Prólogo
Epílogo
Conto
Dois homens crucificados fitavam o nada. Na estrada, um homem a cavalo parou por um instante, puxando levemente as rédeas para trás. O vento contrário agitou seus cabelos e o fez sentir o odor de putrefação dos cadáveres. Fachos roxos e vermelhos cortavam o céu enquanto o sol afundava no horizonte, além das montanhas.
— Aqui ainda se preocupam com as cruzes e pregos para seus condenados — disse o homem para o cavalo, abrindo um sorriso.
Friedgard, outrora dos elurianos mas nascido na Rúnia, encarou o poente. Olhou além, para a cordilheira à distância. Com um breve agito de rédeas, seu cavalo voltou a trotar, seguindo a curva da estrada. Deixou os cadáveres para trás, esquecidos, pendurados para os abutres, desaparecendo da existência sem nome ou futuro algum. E o vazio daquelas vidas que deixaram de existir perturbou Friedgard por um momento.
Do lado oposto ao sol, surgiam entre as nuvens duas luas prateadas sobre o firmamento que enegrecia, trazendo a noite sobre as planícies da Vrásnia.
***
Parou em frente a uma taverna chamada Bode Mágico. Puxou as rédeas do cavalo para a frente e o amarrou num poste logo após descer da montaria.
— Quem vem aí? — perguntou uma voz do outro lado da rua.
Friedgard virou-se, mas não respondeu.
— Eu perguntei quem está aí.
O guarda atravessou a rua em passos apressados, aproximando-se do estranho mal iluminado por uma tocha presa à parede da taverna. Lá de dentro vinham gritos de algazarra e cheiro de carne assada. Friedgard percebeu que estava faminto.
— É surdo, por acaso?
— Vim tomar uma bebida.
— Um forasteiro, hein? — rosnou o guarda. — Acho que a caça que traz nesse saco já está apodrecendo. — Apontou com sua espada desembainhada para um saco de estopa que pendia amarrado à sela, ao lado do alforje.
O rúnio o encarou sem se importar, as duas luas refletindo em seus olhos azuis, as quais pareciam cinza sob a penumbra. Houve um breve silêncio.
— O barão não gosta de estranhos armados perambulando pelas ruas — disse o guarda, olhando por sobre o ombro do forasteiro e encarando o cabo de uma longa espada presa às costas por uma correia de couro.
— O barão também não deve gostar de seus guardas ameaçando viajantes solitários. Melhor guardar essa sua faca. Estou apenas de passagem.
— É bom que esteja — o guarda cuspiu, meio sem jeito, guardando a espada na bainha. — A guerra já traz muitas preocupações à região. Vagabundos como você devem ficar longe de encrenca. Deveria estar lá, lutando.
— E você, por que não está com os batalhões?
O guarda não respondeu, apenas devolveu o olhar cínico. Friedgard virou-se para o cavalo e abriu o alforje, procurando algo em seu interior. O guarda agora se ocupava em importunar um anão que cambaleava para fora da Bode Mágico, xingando o taberneiro e vomitando sem parar, emporcalhando a barba ruiva.
— Quem é Verni de Krotvar? — perguntou Friedgard.
O guarda deu uma risadinha e o encarou, deixando o pobre anão de lado.
— Você está em Krotvar. Verni é o filho do barão.
— Imaginei.
— Pela recompensa? É um vagabundo esperto, mas ainda assim o rapaz poderia ser filho de um general ou capitão da esquadra de Vrásnia. Dizem que pagam bem a eles.
— Melhor seria se o moleque fosse filho de algum capitão da esquadra — disse o forasteiro com indiferença. — Daqueles navios que cruzam o Mar de Dhôr.
— Por quê?
— Quero ir para Findom.
— Bah, então pensa em trocar o serviço por uma passagem? — disse o guarda.
— Salvar o filho do barão, hein? — disse o anão, e vomitou de novo. — Chegou querendo bancar o herói por estas bandas, hein?
— Só quero uma passagem para Findom.
— Deixe disso. — O bêbado soluçou. — Entre para tomar uns tragos comigo. Não há melhor vinho élfico em toda a região.
Friedgard ignorou. Indiferente, o guarda pigarreou e disse:
— Fale com Warsir, o general dos lanceiros.
