Frustração

Fantasia
Outubro de 2019
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Nas Mãos da Morte

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Frustração
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Desde a primeira vez que aprendi sobre a morte, sabia quando e como iria morrer.

Não sabia dizer como é que sabia, mas sabia, do mesmo modo que sabia quem era, ou das coisas que gostava e não gostava. Ninguém precisou me dizer, apenas sabia, sem a menor sombra de dúvida ou possibilidade de questionamento.

A data da minha morte era 22 de outubro do ano em que completaria 100 anos. Não parecia existir nada em particular relacionado a esse momento específico da vida, nada naquele dia que parecesse ligado aos eventos que levariam à minha morte. Até onde eu sabia, era apenas uma data de expiração.

A causa da morte, também, não tinha nada de particular: sabia que teria uma parada cardíaca e que, enquanto acontecesse, apesar de tudo, estaria sentindo tranquilidade e até certa felicidade. Outros detalhes me escapavam, tirando qualquer contexto, o que me dava motivo para sentir certa frustração.

Só não era motivo maior que a minha própria morte. Não o fato de que ela ocorreria — isso, eu havia superado cedo em minha vida —, mas sim o modo frustrantemente comum como se daria. Esperava que a possibilidade de previsão de minha morte implicasse em algo importante, em alguma grandiosidade, mas parecia que não havia nada de especial correlacionando uma coisa e outra.

Descobri, cedo, que essa minha percepção sobre a morte era indiscutível em sua certeza e indiscutível com qualquer outra pessoa, pois todos consideravam loucura, especialmente porque o modo como eu pautava minha vida em relação à morte era completamente diferente da de qualquer outra pessoa.

Se não houvesse tido a certeza de minha morte ainda cedo, talvez fosse diferente, mas o conhecimento de meu tempo exato no mundo me deu uma tranquilidade muito grande em relação a planos e expectativas. Descobri, quase tão cedo quanto entendi que sabia de meu fim, que os outros seres humanos se comportavam quase que exclusivamente por conta da falta de conhecimento de informações sobre suas mortes.

Mas é justo dizer que é difícil viver em um mundo em que não se pode usar a mesma lógica de existência que o resto das pessoas. Em minha adolescência, ainda que compreendesse as diferenças básicas e visse certas vantagens em sua existência, a pressão social fez com que odiasse meu conhecimento e, por consequência, a existência.

Meu tempo de vida, mesmo vasto, parecia subitamente insuficiente. Suas possibilidades, mesmo que amplas e positivas, pareciam restritivas. Foi tudo isso que me levou a, certa noite, testar as possibilidades da percepção e da morte que me haviam sido impostas, e saltei do alto de um prédio.

O resultado não foi positivo, mas não foi a morte.

Em uma cama de hospital, horas depois, atingi um estado de consciência específico, que vinha da confirmação de algo que já sabia intuitivamente, contra todas as indicações de toda a realidade e das outras pessoas: eu não morreria até a data em que sabia que iria morrer.

No tempo no hospital, enquanto meus ossos quebrados se curavam, ainda tive tempo para refletir sobre as circunstâncias da situação de morte que intui, e ainda que o espaço ao meu redor na ocasião da morte não ficasse claro, nessa memória que ainda não havia acontecido, notei alguns aspectos interessantes: meu corpo era saudável, com todos os membros e detalhes, e tudo funcionando com uma performance até que superior ao esperado para alguém de 100 anos de idade.

Havia manchas na pele e cicatrizes indicando feridas antigas, mas as pernas quebradas na queda do prédio estavam intactas, como se nunca tivesse caído. E eu sabia que havia outras coisas que tinham acontecido, marcadas ali naquele corpo velho, em mensagens cifradas em alterações diminutas na pele, músculos e órgãos. Mas a principal mensagem era apenas uma: não havia dano debilitante grande demais que me pudesse ser causado, e não havia morte que viria antes da hora marcada.

Saí do hospital e enfrentei o tratamento posterior com a certeza de que usaria isso a meu favor. E na próxima vez que me foi possível, desafiei a morte outra vez, só que sem intenção de morrer, e com uma plateia e com a imprensa.

