Melhor estar morto

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
ACID NEON: Narrativas de um futuro próximo vol. 02

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Melhor estar morto
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— Ontem à noite, mais uma vítima foi encontrada

em um beco. Como as anteriores, esta foi encontrada com a

garganta cortada. Importante salientar que todas são mulheres

e os crimes se assemelham aos cometidos dez anos antes,

pelo serial killer da Rua 10, já falecido...

Naomi parou de prestar atenção ao noticiário quando

ouviu o barulho de algo batendo no seu telhado. Tomou

um susto e após se recuperar, levantou-se e se encaminhou

para lá, já sabendo o que encontraria.

Hugo estava sentado, olhando confuso e assustado

suas mãos e camisa sujas de sangue. Ergueu os olhos para

Naomi.

— O que está acontecendo comigo? — perguntou

com a voz trêmula. Ela se abaixou e o abraçou. — Sinto muito,

querido, é tudo culpa minha.

• • •

Naomi e Hugo se conheceram ainda na adolescência

e não estavam há muito tempo juntos quando perceberam

que não poderiam viver sem o outro. Dentro do seu relacionamento

não ligavam para o caos que estava o mundo com

o surgimento da sublimação e transferência de consciências

para os corpos sintéticos, Segunda Vida. Ao que parecia, a

humanidade finalmente tinha alcançado a sonhada imortalidade.

Ao menos uma pequena parte dela.

Os mais abastados, tinham acessos aos melhores modelos

de Segunda Vida, que podiam ter aparência idênticas

ao seu dono quando vivo. O resto da população, quando raros

os que tinham dinheiro para fazer o upload, tinha que se

contentar com arquétipos mais superficiais, que lembravam

em muito, robôs. Protestos ocorriam por todos os lados:

fundamentalistas bradavam que o homem não podiam ser

Deus, os miseráveis defendiam seus direitos para ter acesso

a mais nova tecnologia e a classe burguesa, insistia que uma

lei fosse sancionada para que os Segunda Vida mais artificiais

fossem tirados de circulação, porque era assustador demais

conviver com aquilo, afinal se você não podia bancar um

bom modelo, bem, melhor está morto mesmo.

Fazia apenas dois anos que estavam casados, quando

uns dos laboratórios produtores de Segunda Vida, foi invadido

pelos fundamentalistas. Hugo trabalhava lá como zelador

e no meio da confusão entre policiais e protestantes, não

deu para identificar quem era invasor, produtor ou só o cara

da limpeza.

Ao perguntarem a Naomi se ela tinha interesse na

sublimação, não precisou pensar muito. Pegou todas as economias

que tinha juntado com seu falecido marido e pagou.

Não se importara em ter que trabalhar turnos dobrados na

boate por anos para conseguir o modelo mais barato de Segunda

Vida.

Foi em uma dessas noites, enquanto trabalhava que

encontrou Téo, um amigo de infância.

— Naomi! — Ele a cumprimentou com um abraço

apertado.

— Ai, meu deus, Téo! Caramba, quanto tempo. Eu

não te vejo desde... — Ela se interrompeu sem graça.

— Desde que descobriram que meu pai era um serial

killer e eu e minha mãe tivemos que sair correndo da cida-

de? — completou dando uma risadinha sem graça. — Mas, ei,

soube que você se casou — falou animado.

— Soube também que fiquei viúva?

— É, eu soube. Merda, sempre toco no assunto errado.

— Fez uma careta envergonhado. — Você fez a sublimação?

— Fiz. Por que você acha que passo mais da metade

do meu dia aguentando esse bando de macho escroto? — Ela

falou alto, fazendo questão que as pessoas ao redor ouvissem.

— Eu voltei da cidade há algum tempo e um colega

me vendeu um material por pechincha, estou tentando começar

meu negócio agora, sabe.

— Tá vendendo Segundas Vidas?

— Não são os melhores modelos, mas eu faria um

bom preço para você. Quanto você tem?

— Um pouco mais que a metade para pagar um modelo

barato — murmurou tristemente.