Houve um faiscar nos olhos ferozes de Friedgard. Um sorriso quase imperceptível curvou seus lábios, nada mais que isso. No silêncio que se seguiu, o guarda pareceu entender que Friedgard queria saber onde encontrar o tal general. Então, complementou:
— Mora subindo essa ladeira, mas essas horas não conseguirá falar com o homem. Ele voltou a cavalo recentemente para ter com o barão sobre assuntos de Estado, pelo que ouvi dizer. Parece que recrutou um novo batalhão, também. Para voltar aos campos de sangue do leste. É possível que ele parta logo, então é melhor se apressar. — O guarda já ia dando meia-volta para voltar a gritar com o anão. — Não vá mergulhar no vinho, como os vagabundos fazem, e perder a chance de falar com o general amanhã.
Friedgard não respondeu. Apenas encarou as luas gêmeas no céu.
II
Estava sentado em seu gabinete. Era uma sala ampla, iluminada pelas velas de dois castiçais de prata e pela luz das luas que adentrava pela janela.
Warsir bebericava um vinho doce enquanto mexia preguiçosamente nas folhas de um livro. Parecia realmente se importar com os alistados marcados nas páginas. Fazia uma pequena marca vermelha em alguns nomes. Estava calor. O cabelo negro, cortado na altura dos ombros, estava preso para trás, e o suor escorria pela nuca. Era um homem alto, de idade, robusto como um touro, que fazia a mesa de escritório parecer pequena.
O silêncio reinava quase absoluto, somente incomodado pelo cricrilar de um grilo lá fora. Às vezes, uma coruja piava sombriamente.
— General dos lanceiros — soou a voz por detrás da penumbra.
O general sobressaltou-se na cadeira, soltando o copo, seus dedos ágeis buscando a espada sobre a mesa. Mas a arma não estava nem sobre a mesa nem em sua bainha. Então, percebeu que a lâmina estava pendurada no cinturão de couro, no cabide, do lado oposto da sala. Percebendo a agitação do general, o estranho sorriu com o canto da boca e apressou-se em dizer:
— Calma. Estou aqui como amigo.
Revelou-se das sombras uma figura. Alto e magro, mas forte, os músculos se delineando sob a pele. O general fitou aqueles olhos azuis que mais pareciam duas esferas metálicas, encarando-o.
— Quem é você? — Foi a pergunta de Warsir. Seus dedos crispavam.
O estranho nem respondeu. Deu um passo à frente, a luz dos castiçais delineando o rosto magro e ossudo. Warsir sentiu a nuca gelar, mas não demonstrou medo algum; seus olhos ainda passavam a calma de um sacerdote.
— Como entrou aqui?
— Não sou nenhum dos seus homens, Warsir. Não sou um camponês que é forçado a pegar em lanças e morrer por Vrásnia. Para mim foi fácil subir pela janela aberta; os guardas por aqui tagarelam demais — falou, maneando a cabeça para fora, onde, mesmo na distância, era possível ouvir a cantoria dos bardos na Bode Mágico.
O comentário incomodou o general, mas ele estava atento às palavras. Esperou o invasor continuar a fala, visto que ele próprio nada tinha a responder.
— Fui criado nas colinas do sul.
Seus olhos faiscaram ao dizer. Deu um sorriso triste, quase imperceptível.
— Rúnia? — quis saber Warsir.
Escapou então um riso dos lábios do homem em pé, e emendou palavras à reação:
— Antes fosse. — Deu mais um passo. Seu rosto cadavérico vincou-se mais ainda sob a luz próxima. Era belo, mas a magreza gritante o tornava bizarro. — Eu cresci entre os elurianos..., mas, sim, nasci na Rúnia.
Warsir semicerrou os olhos. Debruçou-se sobre a mesa, tentando se aproximar e ver melhor o homem à sua frente. Não conseguia acreditar em nenhuma das conjecturas que surgiam involuntariamente em seu cérebro. Sua razão, sua experiência e a feroz desconfiança dos homens velhos fizeram com que ele afastasse tais pensamentos.
Houve silêncio na sala. Um vento fresco entrou pela janela e fez tremular a chama das velas, agitando levemente o cabelo sujo de Friedgard.
— Qual o seu nome? — indagou o general. — E como sabe quem eu sou?
— Vi o contrato sobre resgatar o filho do barão — disse Friedgard, ignorando completamente a primeira pergunta. — Perguntei a um filho da puta numa taverna onde poderia encontrar informações. Não é fácil falar com o barão por aqui, imagino.
O general logo viu a oportunidade de retomar sua primeira pergunta. Precisava saber o nome daquele estranho para saciar sua desconfiança crescente.
— Está bem — ele disse. — O contrato ainda está em vigência, é verdade. E você certamente poderá tentar cumpri-lo. Preciso que informe...
