porta, senti uma onda fria percorrer minhas costas. O local estava mergulhado no clima de desesperança usual, porém, em vez de crianças chorando como seria o de costume, eu não vi nada. Nenhum berço, nenhuma criança. Estava completamente vazio, como se todos tivessem saído às pressas. Ainda assim, eu lembrava do choro que eu ouvira do meu quarto; estava ali perto.
Fitei o berçário, caminhei por todo o espaço e não havia nenhum funcionário. Eu acordara confuso, pensei que podia estar em um sonho ainda e então resolvi voltar para o meu quarto. Talvez lá eu pudesse tomar consciência novamente, e finalmente terminar minha leitura, que estava envolvente.
Minha pequena caminhada ao meu próprio cantinho com passos mancos devido às dores que sentia foi interrompida quando ouvi gritos. Os gritos eram de Felipo, eu reconheci.
Andei o mais rápido que pude, e aí eu vi a sombra. Ela estava completamente enegrecida, pude a ver claramente dessa vez. Permanecia de frente a uma janela quebrada, olhando para baixo, pro chão lá fora como se tivesse acontecido algo. Caminhei desconfiado em sua direção, e ela olhou de volta para mim.
Quando cheguei ao seu lado, não consegui segurar minhas lágrimas, não sei se de felicidade ou tristeza, talvez um misto de ambos. Quem estava lá embaixo era Felipo; a janela estava quebrada, então ele só podia ter se jogado ou, então, ter sido jogado à força devido aos seus gritos. Todos os funcionários já estavam ao seu lado tentando prestar os primeiros socorros. Eu pude ver seu corpo esmagado e deitado sob uma poça de sangue. Parecia impossível, para mim, ele estar vivo.
Observava a cena com náusea, e eu pude lembrar de mamãe, do tiro que ceifou sua vida e seus miolos espirrando para todo canto.
Eu só tive a oportunidade de correr, correr após uma funcionária me observar olhando o corpo de Felipo lá de cima. Não sei de onde tirei forças, meu corpo estava cansado, eu mancava, porém, lutava para fugir dela. Lágrimas desciam pelo meu rosto enquanto eu refletia sobre o que ela podia pensar que eu havia feito. A sombra nesse momento não estava ao meu alcance.
Tranquei-me no quarto, e a funcionária batia exaustivamente na porta. Em um ato impensado, peguei o livro debaixo da cama. Não sei por qual razão, acho que pensei que ele poderia me relaxar. Consegui ler poucos trechos enquanto ouvia batidas fortes na porta. Um deles me fez chorar, pois parecia que eu havia escrito. Era ele: “Minha mãe sempre me dizia que o velho do saco pegava as criancinhas malcriadas, mas foi ela que ele estuprou na minha frente.” Mamãe havia sofrido uma série de abusos no seu trabalho; ouvi dizer que esse foi um dos motivos para ela comprar a arma.
As batidas continuaram, a mulher chamou por meu nome, e eu não respondi porque não parecia ser mais o meu nome. Fiquei folheando as páginas e pensando com força em minha mãe. Sua lembrança fazia meu corpo inteiro tremer, enfraquecido. Aquele pequeno manuscrito me causava sensações conflitantes de divertimento e amargura. Lancei-o contra a parede. Nesse ponto, a funcionária tinha desistido e ido embora, mas mesmo assim eu podia ouvir os sussurros atrás da porta. A sombra se derramou por baixo do batente como se fosse feita de uma gosma negra que encobriu todo o quarto e me lançou para a escuridão da inconsciência.
Quando era pequeno, mamãe vivia chorando pelos cantos e tinha hematomas pelo corpo. Ela me abraçava, e eu era envolvido pelo seu cheiro de alfazema; a maciez do abraço me fazia querer chorar. Não entendi o sofrimento de mamãe... Ela apanhava do meu pai e era abusada no serviço. Nunca soube direito no que ela trabalhava; ela era apenas minha mãe, e isso para mim bastava. Uma parte de mim a amava, mas a outra...
Eu voltei a mim e estava parado no meio do jardim do orfanato, onde árvores frondosas cobriam as nuvens com seus galhos carregados de folhas. Estava nublado, fim de tarde. Não lembrava que dia era. Fiquei um tempo observando o movimento das plantas; não havia sinal de brisa, e as plantas continuavam se movendo. O mundo à minha volta girava em uma velocidade diferente, era como se meus olhos girassem dentro das cavidades, soltos, e o mundo todo parecia derreter, se transformando em sombras murmurantes. Uma mão pesada tocou meu ombro.
