Prólogo
Epílogo
Conto
— Ontem à noite, mais uma vítima foi encontrada
em um beco. Como as anteriores, esta foi encontrada com a
garganta cortada. Importante salientar que todas são mulheres
e os crimes se assemelham aos cometidos dez anos antes,
pelo serial killer da Rua 10, já falecido...
Naomi parou de prestar atenção ao noticiário quando
ouviu o barulho de algo batendo no seu telhado. Tomou
um susto e após se recuperar, levantou-se e se encaminhou
para lá, já sabendo o que encontraria.
Hugo estava sentado, olhando confuso e assustado
suas mãos e camisa sujas de sangue. Ergueu os olhos para
Naomi.
— O que está acontecendo comigo? — perguntou
com a voz trêmula. Ela se abaixou e o abraçou. — Sinto muito,
querido, é tudo culpa minha.
• • •
Naomi e Hugo se conheceram ainda na adolescência
e não estavam há muito tempo juntos quando perceberam
que não poderiam viver sem o outro. Dentro do seu relacionamento
não ligavam para o caos que estava o mundo com
o surgimento da sublimação e transferência de consciências
para os corpos sintéticos, Segunda Vida. Ao que parecia, a
humanidade finalmente tinha alcançado a sonhada imortalidade.
Ao menos uma pequena parte dela.
Os mais abastados, tinham acessos aos melhores modelos
de Segunda Vida, que podiam ter aparência idênticas
ao seu dono quando vivo. O resto da população, quando raros
os que tinham dinheiro para fazer o upload, tinha que se
contentar com arquétipos mais superficiais, que lembravam
em muito, robôs. Protestos ocorriam por todos os lados:
fundamentalistas bradavam que o homem não podiam ser
Deus, os miseráveis defendiam seus direitos para ter acesso
a mais nova tecnologia e a classe burguesa, insistia que uma
lei fosse sancionada para que os Segunda Vida mais artificiais
fossem tirados de circulação, porque era assustador demais
conviver com aquilo, afinal se você não podia bancar um
bom modelo, bem, melhor está morto mesmo.
Fazia apenas dois anos que estavam casados, quando
uns dos laboratórios produtores de Segunda Vida, foi invadido
pelos fundamentalistas. Hugo trabalhava lá como zelador
e no meio da confusão entre policiais e protestantes, não
deu para identificar quem era invasor, produtor ou só o cara
da limpeza.
Ao perguntarem a Naomi se ela tinha interesse na
sublimação, não precisou pensar muito. Pegou todas as economias
que tinha juntado com seu falecido marido e pagou.
Não se importara em ter que trabalhar turnos dobrados na
boate por anos para conseguir o modelo mais barato de Segunda
Vida.
Foi em uma dessas noites, enquanto trabalhava que
encontrou Téo, um amigo de infância.
— Naomi! — Ele a cumprimentou com um abraço
apertado.
— Ai, meu deus, Téo! Caramba, quanto tempo. Eu
não te vejo desde... — Ela se interrompeu sem graça.
— Desde que descobriram que meu pai era um serial
killer e eu e minha mãe tivemos que sair correndo da cida-
de? — completou dando uma risadinha sem graça. — Mas, ei,
soube que você se casou — falou animado.
— Soube também que fiquei viúva?
— É, eu soube. Merda, sempre toco no assunto errado.
— Fez uma careta envergonhado. — Você fez a sublimação?
— Fiz. Por que você acha que passo mais da metade
do meu dia aguentando esse bando de macho escroto? — Ela
falou alto, fazendo questão que as pessoas ao redor ouvissem.
— Eu voltei da cidade há algum tempo e um colega
me vendeu um material por pechincha, estou tentando começar
meu negócio agora, sabe.
— Tá vendendo Segundas Vidas?
— Não são os melhores modelos, mas eu faria um
bom preço para você. Quanto você tem?
— Um pouco mais que a metade para pagar um modelo
barato — murmurou tristemente.