Escalar um prédio sem cordas pode ter sido exagero, mas deu certo. Os desafios de moto, nem tanto. Abrir o paraquedas no limite do tempo foi mais fácil do que o esperado, e as práticas de voo livre tiveram resultados mistos. Era fácil relaxar fazendo esses absurdos, pois tudo que tinha a temer era a dor. Meu corpo parecia saber disso tão bem como a mente, e os sentimentos se seguiram.

Se o salto do prédio, inicialmente, havia apenas me garantido uma notinha nos jornais, todos os feitos com plateia foram alvo de admiração, reconhecimento e patrocínios crescentes. Mesmo que não tivesse a habilidade dos esportistas e daqueles que faziam todo tipo de loucura pelos mesmos fins e pelos mesmos métodos, minha performance, no que mais conquistava o público, era infinitamente superior, simplesmente porque eu não temia a morte.

Com o tempo, compreendi: quando o público assistia ao desafio de um especialista, a superação do desafio e a habilidade física ou técnica eram apenas parte do processo. O ato de encarar a morte, o risco e tudo que acompanhava era boa parte do que interessava àqueles que assistiam. A chance de morte era uma esperança secreta, tão intensa, contraditoriamente, quanto o alivio de quando ela não chegava.

Só que normalmente esse risco e o medo eram implicitamente divididos. Mesmo os mais habilidosos desafiadores da morte demonstravam sinais de resistência, mesmo que extremamente discretos, mesmo que inconscientes. E as pessoas reconheciam isso, também por vezes inconscientemente. Quando eram os meus desafios, depois de algum tempo até os aspectos menos conscientes de minha mente sabiam que eu não morreria ali, então minha entrega era superior, mesmo que não pilotasse, corresse ou saltasse tão bem quanto os outros. Quando o tempo passou e, com a prática, desenvolvi tais habilidades, os desafios seguiam aumentando de intensidade.

Em minha vida adulta, as dúvidas e pretensões da adolescência passaram completamente. Não tentava mais falar a nenhuma das pessoas sobre o conhecimento que tinha do meu próprio fim. Sabia que isso poderia prejudicar minha imagem, e de todo modo ninguém compreenderia. Deixei de me entristecer por não ser uma pessoa normal. Na verdade, passei até a me sentir superior aos outros, distante deles.

A visão do mundo de quem sabe que não morrerá até uma data específica é peculiar, especialmente cercando-se de pessoas que frequentemente temem a morte. Eu tinha a capacidade única e perfeita de mapear toda a minha vida. Ainda mais quando conquistei a fortuna com essa imortalidade. Sabia tudo que queria fazer, todos os países que conheceria, todos os pratos que experimentaria. Minhas relações humanas também eram peculiares, me dando facilidade tanto de envolvimento quanto de dispensar relacionamentos de todo tipo, simplesmente por minha visão ampla de como eles se encaixariam na vida.

As outras pessoas logo passaram a me parecer aceleradas demais, ansiosas demais, e, com o tempo, passei a me afastar, ganhando a simpatia distante das celebridades, só que com uma intensidade e motivação diferentes das de todas que havia visto no passado.

Ocasionalmente, claro, eu me feria. Também era suscetível a dores e doenças, bem como todas as outras mazelas da humanidade, mas enfrentava tudo isso com um pragmatismo único, e sem qualquer medo. Temer e querer evitar a dor é muito diferente quando se sabe que não vai morrer, especialmente quando se sabe que o sofrimento em questão não tem conexão com a morte.

Mas ainda havia uma frustração específica com o modo como minha morte aconteceria. Imaginava que era uma frustração universal: para mim, todos os seres humanos desejavam que suas vidas tivessem um significado, uma narrativa coerente que protagonizam, e nisso a morte era muito importante. Entendia que ainda que muitos pudessem invejar minha morte tranquila, a ideia de ter uma morte comum, até chata, certamente incomodaria outros tantos, como me incomodava. Ademais, isso nem me dava um motivo saudável de revolta, de algo para tentar impedir, de algo para evitar.

O sentimento evoluiu em incômodo na ocasião em que eu estava em uma maca dentro de um helicóptero de resgate. Havia sofrido um acidente de esqui, e era a única pessoa que não parecia se preocupar com os ferimentos e fraturas, conforme o transporte emergencial para o hospital era feito. Foi em algum momento desse transporte que meus olhos se encontraram com os de um médico, e pela primeira vez enxerguei a Morte encarando de volta.