— Caio, vamos? — Era o enfermeiro; seu nome me fugiu da lembrança. Estava abraçado ao livro, apertando-o contra o meu peito. Ele continuou: — Vamos? Vamos? — Suas palavras se esparramaram pelos labirintos da minha cabeça. Não parecia ter apenas uma mente, ela se desdobrava em um monte de caminhos tortuosos.
“Meu nome não é Caio”, tentei dizer isso ao enfermeiro, que continuava me sacudindo. Eu sou a garotinha do papai. Estava com o dedão enfiado na boca enquanto apertava o manuscrito. O enfermeiro sustentava um semblante de pena e impaciência. Consuelo estava se aproximando, suas passadas eram firmes, quase sentia o chão tremer quando ela aproximou de mim.
— Querido? — Era Consuelo quem falava na sua voz pastosa. — Dora?
Eu levantei os olhos para ela. E disse:
— Minha mãe sempre me obrigou a ir para a igreja. Ela queria me fazer aprender bons modos, então achou que isso seria o melhor. Não pensei que o padre fosse me ensinar orientação sexual aos oito anos.
Consuelo me puxou pelo braço como se aquelas palavras fossem habituais, mas de onde elas vieram? Continuei repetindo isso com uma voz pequena e afeminada. Quem era eu? Ela me arrastou de volta ao orfanato direto para sua sala. Sabia que estava encrencado; uma parte de mim sabia que precisava tomar o controle de mim mesmo, mas os chiados aumentaram assim que atravessei a porta do lugar. Eu nunca pensei que essas paredes frias e esse mundo derretido seriam minha casa.
De frente para ela, sua mesa estava cheia de papéis e com uma ampulheta fazendo o tempo escorrer em areia entre nós. Consuelo arrancou o manuscrito dos meus braços; eu abri a boca para gritar, mas não saiu nada. Estava travando uma luta interna, minha cabeça estava cheia de vozes que ficavam se debatendo como passarinhos de asas quebradas.
Quando tinha cinco anos, ganhei um passarinho do meu pai e o matei a pedradas só para vê-lo tentar levantar voo com a asa quebrada. Eu achava que sou um demônio. Gritei bem na cara da Consuelo: “Morra, morra, morra”, e fiquei gritando assim com os olhos bem abertos, encarando-a. Ela me deu um tapa na bochecha que me fez morder a língua e cuspir sangue. Nunca pensei que sua mão fosse tão pesada, mas deveria me lembrar. Consuelo vivia me dando tapas no rosto e deixando-o inchado.
Fiquei quieto. Ela me chamou de Caio, e eu voltei a me reconhecer nesse nome. Não havia nenhum chiado em volta, mas podia ver a sombra pairar atrás de Consuelo. Ela estava abraçando-a aos poucos.
— Escuta aqui, Caio, eu sei bem de onde você veio. Sei bem dos seus probleminhas. E não é porque aqui você não tem seus remédios caros que você pode despertar essa raiva. Que raios está fazendo com esse livro?
Eu não conseguia responder. Mil palavras passavam por minha mente, mas não conseguia pronunciar nenhuma. Recebi outro tapa forte.
— Eu sei que foi você quem empurrou Felipo, eu sei que você está escrevendo baboseiras. Todos aqui têm problemas, ninguém tem família. Só porque sua mãe foi uma vagabunda, acha que precisa ser um fracassado vingativo? Seu pai devia ter lhe dado uma surra como fazia com sua mãe, pra aprender.
A sombra passou atrás da cadeira da diretora. Não podia mais ver a Consuelo; a sombra negra cobria sua silhueta por completo. O chiado na minha cabeça só aumentava, era um ruído insuportável. Veio-me aquela familiar sensação de que algo muito ruim aconteceria. Um cheiro estranho passou entre as minhas narinas: era cheiro de morte.
Em um ato impensado, eu segurei a ampulheta que estava na mesa. Eu estava surpreso, não queria fazer isso, mas era como se fosse obrigado, controlado por uma onda de raiva e escuridão. A ampulheta passava o tempo com a areia pacientemente, e eu a virei sem cuidado algum para acertar na cabeça da diretora. Ela se quebrou.