— Naomi, quando aquela merda toda aconteceu, você
foi a única que não me abandonou, mais que isso, você me
defendeu. É o meu momento de te recompensar. Ela abriu
um sorriso. Mal podia acreditar na sua sorte por ter encontrado
Téo. No dia seguinte, foi até a casa dele, levando o dispositivo,
contendo a consciência de Hugo. Não havia muitos
modelos disponíveis e escolheu o que mais se assemelhava
ao seu marido, ainda que a única semelhança fosse a cor do
cabelo, mas não se importou, estaria com ele e isso independia
da sua aparência física.
Téo plugou o dispositivo aos seus computadores e
Naomi percebeu que eles eram bem velhos, entretanto pareciam
funcionar. Em seguida, colocou os fios em uma minúscula
abertura que ficava no topo da cabeça do modelo
coberta pelo cabelo, que se encontrava deitado em uma maca
e iniciou o processo.
Já estava quase em 90% quando tudo se apagou por
alguns segundos e voltou a ligar, as telas ficaram distorcidas
por um momento, até normalizarem.
— O que foi isso? — perguntou Naomi.
— As máquinas são um pouco velhas, então é comum
isso acontecer. Não se preocupe.
Não se preocupou. Principalmente quando Hugo
acordou.
— Ainda não acredito que gastou tudo comigo — repetiu
ele, quando chegaram em casa.
— Não poderia fazer diferente. Como se sente? Ele
foi até o espelho e se olhou mais uma vez. — É estranho. —
Olhou as próprias mãos. — Vou demorar a me acostumar
com essa nova aparência.
— Sinto muito, querido. Se eu pudesse...
— Ei — caminhou até ela e envolveu sua cintura —,
nem ouse terminar essa frase. Estou com você e é isso que
importa.
Naquela madrugada, Naomi percebeu que Hugo havia
sumido e aquilo voltou a acontecer algumas vezes. Ele
nunca se lembrava de onde estivera, mas havia sangue em
suas roupas e no noticiário as mortes eram anunciadas.
Ela tentou fingir que não havia ligação alguma entre
esses eventos, até que por fim acabou procurando Téo.
— Tem algo estranho com o Hugo. — Ele não demonstrou
surpresa nem curiosidade. — Acho que ele tá envolvido
nessas mortes, mas ele diz não se lembrar de nada e
acho que está falando a verdade — continuou.
— Er... você não vai gostar disso.
— O que foi?
— Estava olhando o diagnóstico do processo do Hugo
e acho que aquela falha fez com que a consciência dele se
mesclasse com outra salva na minha máquina.
— Qual?
— A do meu pai.
— O quê?! — seu tom de voz se elevou. — Você está
de brincadeira comigo. — Eu sinto muito. Eu não sei o que
aconteceu — falou, encolhendo os ombros.
— Como isso é possível? Por que você tem a consciência
do seu pai salva? E como você conseguiu a sublimação
dele? Não é proibido fazer isso com criminosos?
— Olha, sei que meu pai foi um assassino, mas ele era
um herói para mim e para minha mãe. Por isso ela subornou
os médicos para conseguir a sublimação dele e eu a guardei.
Eu juro que nunca tive a intenção de trazê-lo de volta, mas
também não consegui deletá-la.
— E o que a gente faz agora? Não tem como... sei lá,
tirar seu pai de lá?
Ela agitava os braços nervosa.
— Eles são um só agora. Os olhos de Naomi pareciam
que ia saltar do rosto.
— Eu não acredito nisso! — gritou.
— Me perdoa, Naomi, me perdoa. Eu... Saiu de lá antes
que ele terminasse de falar.
• • •
— Acho que estou fazendo algo muito ruim — disse
Hugo choroso. Naomi segurou seu rosto entre as mãos.
— Vai ficar tudo bem. Você sabe que eu te amo, não
sabe? Algumas lágrimas rolaram pelo rosto dela.
— Também amo você.
— Então feche os olhos.
Assim ele o fez, tinha um leve sorriso no rosto, em
razão das palavras dela que o reconfortaram.
No rosto de Naomi, as lágrimas se acumularam. Ela
respirou fundo e com toda força que conseguiu reunir, girou
a cabeça do modelo barato em 360 graus, até que ela se separasse
do corpo. Não houve dor, o sorriso de Hugo ainda
estava lá.
Ela se levantou e soluçando, começou a pisar na cabeça,
até atingir o local da sua consciência. Até que Hugo se
fosse completamente.