Não era uma metáfora, de modo algum. Tinha certeza de que, por trás daqueles olhos, havia a própria Morte, encarando meu corpo quebrado com interesse. Ela vestia o corpo do médico, visitando o local sem que ele sequer percebesse. Então, apesar do corpo imobilizado e ferido, falei à Morte, e minha voz se fez surpreendentemente clara:

— Que brincadeira é essa?

— A existência? — perguntou a Morte.

— Não! O que você pensa que está fazendo aqui?

— Eu moro aqui — respondeu a Morte, com um tom que parecia indicar confusão genuína.

Pisquei algumas vezes, tentando apurar os sentidos. Tinha certeza de que a Morte havia me respondido, mas minha racionalidade manifestou-se para questionar a veracidade daquele momento. O médico continuava voltado à minha direção, um leve ar de sorriso na expressão e a presença atrás dos olhos.

— Dentro desse médico? Você mora dentro de um médico? Isso é alguma piada?

A Morte riu, em seguida. Não era a voz do médico que ria, nem nenhuma que parecesse humana. Era o som do ar ao redor, e dos rotores do helicóptero. Foi então que percebi que quando respondeu que estava ali, ela também não usou a boca ou a voz do médico.

— A Morte existe dentro de tudo que vive — disse ela, finalmente, e sua voz era o somatório de sons da aparelhagem médica, da respiração de todos no helicóptero, dos sons do motor e de inúmeros outros ruídos. Não era como se a Morte falasse, propriamente, mas como se conduzisse uma pequena cacofonia para que essa dissesse o que ela precisava.

— Então, você também está dentro de mim? — perguntei, sem incômodo algum.

— Mas é claro.

— E por que é que você está me contando isso?

Talvez a Morte, através do médico, tivesse sorrido. Talvez fosse um efeito das luzes e sombras. Era difícil dizer.

— Você é um tipo de experimento.

— Por quê?

— Por que não?

Nessa noite, não nos falaram mais. Ficamos em silêncio por algum tempo, e momentos mais tarde a Morte parecia ter se ocultado novamente no corpo do médico, que seguia assegurando que tudo ficaria bem e seguindo em seus afazeres. Ninguém no helicóptero percebeu aquela conversa.


***


Nos próximos dias, no hospital, podia enxergar a Morte à espreita. Não era ameaça, nem provocação. Sentia que ela estava se fazendo disponível para conversarmos assim que aceitasse. E era verdade: estava atrás dos olhos de cada paciente, médico, enfermeiro e visitante. Quando consegui me levantar e ir à janela, podia enxergá-la nos transeuntes na rua, nos seguranças do hospital, na equipe do restaurante.

Algum tempo depois, encontrei a Morte em um parque.

Ainda estava terminando de me recuperar das últimas fraturas, mas já conseguia andar com alguma independência. A Morte estava em uma jovem que lia um livro, sentada em um dos bancos. Olhei de esguelha e a vi atrás dos olhos que, em vez de se ocuparem com o livro, pareciam apenas esperar minha abordagem.

— Eu acho injusto, isso que você fez comigo.

Em algum lugar do parque, um cortador de grama foi ligado, adicionando um zumbido ao som do vento, das folhas e dos pássaros. Foram todos esses sons que falaram o que dizia a Morte.

— Injusto? Com você ou com os outros?

Ia dizer “comigo”, mas hesitei. Talvez fosse injusto com todos. Por um instante, não tive certeza.

— Não sei. Mas sei que não gosto disso.

— Não?

— Não gosto da ideia de saber o final.

A jovem fechou o livro e apoiou-o em suas pernas. Ela olhava para a frente, para um ponto bem longe. Novamente, não tive certeza se o sorriso era da Morte ou não.

— A maioria dos mortais diria o contrário. Sei que você entende muito bem as vantagens que isso te garante. Além disso, você terá a morte que muitas pessoas desejam! Vida longa e uma morte rápida e feliz!

— Pois justamente: não gosto da ideia de felicidade final porque não me diz nada. Não me dá nenhuma garantia, nenhum significado. Posso viver uma vida inteira e morrer sem mais nem menos.