Cortei o supercílio da diretora com tal ato; eu vi o sangue escorrendo pelo seu rosto coberto de rugas. Porém, ela não esboçou reação alguma. Eu consegui retomar minha consciência, e meu único ato foi levar minhas mãos ao rosto e desabar em choro.
A diretora levantou calmamente e buscou um papel à sua frente para limpar o sangue.
— Você é fraco, Caio. Parecia uma folha sedosa tocando meu rosto. Sua sorte foi que atingiu em cheio.
Eu pedi desculpas, trêmulo. Não entendia por que havia feito isso, realmente não queria. A sombra evaporou, o ambiente permanecia cinza e frio, e eu não podia ver mais aquele semblante negro. O ruído em meus ouvidos ficou baixo, até cessar.
Os olhos da diretora pairavam na penumbra da sala como dois faróis, reluzentes, condenatórios. O seu buço sustentava a sombra de um bigode. Ela se parecia tanto com o meu pai naquele momento: o rosto duro, meio cinza, severo e mortal. Eu fiquei encolhido na cadeira, abraçado ao próprio corpo como um cão quando mija no tapete novo. Fiquei assim, tremendo como um maldito peixe fora d’água. As minhas metáforas me deixavam um pouco desconfortável; tudo na minha vida nunca parecia ter sentido próprio.
— Quem é você agora?
Ela ainda pressionava o papel sobre o supercílio. Não sangrava mais, mas mesmo assim eu podia ver a mancha vermelha se espalhar, tomando conta dos seus dedos. Que tipo de pergunta era aquela? Dei de ombros sem ter um nome na ponta da língua para apresentar.
— Caio.
Era estranho porque não parecia comigo aquele nome; eu me sentia cada vez menor e amuado na cadeira.
— Eu quero meu livro de volta, por favor.
Repeti isso por um tempo, e Consuelo permaneceu inerte feito uma estátua. Apenas seus olhos tinham vida porque ficavam indo da porta do escritório para mim o tempo inteiro. Ela tinha algum problema com os nervos dos olhos. Eles tremiam o tempo todo, indo para lugares diferentes um do outro. Pensei nela como um lagarto desses que desviam os olhos para pontos diferentes, insetos diferentes que sobrevoam seu apetite.
— Eu quero o meu livro — continuei meu mantra, a minha voz bem pequena feito zunido de asas de mosquito.
Ela abriu a gaveta com olhos trêmulos, pegou o livro, os olhos chacoalhando, e jogou o manuscrito em meu colo. Fui dispensado. Saí um tanto desconfiado, e meus pés me levaram de volta para meu quarto com o enfermeiro cheirando a remédio atrás das minhas costas. Seus passos ecoavam alto na minha cabeça.
Felipo não iria mais me encurralar pelos cantos. Seus amigos nunca mais foram vistos. O enfermeiro vinha me visitar todo fim de dia e injetar alguma coisa no braço. Às vezes eu deixava, noutras, saía correndo pelo quarto como uma aranha fugindo do fogo, mas não tinha como fugir dele. Eles sempre me pegavam e me encurralavam.
Como não podia mais sair do quarto, consegui terminar de ler o manuscrito e estava fazendo a segunda leitura quando ela voltou a me visitar. Atravessou a janela que vivia trancada e se esparramou sobre minha cama de solteiro encostada no canto da parede. Fiquei parado com os braços estendidos sobre a mesa, que em outros tempos servia como local de estudos, observando a sombra que chiava tomar conta do quarto. Misturado ao chiado ensurdecedor, escutei os choros de bebês, e havia algo bem no fundo dos ecos: era a voz de mamãe me dizendo “Boa noite”.
Com o efeito dos remédios, a sombra parecia ter sumido, mas dessa vez ela voltou, e mais forte do que antes. O zumbido nos meus ouvidos estava insuportável, e eu não conseguia permanecer em pé tamanho era o incômodo. Eu tentei arremessar meu fiel livro na sombra, mas foi em vão. Ela saiu da cama para a minha direção; eu sentia como se tivesse sido possuído enquanto o barulho me ensurdecia, até que ela sumiu do meu quarto. Não percebi se saiu por algum lugar ou se escondeu; talvez estivesse em mim.