— Naomi, quando aquela merda toda aconteceu, você

foi a única que não me abandonou, mais que isso, você me

defendeu. É o meu momento de te recompensar. Ela abriu

um sorriso. Mal podia acreditar na sua sorte por ter encontrado

Téo. No dia seguinte, foi até a casa dele, levando o dispositivo,

contendo a consciência de Hugo. Não havia muitos

modelos disponíveis e escolheu o que mais se assemelhava

ao seu marido, ainda que a única semelhança fosse a cor do

cabelo, mas não se importou, estaria com ele e isso independia

da sua aparência física.

Téo plugou o dispositivo aos seus computadores e

Naomi percebeu que eles eram bem velhos, entretanto pareciam

funcionar. Em seguida, colocou os fios em uma minúscula

abertura que ficava no topo da cabeça do modelo

coberta pelo cabelo, que se encontrava deitado em uma maca

e iniciou o processo.

Já estava quase em 90% quando tudo se apagou por

alguns segundos e voltou a ligar, as telas ficaram distorcidas

por um momento, até normalizarem.

— O que foi isso? — perguntou Naomi.

— As máquinas são um pouco velhas, então é comum

isso acontecer. Não se preocupe.

Não se preocupou. Principalmente quando Hugo

acordou.

— Ainda não acredito que gastou tudo comigo — repetiu

ele, quando chegaram em casa.

— Não poderia fazer diferente. Como se sente? Ele

foi até o espelho e se olhou mais uma vez. — É estranho. —

Olhou as próprias mãos. — Vou demorar a me acostumar

com essa nova aparência.

— Sinto muito, querido. Se eu pudesse...

— Ei — caminhou até ela e envolveu sua cintura —,

nem ouse terminar essa frase. Estou com você e é isso que

importa.

Naquela madrugada, Naomi percebeu que Hugo havia

sumido e aquilo voltou a acontecer algumas vezes. Ele

nunca se lembrava de onde estivera, mas havia sangue em

suas roupas e no noticiário as mortes eram anunciadas.

Ela tentou fingir que não havia ligação alguma entre

esses eventos, até que por fim acabou procurando Téo.

— Tem algo estranho com o Hugo. — Ele não demonstrou

surpresa nem curiosidade. — Acho que ele tá envolvido

nessas mortes, mas ele diz não se lembrar de nada e

acho que está falando a verdade — continuou.

— Er... você não vai gostar disso.

— O que foi?

— Estava olhando o diagnóstico do processo do Hugo

e acho que aquela falha fez com que a consciência dele se

mesclasse com outra salva na minha máquina.

— Qual?

— A do meu pai.

— O quê?! — seu tom de voz se elevou. — Você está

de brincadeira comigo. — Eu sinto muito. Eu não sei o que

aconteceu — falou, encolhendo os ombros.

— Como isso é possível? Por que você tem a consciência

do seu pai salva? E como você conseguiu a sublimação

dele? Não é proibido fazer isso com criminosos?

— Olha, sei que meu pai foi um assassino, mas ele era

um herói para mim e para minha mãe. Por isso ela subornou

os médicos para conseguir a sublimação dele e eu a guardei.

Eu juro que nunca tive a intenção de trazê-lo de volta, mas

também não consegui deletá-la.

— E o que a gente faz agora? Não tem como... sei lá,

tirar seu pai de lá?

Ela agitava os braços nervosa.

— Eles são um só agora. Os olhos de Naomi pareciam

que ia saltar do rosto.

— Eu não acredito nisso! — gritou.

— Me perdoa, Naomi, me perdoa. Eu... Saiu de lá antes

que ele terminasse de falar.

• • •

— Acho que estou fazendo algo muito ruim — disse

Hugo choroso. Naomi segurou seu rosto entre as mãos.

— Vai ficar tudo bem. Você sabe que eu te amo, não

sabe? Algumas lágrimas rolaram pelo rosto dela.

— Também amo você.

— Então feche os olhos.

Assim ele o fez, tinha um leve sorriso no rosto, em

razão das palavras dela que o reconfortaram.

No rosto de Naomi, as lágrimas se acumularam. Ela

respirou fundo e com toda força que conseguiu reunir, girou

a cabeça do modelo barato em 360 graus, até que ela se separasse

do corpo. Não houve dor, o sorriso de Hugo ainda

estava lá.

Ela se levantou e soluçando, começou a pisar na cabeça,

até atingir o local da sua consciência. Até que Hugo se

fosse completamente.

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