Prólogo
Epílogo
Conto
E esse que está por vir será o Leviatã supremo, o Superleviatã,
senhor absoluto e incontestável da Terra e do espírito
humano.
General Golbery.
A Guerra Fria entre os blocos capitalista e socialista
acirraram os conflitos internos do Brasil. Para cada presidente
militar que subia ao poder, a ditadura se endurecia, o
país se tornava cada vez mais fechado e policialesco. As desigualdades
sociais e regionais também cresciam na proporção
inversa do PIB. O terrorismo de Estado brasileiro acabou
criando controles biopolíticos mais severos na população.
Chegou um tempo em que o milagre econômico deu lugar a
um pandemônio de violência urbana, desemprego e inflação.
Na virada do milênio, os guerrilheiros encontraram
uma nova forma de lutar. A guerra adquiriu um novo
campo de batalha: o ciberverso. A nova rede mundial de computadores
permitia o acesso direto do ser humano à internet.
A rede brasileira sofria o controle irrestrito do Estado discricionário,
só pessoas ligadas às elites tecnocráticas e militares
tinham acesso às altas tecnologias.
Muitos grupos subversivos atuais, ou como define
a Escola Superior de Guerra, ciberterroristas, eram formados
pela classe média e filhos das elites descontentes com os
inúmeros retrocessos sofridos em mais de cinquenta anos.
Dentre eles, o mais atuante era a Br-68 (Brigada 68). O gru-
po estava sendo caçado por todo o país, recompensas estipuladas
chegavam a Cr$ 1.000.000,00 por cabeça, mas ninguém
sabia quantos integrantes existiam, ou onde seu QG funcionava.
Eram mais um dos piratas de dados que infestavam
as redes de intranet e a da internet. A Br-68 estava há alguns
anos preparando o gran finale contra a Ditadura Militar. Um
centro de operações foi instalado no sopé de uma favela. A
proteção dos milicianos era suficiente para que nenhum militar
que andava há dez metros do chão chegasse para incomodar.
Dos cinco que se precipitariam contra o firewall
do Ministério das Forças Armadas, Vitor era talvez o mais
disciplinado, perdendo apenas para o líder da célula, Samuel.
Aquelas ciberguerrilhas consumiam muito dos envolvidos,
conciliar a vida de militante político e de cidadão comum,
era coisa mais que difícil. Poucos pretendiam brigar contra
as estruturas de um governo ditatorial que posava de democrático.
O Estado do Brasil era uma máquina belicista e
hermética, que subjugava a população com as forças das armas
e da mídia. As TVs e a própria internet não passavam
de ferramentas para o controle estatal. As multinacionais só
mantinham o seu status de independência graças aos arranjos
políticos e diplomáticos. Como país “neutro”, o Brasil negociava
proteínas com a voraz China, exportava tecidos para
a Europa, petróleo e minérios para EUA a preços cômodos.
Os empréstimos com os bancos internacionais
cresciam na mesma medida das dívidas. O superávit crescia
para engordar os banqueiros e especuladores de Wall Street,
pois os cortes orçamentários serviam para isso: saldar as
dívidas da União com os credores externos. Era um lamaçal
de corrupção aliada a incompetência administrativa, e pelos
cantos mais obscuros da direita, os menos conservadores,
sussurravam como a ESG conseguia formar tão bons opressores
e tão maus gestores?
Vitor conhecia tudo isso, era um ex-militar, chegou
ao posto de sargento no Exército, até se envolver com os
militares de esquerda. O Tenentismo nunca morreu dentro
das Forças Armadas. Os movimentos insurrecionais pipocavam
todos os anos dentro do Exército e da Marinha, com
menos absorção na Aeronáutica, de todas, a mais fiel das forças
militares do país.
Quando operava como ciberterrorista, agia isolado,
mas também sem foco. Quando a Br-68 tomou conhecimento
dos seus talentos, foi acionado por um dos integrantes.
Rejeitou as primeiras propostas, mas no fim, acabou aceitando
e se juntando a célula com liderança de Samuel, um
marxista-leninista que acreditava no foquismo para manter
a revolução ativa.
Os militares haviam desfechado um “golpe dentro
do golpe” a cada mudança na Constituição. O último Ato
Adicional nº 666 preconizava total e restrito controle do
Estado brasileiro no acesso, processamento, armazenamento
e exposição de dados digitais, nacionais ou estrangeiros,
por tempo indeterminado. Isso nunca impediu os terminais
piratas de atuarem na internet. Pessoas como Vitor conseguiam
muitos terminais piratas graças a fragilidade da segurança
nas fronteiras. Com o terminal, só era necessário
saber criar uma overline e atuar na rede, seja hackeando ou
crackeando as redes.