Me acalmei, mas meus ouvidos ainda doíam muito. Restava apenas cinco minutos para as oito da noite, e o enfermeiro iria adentrar em breve o meu quarto. Fazia tempos que eu não oferecia resistência para tomar remédios, porém, dessa vez, algo me veio à mente. Eu podia garantir que não era eu que pensava nisso; eu apenas obedeci o que sentia no momento, como se fosse uma voz interior. Naquela noite, eu me negaria a tomar uma nova injeção, pois aquilo não me fazia bem.
Em pouco tempo, o enfermeiro bateu na porta e eu entrei em pânico, passei a gritar desesperado. Ele logo entrou sem se preocupar em trancar a porta novamente. Eu estava gritando e pedindo ajuda, e ele rapidamente veio em minha direção tentar me acalmar. Pobre Bob, inocente demais. A injeção estava em uma grande embalagem de metal junto com uma gororoba que deveria jantar. Eu a peguei rapidamente e apunhalei em seu pescoço; tenho certeza que foi mais forte do que meu golpe à Consuelo.
Nesse exato momento, ao ver o enfermeiro caindo no chão, eu pude ver a sombra saindo pela porta do quarto. Eu pude vê-la saindo de dentro de mim. O ruído passou a tomar conta da minha cabeça novamente, aliada a choro de bebês. Eu passei a segui-la, que flutuava rapidamente pelos corredores. O mal-estar tomava conta do meu corpo, e eu sentia as pernas bambas. Atravessei os corredores do orfanato, que durante os últimos meses serviu como uma casa. Eu nunca me senti em casa em lugar nenhum. Corri atrás daquela sombra que se derramava à minha frente enquanto a minha própria projeção não podia ser mais vista atrás dos meus passos. Era eu quem seguia a minha própria sombra, e os ruídos se tornaram mais altos e me arrastaram para o jardim onde sempre acordava dos apagões.
Era assim que Consuelo chamava aqueles momentos em que me estapeava e perguntava: “Quem é você agora?” Ela dizia que eu estava dentro de um apagão. E talvez fosse isso mesmo, eu simplesmente deixava o meu corpo, e a minha alma — a verdadeira — ia embora para algum lugar longe da sombra e dos chiados em volta. E quando retornava, tudo estava bagunçado, torto, ensanguentado.
O barulho do livro caindo da minha mão me trouxe de volta. Não me lembrava de ter trazido ele comigo enquanto corria do quarto. Eu fui pego por mãos fortes; todo o prédio estava soando um alarme como a sirene que escutávamos a cada refeição e nos intervalos das atividades. Tentei me livrar do peso daquelas mãos, mas não consegui. O homem era um gigante, pelo menos mais alto do que qualquer pessoa que eu tinha visto na instituição. Ele estava fardado, era um policial; eu já tinha visto muitos deles antes perambulando pela minha antiga casa, quando a mamãe morreu.
Consuelo estava logo atrás dele, o olho coberto por um curativo onde eu havia acertado a ampulheta. Ela estava com um rosto espichado de angústia ou tristeza, eu não sabia dizer. Naquele momento, ela parecia quase chorar. Eu nunca tinha visto seu rosto daquela forma. Consuelo era detestável, ela sempre parecia sorrir discretamente enquanto castigava todos em volta, mas por que ela parecia tão... cândida, agora? Onde estava o rosto daquela maldita bruxa de antes? Eu comecei a acreditar que nada do que via era real, e sim projeções da minha cabeça. A sombra rodopiou por trás do policial; era ele quem estava sorrindo para mim agora. Seu rosto disforme parecia uma máscara de cera branca derretendo em caretas demoníacas.
Tentei correr e continuei me debatendo. O meu livro estava aberto aos meus pés; nas páginas havia palavras escritas com manchas do que parecia ser sangue seco. Aquela caligrafia era tão familiar... Então, tentei gritar que não tinha feito nada, embora aquelas palavras rabiscadas se parecessem muito com minha própria letra defeituosa. Consuelo fazia um chiado “shh, shh, shh” para me acalmar, como faziam com cães nervosos e malcriados.
O policial continuava me segurando. Os dedos enterrados no meu braço magro pareciam partes de uma garra metálica. Houve apenas um chiado alto e reverberante. A sombra rodopiava através de Consuelo, se espichava sobre a grama do jardim e se expandia, cobrindo o orfanato como uma imensa nuvem negra. Não era mais Caio que estava ali; eu tinha sido empurrado para algum lugar escuro onde me afundava com frequência a cada apagão. A voz que saía de mim era arrastada, rouca como de um velho. Tentei abocanhar a mão do policial, mas aquele não era eu — e aqueles dentes nervosos sedentos por sangue também não.