Lá longe, o cortador de grama foi desativado. A voz da Morte seguiu do mesmo modo, trabalhando os outros sons.

— Você sabe que não será assim. Você já conseguiu acessar a saúde relativa de seu corpo e sua felicidade naquele momento.

— Mas é justamente essa a falta de garantia que eu tenho: eu posso simplesmente ter me tornado uma pessoa complacente e abandonar qualquer pretensão de evolução, de grandeza. Isso é pior, para mim, do que a ideia do meu prazo de validade. Isso parece enfraquecer o valor da minha existência. Isso parece atuar retroativamente contra tudo que fiz, fui e pensei.

A jovem se levantou, se espreguiçou e olhou ao redor, parecendo distraída.

— Você está me dizendo que preferia ter uma morte heroica? Queria morrer em uma explosão? Com um tiro? Salvando uma vida? Em nome de uma causa? Isso lhe traria satisfação?

Pensei por alguns instantes.

— Creio que isso ao menos me daria o conforto de saber que havia significado.

A jovem então se afastou, sem olhar para trás, e a Morte não me deu qualquer resposta.


***


Dias depois, havia acordado sem qualquer motivo aparente durante a madrugada. Havia um besouro no teto, exatamente à minha frente, e mesmo que não conseguisse enxergar seus olhos pequenos na penumbra, sabia que enxergava a Morte naquele pequeno ser.

— Boa noite.

— Boa noite — respondeu a Morte, através do som distante de carros na rua, do vento noturno, do estalar de um móvel de madeira, das asas de insetos.

— Andei pensando, e creio que compreendi mais minha frustração.

— É mesmo?

O modo como a Morte costumava sempre fazer essas perguntas vagas era um pouco irritante, mas algo me dizia que havia algo de sua natureza que tornava isso inescapável.

— Sim. Creio que seja injusto e frustrante porque, até onde eu sei, sou a única pessoa com este sofrimento específico. Mesmo que eu conseguisse que alguém compreendesse e acreditasse, jamais conseguiriam se conectar comigo verdadeiramente. Eu perdi uma das coisas que me une às outras pessoas, que é o desconhecimento da morte.

— Entendo. Mas e seu desejo de grandeza?

— Ele ainda está aqui, mas é justamente esse o problema: as outras pessoas podem sonhar com grandeza até o fim, exatamente por não conhecerem o fim. Não tenho mais isso.

O besouro se agitou, voou em direção à janela e chocou-se contra o vidro repetidamente, até pousar sobre a superfície. Não pude deixar de me perguntar como é que ele havia entrado, se estava tudo fechado.

— Se me permite — comentou a Morte, sua voz acentuada pelos sons das asas irritadas do besouro —, devo dizer que você não compreendeu a dimensão total da vantagem que lhe foi dada.

Não respondi. O besouro tentou outra vez ultrapassar o vidro, sem sucesso.

— Você pode, facilmente — continuou a voz —, chegar ao fim de sua vida com felicidade simplesmente porque conquistou toda a satisfação que podia. Sua morte pode ser simples e tranquila independentemente disso.

— Quando você diz essas coisas, sinto como se estivesse tentando me manipular, como se me empurrasse em direção à complacência. Como se tudo fosse um golpe de longo prazo. Eu não tenho garantia alguma.

Levantei-me, caminhei até a janela. O besouro, notando minha presença, redobrou os esforços, deslocando-se pela parede, antes de sentar-se outra vez no vidro, exausto ou resignado.

— Vamos dizer assim: você tem o prazo final de sua vida, que será longa, e tem um desejo de grandeza. Você tem medo de que sua grandeza não seja perene, de que sua satisfação não seja plena. Você não vai deixar de tentar conquistar essa grandeza e satisfação.

— Certo.

— Praticamente nenhuma das pessoas antes de você teve qualquer garantia. Nenhuma das pessoas que existe, dessas de quem você se desconectou, tem essa garantia. Você tem a opção de continuar buscando, aproveitando seu privilégio de não ter medo da morte, ou sofrer com isso.

O besouro na janela parou de se mover. Poderia esmagá-lo com facilidade, de onde estava. Em vez disso, abri a trava e a deslizei para o lado lentamente até que o inseto, zumbindo, se agitou e escapou pela passagem aberta.


***


A próxima vez que conversei com a Morte foi alguns meses depois.