Vitor acendeu seu cigarro, soltou a fumaça cinzenta
com tossidas leves, era um entardecer mais triste que já assistira,
não só pela cor mortiça do céu cravejado de luz pontilhada
do sol trespassando os arranha-estrelas, mas porque
as nuvens acima eram formadas por concentrações de gases
mortíferos expelidos por fábricas. Não ficaria para assistir
à noite chegar esvoaçando coberta por uma mortalha, os
corpos celestes não eram mais visíveis a olho nu há muitos
anos, nem se lembrava mais como eram, se eram pontinhos
brilhantes ou algo diferente...
Relaxou os ombros largos, bateu o indicador segurando
o cigarro na mureta da laje. Estava num dos complexos
de favela mais perigoso da cidade. O crime organizado
também tinha interesse na dissolução do Estado de Segurança
Nacional, os militares e políticos exigiam subornos altos
para as operações. Parte do dinheiro ganho com a desgraça
da população maltrapilha e esfarrapada ia para contas correntes
em Hong Kong, na Suíça e nas Bahamas, os baixos
impostos faziam o dinheiro render.
Vitor ficou imaginando quantos zeros havia na
conta do atual presidente em seu banco em Cingapura. Alguém
tocou em seu ombro, a bela garota pôs uma cerveja na
mureta e ofereceu um sorriso irônico. Na outra mão, estava
com um copo de vinho barato, bebida suficiente para dar
aquelas ressacas com dor de cabeça interminável.
Betisa era magra e tinha um aparelho dentário polido
em dentes brancos como os prédios caiados antes que a
cárie faça suas primeiras pichações. Quando ficava nervosa,
tinha o costume de assoviar o S, seu passado carioca nunca
saíra dela. Era uma das melhores da equipe, capaz de criar
camadas de overline dentro do ciberespaço com pro-sincro defasados.
Todos confiavam suas vidas a ela, caso o operador
de terminal deles não conseguissem tirá-los de lá.
Ele virou-se, mas manteve distância, tinha vergonha
que o seu hálito de nicotina a afastasse de novo. Tomou
a cerveja em goles regulares, tinha gosto de milho e não de
cevada. O álcool fazia os dentes doer, o sabor era ruim, e
quando girava o gargalo, a bebida espumava como um cachorro-
louco. Uma revoada de pombos despontou no horizonte,
cena rara naqueles tempos, animais estavam menos
preparados para o capitalismo do que os seres humanos.
— Quando eu era menor, meu pai me levou para a
Europa. Lá eles conservam a vida animal que resta — disse
ela limpando o canto da boca —, mas não sei porque preservar
aquilo que já mataram há muito tempo.
— Todo assassino precisa de um souvenir.
— Eh, talvez seja isso. — Os olhos dela brilhavam
cada vez mais e não era a bebida.
— Porque você entrou nessa? — perguntou ele
constrangido. — Sua família deve ter lhe dado tudo, eu entendo
porque eu e Samuel estamos nessa, mas e você? — Vitor
estava tentando ser realista sem ser inconveniente.
Ela tomou a cerveja de sua mão e bebeu com uma
gula sexy e disse:
— O que o faz pensar que somos diferentes? — perguntou
ela em desafio e completou: — Se nenhum de nós
tem liberdade, que diferença faz quanto eu tenho na conta ou
não? Não pense que foi tão fácil pensar desse modo. Fiz faculdade
de Medicina na USP, meu querido, desde a infância
fui lobotomizada por minha família, pela Igreja e pelo Estado.
Crenças convergindo para a minha morte cerebral, anos
após anos — disse ela bebendo o resto da cerveja e batendo a
garrafa vazia na mureta de blocos sem reboco —, eu, eu me
sinto uma idiota hoje, sabia... se há uma forma de produzir
riquezas para todos, ou ao menos, para um maior número de
pessoas, não seria essa a primeira escolha das pessoas? Mas
não, estamos correndo em círculos, acorrentados no medo
da mudança...
— Tudo... pronto... pessoal
A voz vinha da porta, era Campos, namorado de
Betisa. Costumava se candidatar a operador de terminal,
mesmo com um especialista na vaga como Freitas, que recebera
treinamento na URSS. Vitor o achava esnobe e desconfiava
de seus verdadeiros objetivos dentro da Br-68, parecia
muito mais interessado em arrotar conhecimento sobre o
socialismo científico e medo de perder a namorada que chegava
a ser o elo mais fraco daquela corrente, do ponto de
vista de Vitor.
Desde que se viram, os dois não haviam se dado
bem, as investidas de Betisa não contribuíam para serem
melhores amigos. Vitor era um jovem de corpo delgado e
musculoso, com pele morena e cabelos lisos ondulados. Seu
aspecto sisudo gerava uma atração nas mulheres que nem
mesmo ele conseguia explicar, a farda dava poderes, e mesmo
depois de abandoná-la, o magnetismo sexual ainda ficava
no indivíduo.