As frases do livro se derramavam em minha memória. A mão que escrevia com dedos sujos de sangue parecia a minha, mas não me lembrava de ter escrito aquilo: “Dizem que as crianças solitárias tendem à piromania, pois querem receber atenção. Acho que atear fogo no meu coleguinha de quarto foi a melhor forma de atrair a atenção deles.” Assim que cheguei no orfanato, eu tinha feito um amigo. Seu nome era Daniel, todos o chamavam de Dan. Ele era bem pequeno para a idade e usava óculos fundo de garrafa. Adorava histórias de terror. Uma noite, enquanto brincávamos no jardim, Dan começou a pegar fogo. Assim, do nada. Estávamos brincando com isqueiro — que roubamos de Firmino — e álcool. Agora, não tenho tanta certeza se Dan pegou fogo por um descuido nosso ou se eu... Impossível.
O policial tentou me conter, e eu escutei as sirenes. Escutei Consuelo continuar chiando, misturada aos sussurros altos da sombra gigante, shh, shh, shh. Eles estavam me arrastando, as sirenes eram olhos vermelhos giratórios. Eu tentava de toda forma sair correndo, desaparecer, me livrar daqueles ruídos.
Mesmo sem qualquer possibilidade de me livrar daquelas mãos segurando meu corpo, eu tentei me desvencilhar. Não entendia o que estava acontecendo. A sombra aumentou à minha frente enquanto os ruídos ecoavam na minha mente. Crianças e funcionários assistiam parados atrás das janelas. Eu captei seus cochichos, porém não consegui compreender. Estava mergulhado nos ruídos insuportáveis que minha mente sombria emitia.
Imagens surgiram em minha mente, mas eu não lembrava de nada com clareza. Elas se misturavam aos trechos do manuscrito que encontrara na biblioteca. Tenho certeza que não participei de nada daquilo.
Eram clarões da queda de Felipo. Eu estava lá no alto, parado na janela, observando-o agonizar no chão com a cabeça rachada. Eu me via em um clima acinzentado, acionando o alarme de incêndio do pátio. Então, entrei sorrateiro no berçário, tirei alguns bebês de seus berços e os levei para o porão. Eu não podia acreditar que essas lembranças eram reais, não participara desses eventos malditos.
Podia sentir o meu corpo ceder; era um apagão, estava caindo na dormência e me desligando do meu corpo. Minha memória me fez voltar no tempo. Estava em meu quarto com Dan, cercados por livros. Nós gostávamos das histórias de terror e queríamos escrever as nossas. Ele me deu a ideia de criar várias histórias assustadoras para crianças. É claro que tudo fica mais aterrorizante se for real, ele me ajudou.
Passamos a frequentar o jardim pensando em enredos legais. Certa vez, vimos Firmino levar o lixo para fora. Fomos vasculhar em busca de ideias para nossas histórias e encontramos algo muito podre. O fedor podia ser percebido de longe, cheiro de algo morto. Na curiosidade, Dan e eu remexemos o lixo e encontramos partes de um natimorto.
Então, tivemos nossa primeira ideia. Em uma das primeiras páginas do livro: “Não sei por que as mulheres enterram seus filhos mortos. Seria mais proveitoso devorá-los com um pouco de tempero. Seria uma forma de reincorporá-los.”. A partir daí, começamos a contar sobre o que acontecia conosco, as humilhações diárias e planos de vingança, mas tudo ficou pior depois do acidente de Dan. Minhas histórias ficaram mais brutais, e a sombra parecia insaciável. Ela me fazia sentir sensações ruins, me fazia sair de mim mesmo e ir para esse lugar escuro e frio, ausente de consciência.
Quando acordei do último apagão que evocou todas essas memórias, estava dentro de uma ambulância. Meus punhos doíam, estavam amarrados, minha boca também. Estava completamente imóvel sobre a maca. Consuelo estava sentada aos meus pés com seu outro olho sangrando enquanto dois enfermeiros lhe atendiam. O policial me olhava, ele estava sentado do lado da maca e seu olhar era frio e cheio de repreensão. O mesmo olhar que meu pai sustentava toda vez que falava comigo.