— Não há muito a ser cumprido — interrompeu Friedgard.
Warsir o encarou, atônito com a secura das palavras do estrangeiro.
— E por que não?
— Verni, o filho do barão, está morto.
— Acha isso mesmo?
— É certeza.
Silêncio. O vento balançou as chamas das velas novamente.
— Eu o encontrei quando vinha para cá — completou Friedgard.
— Por Týr... — Os olhos do general pareceram marejar; sua postura de velho tigre diminuiu para a de um gato ressentido. — Onde? Pelos deuses!
— Não conheço os mapas da Vrásnia — respondeu secamente o estranho. — Foi depois das fazendas e campinas ao sul. Eu seguia para o norte e atravessei essa região.
— Mas fizemos buscas na campina.
— Eu não terminei. — Soou grosseira a resposta, mas não passou de uma feroz sinceridade. — Depois da campina, atravessei um pântano. Na verdade, fui obrigado a entrar lá, perseguindo um cervo que caçava. Estava passando fome e não via boa caça havia dias.
O general ouvia atentamente, interessado.
— Nem queria ter adentrado aquele mangue infernal. Mas foi bom já tê-lo feito. Teria de entrar lá de qualquer jeito, procurando o filho do barão, ao ver o contrato de busca na entrada da cidade. Meio caminho andado.
— Continue.
— Sei bem por que não procuraram lá — disse Friedgard. — Acabei encontrando o que vocês não queriam encontrar. Admito que, se eu soubesse, deixaria o contrato de lado.
Ao dizer, Friedgard levantou a lateral do gibão, puxando a camisa branca, que estava marrom, suja de brejo e sangue seco. Warsir observou bem o amplo ferimento: três filetes abertos na carne que começavam a cicatrizar.
— Precisa dar um jeito nisso — recomendou, indicando os ferimentos com um maneio de cabeça.
— Lavei num riacho, limpou bem. Estanquei o sangramento logo em seguida.
— É bom que passe algumas ervas.
— Leve-me então a uma curandeira.
Warsir concordou com um grunhido. Depois, apontou para uma cadeira em frente à sua mesa, que Friedgard ignorava até então.
— Antes, termine sua história, homem. — O general frisou bem a última palavra, mostrando que se incomodava em não poder chamar o estranho pelo nome. — Sente-se.
Friedgard ignorou o incômodo do velho e sentou-se. Deu um amargo sorriso, sublinhado por um gemido entre os dentes, em resposta à dor de contrair o abdome.
— Não voltei a ver o cervo que caçava — ele retomou a narrativa. — Mas já estava consideravelmente perdido naqueles charcos. O sol ainda estava se pondo. Conseguiria sair de lá, mas a noite apanhou-me de surpresa. Anoitece mais cedo por aqui, no norte, nesta época do ano... Eu havia me esquecido.
Warsir serviu um copo de vinho ao visitante enquanto ouvia. Estava cansado, mas o interesse na história e, principalmente, no misterioso sujeito, espantava-lhe o sono. Friedgard bebeu com prazer e continuou.
— Foi quando a noite caiu que o terror começou naquele pântano. Deve ser por isso que todos aqui, desde camponeses ao próprio barão, fecham suas portas e janelas a sete chaves logo que o horizonte engole o sol. Eu acho que minha sorte está nas luas gêmeas...— Olhou para fora, observando os astros. — Só por causa delas estou vivo. O luar me deixou enxergar um pouco naquele breu. Continuei caminhando na direção que havia decidido seguir quando ainda havia sol. Mas, por causa de desvios que tive de fazer, contornando atoleiros e buscando me afastar o máximo possível de poços ou tufos de vegetação que poderiam abrigar serpentes, acabei me perdendo novamente.
Friedgard sorriu.
— E quando encontrou a coisa que te fez isso aí?
— Pouco tempo depois de eu admitir que estava perdido. Senti que estava sendo observado. Puxei a espada imediatamente, mantendo a lâmina em riste, esperando um ataque vindo de qualquer lado. Ouvi um esturro e, girando sobre os calcanhares, vi, no escuro, um par de olhos, brilhando como brasas de fogo verde.
Os copos foram enchidos novamente, e o narrador sorveu boa parte do conteúdo. Parou por um tempo, relembrando o que acontecera no frenesi.