Betisa andou de costas para a porta piscando o olho
esquerdo, Vitor riu por dentro, Campos o observava. Ele
jogou a bituca de cigarro no córrego de esgoto que escorria
malcheiroso logo abaixo e seguiu para o interior da residência.
No interior, o quarto de teto baixo e sufocante tinha
como mobília quatro poltronas reclináveis com encosto. O
couro marrom estava esfarrapado e gasto, muito parecidas
com aquelas usadas por barbeiros. Havia em cima das poltronas
óculos de Realidade Virtual com fones embutidos e
dermatrodos adesivos descartáveis com conexão li-fi.
Samuel estava ao lado de Freitas, esse último usava
uma exótica ushanka cinzenta feita com pele de algum animal
em extinção, lembrança do Kremlin. Usava óculos de
lentes redondas, a armação era finíssima. Com seus olhos lacrimejantes
e ansiosos, ele fazia as últimas leituras de dados,
preferia ser operador de terminal, pois em seu treinamento
de hacker, ao adentrar em conexão overline, sentira-se tão
enjoado que vomitou as refeições da semana inteira. Embora
já tivesse atuado no grupo como ciberguerrilheiro, preferia
a segurança e o conforto de telas holográficas e teclados 3D
táteis. O terminal Krasnaya 2.0 era um compacto slim, com
gadgets de cooler para melhorar a refrigeração, afinal aquilo
era o Brasil, não a tundra siberiana.
— Bem, todos reunidos... — falou Samuel dentro de
uma camisa sem manga branca com mancha de ketchup. —
Vitor, você é um dos melhores crackers que eu já vi, vamos
contar com seu talento hoje.
— Você deveria fazer um discurso Samuel — falou
campos erguendo um copo de vinho.
— É verdade, uma operação dessas sem discurso
não é uma operação de verdade — interveio Betisa sorridente.
Freitas puxou um coro pedindo discurso, Samuel
então pigarreou e disse agitando os braços:
— Senhores... e senhorita, talvez esse seja um pequeno
passo para a Br-68, mas será um grande passo para o
Brasil. — A ironia ali estava no fato de Samuel ser um sujeito
pragmático que nunca se permitiu desviar de seus objetivos.
Com aplausos efusivos, todos se dirigiram à frente
de suas poltronas. Vitor fez sinal com a cabeça. Todos sentaram
em seus respectivos assentos, puseram os dermatrodos
adesivos na nuca, nas articulações dos cotovelos e dos joelhos.
Encaixando os óculos de RV na cabeça, ajustaram as
poltronas para permanecer como um leito. Freitas ativou a
conexão overline e fez a contagem regressiva: 5... 4... 3... 2...
No início, houve uma luz forte, o quarto desapareceu
e os sentidos pararam de funcionar por alguns segundos,
quando retornaram, era com uma profunda hipersensibilidade
que ia se modelando aos poucos. O ciberverso se
dobrava sobre si mesmo em formas de números e equações
matemáticas algorítmicas. Aos poucos a massa disforme foi
se tornando um imenso espaço vazio e negro, a frente, uma
muralha infinitesimal de dados escorria como uma catarata
de cima para baixo. Os dados algorítmicos eram verdes fluorescentes
e semitransparentes, mas através deles, não se enxergava
mais do que o próprio reflexo de quem observasse.
A conexão dava a eles três minutos para invadir o Database
do Estado de Segurança Nacional do Brasil e expor os crimes
contra a humanidade perpetrados no país.
Os quatro seres eram agora corpos amorfos e
multicoloridos, compostos de dados decodificados, uma camuflagem
de dados inteligentes que permitiam que se passassem
por componentes do sistema de defesa. A parede a
frente deles era o limite do firewall, a intrusão ocorreria num
processo de sobreposição transcodificadora de dados randômicos,
depurar uma sequência de dados, depois reescrevê-
-los para permitir uma passagem segura, e de lá roubar todas
as informações de que precisassem.
— Preparados? — disse Betisa.
— SIM! — gritaram os demais.
Os quatro apoiaram suas mãos nas paredes e iniciaram
as transferências, a parede de dados sofreu uma leve
deformação e os pontos de contatos adquiriam um tom vermelho
sangue. Samuel com seu discurso motivacional berrou:
— Vamos camaradas, vamos abrir esse mar de dados
como Moisés abriu o Mar Vermelho.
Vitor sorriu por dentro, um ateu fazendo uma citação
da Bíblia de modo tão preciso era estranho naquela situação.