Então, ali parada em pé diante das portas da ambulância, eu podia ver a sombra me cobrir como um véu, seu chiado antecedendo sua aparição. A minha mente deu um giro de 360 graus, e voltei a sair de mim, preso em uma escuridão congelante. O meu corpo estava se debatendo sobre a maca — mas aquele não era eu —, tentando se libertar das amarras, tentando gritar com os lábios contraídos na mordaça.
Estava flutuando, indo para longe do orfanato que um dia foi meu lar, fugindo do meu corpo. A minha mente rodopiava de novo quando um enfermeiro se aproximou o suficiente para que seu rosto cobrisse o meu. Ele injetou algo. Eu podia sentir o remédio circulando por minhas veias e alcançando todo o corpo, a imobilidade aquietando minha carne trêmula. Mas a cabeça continuava rodopiando.
Mamãe me dizia que eu era um anjo, e vinha no meu berço dar um beijo de boa-noite antes de sair. “Mamãe...”, eu sussurrei, mas não saía nada da boca, apenas no pensamento, “... eu sinto muito”, e tudo o que vi em seguida foram seus miolos pintando a parede da sala enquanto a arma caía aos meus pés. Eu tinha nove ou dez anos, eu não lembrava, e o chiado que me envolvia e a sombra que me abraçava me fizeram surrupiar a arma de papai e fazer a mamãe parar de sofrer. Eu me sentia disperso, sem forma, como uma sombra sussurrante quando escutei as portas da ambulância baterem e a sirene ecoar pelo ar. “Eles estão me levando embora”, é o que queria gritar, mas tudo o que consegui foi entrar numa onda de dormência. As palavras eram pastosas na minha boca, o chacoalhar do carro quase me faz vomitar, os olhos não pararam abertos. A figura do policial veio e se foi sobre meu rosto; era um demônio de olhos negros. Eu recomecei a me debater porque ela estava aqui comigo, a sombra, muito perto, deitando-se sobre mim, fundindo-se a mim. Eu tentei me debater, me livrar dela, mas os enfermeiros voltaram a me segurar na cama... Eles me mantinham preso e imóvel, enquanto ela se deitava sobre mim e levava o que restava da minha alma e consciência.
Eu, Caio, ia para longe. O que restava sobre o quarto dessa nova instituição em que me trancafiaram era muito pouco. Tudo pertencia à sombra, que não parava de assobiar, rodopiar e chiar. Na placa de entrada, dizia algo sobre “segurança máxima”. Aqui, os prisioneiros se chocavam contra as paredes. Deviam tentar fugir das suas próprias sombras o tempo inteiro, mas ninguém deixava; elas não nos deixavam. Jogado no canto do meu quarto — ou seria cela? —, eu abracei os próprios joelhos nos raros momentos em que Caio, eu mesmo, voltei ao meu corpo. Os meus dedos estavam sem as unhas; eu havia voltado a comê-las em acessos de fúria e ansiedade. Rasparam o meu cabelo, eu não via o sol. Não via a lua. As paredes brancas que me cercavam permitiam que eu visse a sua forma escura, gigante, me envolvendo todas as noites e chiando, chiando sem trégua.
O manuscrito estava escondido embaixo do colchão e, quando o peguei para reler, senti as lágrimas quentes escorrendo pelo meu rosto esverdeado. “Eu não queria ser assim”, sussurrei para mim mesmo, ao que ela respondeu em seu habitual chiado arranhado: “Isso é o que nós somos, sempre seremos, eu e você e todos que te habitam.” Pensei na minha mãe, em Firmino, em Dan e até mesmo em Felipo, mas nada me angustiava mais do que os gritos de bebês à meia-noite. A culpa nos perseguia até os confins do mundo, até no pós-morte, e ela só aumentava à medida que tomávamos consciência. Não queria ter consciência de atos que não tinham sido meus e, sim, dela, que agora se derramava pelas paredes brancas enquanto eu me debatia na tentativa de fugir. Mas não havia fuga; ela me envolveu e me levou para longe, tomando o meu lugar, me possuindo, e eu deixei, porque estava cansado de lutar. Eu nunca pensei que nesse novo lugar me sentiria em casa. Era tudo o que me restava, era o que merecia no fim das contas. Paredes brancas, o branco por todo lugar, o vazio, o nada, o chiado, apenas. E a dor.