Havia largado tudo que fazia e, usando meus recursos e conhecimento, atravessei o mundo para encontrar pessoas a quem a Morte havia reservado fins que me pareciam indignos. Morrer de doença, de fome, ou como vítima em uma guerra, parecia muito mais frustrante do que meu possível fim complacente.

E lá entendi, verdadeiramente, o poder que tinha. Em algum sentido, conseguiu me conectar às outras pessoas, também. Me reconheciam, e abraçavam, e demonstravam gratidão. Salvei várias vidas, e perdi outras tantas para a Morte, que continuava ocasionalmente surgindo por trás de olhos para me lembrar de que seguia à espreita, pronta para novas perguntas com seu experimento favorito.

Não me importava mais. De fato, sentia que tinha algo para perguntar, mas o dia a dia ativo e muitas vezes desesperado fazia com que me preocupasse muito menos com questões abstratas como “significado” e "grandeza". Havia a possibilidade de vida ou morte de outras pessoas, minhas condições de melhorar as possibilidades de vida dessas pessoas, e nada mais. Assim, a dúvida que vinha crescendo em meu interior realmente só floresceu e permitiu-se ser reconhecida quando a própria Morte voltou a me procurar.

Foi com uma voz de moscas, vento, crepitar de chamas e música que ela falou, durante uma festa de um povoado miserável, em que todos cantavam apesar do sofrimento. Podia sentir a presença dela atrás dos olhos de uma criança com a barriga inchada de vermes e a pele curtida de sol.

— Vejo que seguiu meu conselho — disse ela, parecendo satisfeita.

— Segui.

— E então?

— Há grandeza nisso, sem dúvida alguma.

— É o que você queria?

Dei de ombros. Poderia ser uma das coisas que queria.

A festa continuava. Havia dança, música, comida e bebida. Aquelas pessoas esqueciam por alguns instantes que havia doença e fome por ali. Que a expectativa de vida era baixíssima, que os anciões da vila tinham 50 anos, e raramente passavam disso, e que chegar em tal idade, por ali, era um luxo enorme.

— Você acha que seria justo ou injusto com eles se soubessem como e quando iriam morrer?

A pergunta da Morte parecia sincera. Não era um teste de minha moralidade, mas realmente um questionamento de opinião.

— Eu não sei. Queria dizer que talvez fosse bom, se soubessem que teriam bastante tempo, mas também pode ser que, se tivessem pouco tempo, se esforçassem mais para aproveitar.

Pausei um instante, balançando a cabeça no ritmo da música cujas palavras eu desconhecia.

— Mas tem algo que queria lhe perguntar — continuei. — Não é injusto que elas já tenham destinos tão miseráveis definidos? Qual a utilidade de se existir assim?

O garoto barrigudo batia palmas e cantava, virando-se ocasionalmente para sorrir para mim. A voz da Morte vinha independente do que ele fazia.

— Destinos? Do que está falando?

Tentei não transparecer irritação, mas era difícil:

— Destinos! Como eu, com o meu! Se você define a Morte de todas as pessoas, do mesmo modo como a minha está definida, me parece muito injusto que tenham que ter existências miseráveis.

— Ah — respondeu a Morte, e por um longo tempo houve apenas a música e a dança. Quando abri a boca para insistir na cobrança, ela voltou a falar: — Você salvou a vida de várias pessoas, por estar usando o tempo de sua vida para ajudá-las. Entendo que não acredite exatamente no que me disse, caso contrário não faria nada disso.

Hesitei. A certeza com que a Morte sempre me falava era desconcertante.

— Você — continuou a Morte — supôs que existia um destino para cada uma das pessoas, simplesmente porque o seu final está definido. E supôs, assim, que talvez, em algum nível, fosse parte do seu destino fazer as coisas que está fazendo agora, e que o destino das pessoas seria receber ajuda ou não, morrerem de um jeito ou de outro, viverem mais ou menos tempo. Mas quando você tira essa conclusão, você ignora o final óbvio do raciocínio: todas as circunstâncias te levarão ao fim, mas ninguém nunca disse que as circunstâncias seriam as mesmas porque o fim é único.

A música se acelerou. Mais pessoas levantavam para se juntar à dança circular. Todos sorriam, cantavam, se divertiam.