— Aproximou-se rapidamente, os pés pesados batendo na água lodosa. Fitei a escuridão. A luz das luas gêmeas revelou as escamas lustrosas sobre a pele. Tinha a forma de um homem, mas provido de garras e escamas de peixe. Foi tudo que vi. Soltando um urro, o demônio pulou em minha direção. — Sorveu o restante do vinho e coçou o ferimento. — Tenho certeza de que as garras eram venenosas. Próximo o bastante para atacar, agi depressa, girando a espada; mas o monstro se esquivou. Se fosse um dos seus homens, estaria fazendo companhia ao filho do barão, mas aprendi que, mesmo levando uns arranhões, não perco uma peleja sem destruir meu oponente.
— Era o Quibungo — disse, em tom soturno, o general. — Um demônio que rapta crianças e, às vezes, cordeiros novos. Algumas mulheres também sumiram sem deixar rastro, as que vão lavar roupa no córrego baixo. Pensamos ter sido ele, também.
Friedgard achou graça no nome e soltou um riso seco.
— Por fim, consegui acertar o tal Quibungo. Enquanto ele urrava de dor, ataquei novamente com a espada, atravessando toda a lâmina. Olhei nos olhos do demônio, para vê-lo morrer. Mas, no último suspiro do bicho, ele agitou o braço ferido, as garras brilhando, e retalhou minha carne como viste.
— E depois?
— Depois, perdi os sentidos. Desmaiei na lama, mas estava tranquilo, porque antes de tudo se reduzir a trevas vi o Quibungo pender sem vida e cair como um saco de merda sobre o brejo. Só no outro dia fui acordar, assustado, com o sol já alto. Levantei e cortei a cabeça do Quibungo, a qual trouxe num saco para cá.
— E por que fez isso, se nada sabia sobre o contrato da busca do filho do barão? Aliás, até agora sua história nada tem a ver com o desaparecido.
— Desaparecido e morto. Há quem colecione esses troféus de caça; pensei em vender a cabeça do monstro. Só depois encontrei o filho do barão.
— Explique.
— Segui o rastro da criatura e encontrei uma toca. Lá, atravessei a espada num filhote que mal tinha aberto os olhos. Cercada de ossos, a criaturinha mordiscava um cadáver vestido em roupas finas, em vermelho e amarelo, toda em farrapos. Filho de um nobre, logo pensei. Os vermes caíam aos montes dos olhos e da boca. Não iria trazer a carcaça do moleque para cá — disse Friedgard. — Mas eu trouxe isto.
De dentro do gibão, Friedgard puxou uma pequena corrente de prata que reluziu sob a luz das velas. Warsir semicerrou os olhos. Junto à corrente, na ponta dela, havia um medalhão. Não restava mais dúvidas, o general admitiu para si. A peça mostrava um brasão com um cavalo alado talhado no metal, o mesmo animal que estampava escudos de guerreiros da Vrásnia ou as tremulantes bandeiras do reino.
— Agora tem sua história — disse finalmente o forasteiro. — Tenho as provas: aqui o medalhão de Verni; e lá fora trago a cabeça do demônio em um saco. Peço que me leve ao barão.
Sabia que Warsir o levaria.
— E, respondendo à sua primeira pergunta, general Warsir — disse novamente o estranho, sorrindo, enquanto se levantava. — Meu nome é Friedgard de Rúnia.
III
— Por que só me disse teu nome depois de todo o relato, Friedgard?
— Precisava que se interessasse no ocorrido e na minha causa. E reconhecesse a veracidade da história. Não me leve a mal. Não queria me passar por vigarista.
Movendo as mãos, Warsir sinalizou que estava tudo bem.
— Ótimo — continuou Friedgard. — Precisava que confiasse em mim. Mas sei que, logo quando te vi, ao dizer que nasci na Rúnia, a imagem do pequeno Friedgard voltou vívida nas tuas lembranças.
Warsir riu, admitindo. Os dois subiam a estrada que levava ao forte do barão. Árvores altas erguiam-se ao redor, sombreando o caminho. Carroças subiam e desciam, carregando sacas de trigo, repolhos frescos e carnes defumadas; os passantes olhavam de relance para Friedgard, encarando-o, murmurando maldições ou fazendo sinais para espantar a má sorte. Alguns se perguntavam o que um selvagem maltrapilho fazia andando e conversando aos sorrisos com um general. O rúnio apenas ignorava.
— Algo parecido ocorreu comigo poucas horas antes de encontrá-lo — falou —, quando um guarda me falou para procurar Warsir, general dos lanceiros. Pensei que nunca mais o veria novamente.