— Vitor, sua taxa de transferência está em modulação
baixa, desse jeito você vai sofrer com deformação de
resolução — disse a garota preocupada.
— Tudo bem. Aumentando taxa de transferência
para 2 TB — disse ele como resposta.
Quanto mais a parede se tornava vermelha, mais
sólida e quebradiça ela se tornava. O vermelho já cobria uma
área de dois metros quadrados. Um som estridente e agudo
percorreu a parede. Um feixe de luz prateado descia, era a
chamada “guilhotina”, dois minutos haviam se passado e uma
action-counter já estava sendo usada. A overline ia retardar o
avanço dela, mas após o último minuto, quem não tivesse
conseguido invadir o firewall, estaria morto pela guilhotina,
que desmantelaria qualquer coisa que fosse detectada como
agente viral.
O som ficava cada vez mais próximo, entretanto,
Campos não estava conseguindo se concentrar. De todos, o
que menos avançava era ele, e a transcodificação exigia muito
do indivíduo, principalmente em matemática e álgebra.
Mas além do talento com cálculos, a concentração era essencial.
Era o mais falastrão do grupo, mas em termos de ação,
ele era mais reticente.
Vitor sempre soube que se algo um dia desse errado,
seria culpa de Campos. Enquanto todos estavam prestes
a adentrar no Database, Campos ainda não havia transcodificados
metade dos seus dados. Quando a guilhotina descesse
sobre ele, seria o seu fim. Restava apenas trinta segundos.
— Rápido amor, rápido... — dizia Betisa repetidamente.
— Eu não vou conseguir, tem algo errado com
meus óculos, tô com baixa resolução desde o momento que
cheguei aqui — dizia ele. — Isso não é possível, eu nunca
errei uma sequência de algol, droga!
— Campos, entra logo nessa merda! — gritou Samuel.
Um clarão prateado cegou a todos, quando voltaram
a enxergar, estavam todos no quarto. Betisa abriu os
olhos. Seu rosto colado ao piso de cimento frio e poroso, o
que havia acontecido? Campos estava morto, isso era uma
terrível realidade.
Ela ergueu-se, sem que ninguém lhe ajudasse. O
pequeno quarto estava abarrotado de pessoas, que utilizavam
fardas com recortes e vincos perfeitos. Andavam de um
lado para o outro, um deles vestido de terno e gravata tirava
fotos com um flash absurdo, que iluminava todo o quarto
como um trovão. Alguém a agarrou pelos ombros e a fez
sentar.
Ela viu Vitor, lançou lhe um olhar de surpresa que
não foi correspondido. Betisa ficou desolada. Empoleirado
na mesa, Vitor fumava o seu cigarro despreocupado. Samuel
não estava lá, Freitas estava deitado sobre a mesa, com um
filete de sangue escorrendo do alto da cabeça, a poça de sangue
no chão já estava coagulando.
Ela ficou sem voz, o choro ficou preso na garganta.
Campos estava num saco preto bem ao seu lado, o legista fechava
o zíper. Betisa se pôs a gorgolejar saliva, e não aguentando
mais, vomitou. Com os olhos nublados de lágrimas,
ela se ergueu com intenção de desferir um soco em Vitor,
mas ele levantou-se e a chutou no estômago. Ela caiu por
cima da banqueta, os demais riram. Com as mãos sobre a
barriga, ela buscou levantar-se. O cabelo de Betisa recaiu sobre
os seus olhos e ela disse:
— Esperava tudo de você Vitor, menos isso, quanto
te custou nossas cabeças?
Vitor foi até ela e apagou o cigarro em sua bochecha.
Ela gritou, ele a silenciou com um tapa no rosto. Vitor
ficou de pé, observando àquela pobre garota se afogando em
sua própria dor. Era lastimável como a dor e a tortura dobrava
as pessoas.
— Você está sendo presa por práticas de ciberterrorismo
e subversão.
— Ligue para o meu pai, eu desejo falar com o General
Mourão — disse ela em desespero, era sua cartada final.
— Me dê a chance de explicar a ele.
— Engraçado, Mourão disse que não reconhece
mais nenhuma filha chamada Betisa. — Vitor estava com os
olhos fitos, eram inexpressivos e vazios. — Vou lhe dizer o
que vai acontecer a partir de agora: Campos foi morto por
aquilo a quem vocês ciberterroristas chamam de “guilhotina”,
Freitas foi pego em flagrante e foi posto para dormir...
Samuel está sendo levado para o nosso centro para interrogação,
você será interrogada aqui mesmo... — Vitor deu as
costas e puxou mais um cigarro. — Rapazes, lembrem-se, a
menina é filha de general, não a machuquem tanto.
Vitor caminhou até a porta e saiu, deixando para
trás Betisa e oito militares bem criativos do SNI.