— Eu não tenho como saber do destino alheio — disse, como a conclusão inescapável do que a Morte revelava.

— Exatamente — confirmou ela, olhando-me por trás dos olhos do menino.

— Isso é bom. Mas é complicado. O que faço?

A morte ficou em silêncio, mas a boca do menino se moveu. A voz que saiu foi a própria, infantil como deveria ser, feliz como não parecia lógico que fosse, na língua local:

— Vamos dançar?


***


Muitos anos se passaram. Como sempre acontece, começou aos poucos, mas logo décadas se superavam com facilidade. Nesse tempo, havia muita vida, e muita morte, e tudo que existe entre uma coisa e outra.

Depois de algum tempo, parecia que minha vida existia em uma contagem regressiva para a morte. Mas isso não era negativo, e nem havia mais frustração em minha vida. O que era um pensamento constante se tornou raro, e a proximidade cada vez maior com o encontro final com a Morte tinha ares de uma piada amigável, da percepção de que talvez a ceifadora realmente tivesse algum truque na manga.

A presença da Morte por trás dos olhos das pessoas continuou, mas as conversas nunca voltaram, depois daquela noite de dança em torno do fogo. Não víamos necessidade. Mas voltei a pensar a respeito quando não consegui segurar o riso frente às notícias na televisão que falavam de algo que atingiria a terra. Uns chamavam de asteroide, outros de cometa, outro de meteorito, e havia muita discussão sobre definições científicas exatas só para disfarçar o fato de que era uma pedra muito, mas muito grande, que atingiria o planeta e que muita gente, ou talvez todo mundo, iria morrer. A data para o impacto seria o dia 22 de outubro do ano em que eu completaria 100 anos.

O pânico começou cedo, mas a calma conquistada em todos esses anos não alterou minha vida. Pelo contrário, minha capacidade de ajudar as pessoas e lidar com elas em seus piores momentos foi mais útil do que nunca.

E foi assim que, na noite do dia 22 de outubro, já com meus 100 anos, subi ao telhado do prédio, abri uma cadeira dobrável, sentei-me nela e relaxei, olhando para a imensa bola flamejante que parecia muito distante, apesar de tudo que os cientistas disseram. Meu corpo, como eu me lembrava daquela previsão antiga, estava surpreendentemente saudável, e eu sentia uma satisfação peculiar.

O prédio estava praticamente abandonado, e boa parte da cidade que podia evacuar havia evacuado, buscando seguranças incertas frente ao fim. Ainda havia o som de carros, de gritos, choro, buzinas, chamas e ocasionalmente sirenes e tiros.

E então a Morte me falou novamente, pela primeira vez em anos. Nesse momento, pude senti-la atrás de seus olhos, o que era natural: a Morte existe dentro de tudo que vive.

— Boa noite — disse ela.

— Boa noite. Chegou a hora, não?

— Ainda temos alguns momentos.

Admirei a pedra flamejante que traria o fim, e senti que a Morte fazia o mesmo, através de meus olhos. Ri, pensando que meu fim viria antes do impacto, e ri pensando na ironia de tudo isso, e senti que a Morte também ria, ainda que não a ouvisse através das coisas ao redor, mas simplesmente porque ela existia em meu corpo.

— Você não se cansa de fazer as coisas de modo tão irônico?

— Eu? — disse a Morte, fingindo inocência.

— Se eu soubesse sobre essa pedra espacial, teria feito tudo diferente.

— Será? Talvez. Não sei.

Ao longe, alguém gritou. Era difícil saber se havia sido uma agressão, um acidente, ou só desespero.

— O que eu fiz… Ou o que nós fizemos com essas pessoas…

— Sim?

— Se esse é o fim de todas elas, parece desperdício. Parece sem objetivo.

Um motor soou ao longe, e a Morte usou-o para fazer sua risada.

— Achei que havia se livrado desse utilitarismo.

— Perdão, força do hábito.

— Pois é. Se podia ser melhor ou pior para eles, antes do fim certo, por que nos esforçarmos para que fosse pior? Quer objetivo melhor do que aproveitar?

Não vi necessidade de responder, e nem a Morte viu necessidade de cobrar uma resposta.

Encaramos a pedra e suas cores flamejantes, e era linda.


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