Na noite anterior, após o relato do órfão da Rúnia, o general o levou a um templo próximo, onde uma curandeira tratou as feridas. Agora já nem doíam ou coçavam, untadas com uma pasta de ervas escuras que faziam cicatrizar depressa. O cheiro das ervas fazia Friedgard lembrar dos xamãs elurianos, pelos quais cresceu cercado, e alguma nostalgia espetou seu peito.
Por volta do meio-dia, chegaram ao forte onde o barão vivia. Era uma construção rústica, decorada com bandeiras rubras com um cavalo alado pintado de amarelo no centro. Ao verem Warsir, os guardas abriram o portão sem perguntar coisa alguma. Os dois homens caminharam forte adentro, Friedgard atraindo olhares curiosos.
Ao adentrar o salão, ouviram de longe o barão resmungar. Quando viu Warsir, levantou-se repentinamente, olhando para os lados, deixando cair uma taça que segurava.
— Warsir! Warsir! — berrou o velho barão, visivelmente abalado. — Traz notícias sobre Verni? Diga-me, encontraram meu menino?
O general não respondeu.
— Por favor, Warsir! Que houve? — O barão encarou o forasteiro. — Quem é esse vagabundo?
— Sou Friedgard, o vagabundo que encontrou seu filho morto nos charcos.
O barão gaguejou, tremendo a boca mecanicamente, buscando apoio nos braços da cadeira enquanto cambaleava para trás. Um fio de lágrima escorreu por cada olho, cortando a face marcada por doenças. Friedgard aproximou-se do homem. Podia ouvir a respiração difícil, o choro abafado que depois se transformou numa tosse sem fim.
— Aqui está seu medalhão. Não trouxe o corpo, que estava apodrecendo...
— Cale-se — interrompeu o barão, erguendo a cabeça. Os olhos, cheios de lágrimas, estavam vermelhos, injetados de sangue. — Cale a boca!
Friedgard não entendeu.
O barão abaixou a cabeça novamente, tossindo, e cuspiu sangue.
— Tirem esse cão selvagem daqui! — gritou.
— Senhor, tenha calma — Warsir tentou apaziguar a situação. — O homem traz notícias verdadeiras, apesar de dolorosas. Perdoe sua rudeza.
Enlouquecido, o barão não respondeu. Puxou uma faca de sua túnica e, num golpe desesperado, tentou cravá-la no peito de Friedgard, que recuou rapidamente, evitando um novo ferimento. Sem saber o que fazer, o rúnio olhou para Warsir. O barão golpeou de novo, dessa vez raspando a lâmina no braço de Friedgard, que soltou um grito.
— Matem esse desgraçado! — ordenou o barão, mas seus soldados não obedeceram, carregando a mesma expressão de espanto do seu general. — Matem-no agora!
Sem pronta resposta dos soldados, o próprio barão se incumbiu da tarefa, levantando enquanto tossia sem parar, sangue escorrendo junto à saliva. Saltou em direção à Friedgard, brandindo a faca de um lado para o outro, golpes débeis que Friedgard evitava simplesmente se esquivando com calma. O rúnio fez que ia sacar a espada presa às costas para pôr um fim na situação, mas Warsir falou antes:
— Não faça isso. Segurem o homem, guardas. Não queremos mais tragédias.
Agora os soldados obedeceram. Dois deles correram em direção ao barão e o imobilizaram sem dificuldades, fazendo-o soltar a faca. O velho vomitou sangue e voltou a tossir, grunhindo maldições ininteligíveis.
Friedgard e Warsir deixaram o salão. O rúnio não disse mais nada, apenas deu meia-volta e largou o saco com a cabeça decepada do Quibungo e o medalhão de Verni para que o barão fizesse o que bem entendesse quando recuperasse sua consciência.
***
Quando era noite, o rúnio voltou ao templo em busca dos serviços da curandeira. Era uma mulher jovem de cabelos negros cacheados. Friedgard reparou no seu rosto enquanto ela passava um pano molhado com um líquido amarelo que aquecia o corte.
— É assim mesmo, você sabe — ela disse, encarando-o com os olhos grandes. — Depois as ervas tiram qualquer dor. — E sorriu com simplicidade.
Warsir tinha ido ao cais conversar com um dos capitães da esquadra vrasniana para apressar a ida de Friedgard. Depois do que acontecera na paliçada do barão de Krotvar, boatos se espalharam rapidamente.
— Não acredito no que dizem na taverna Bode Mágico... — falou a moça.
— O quê? — Friedgard era alheio ao burburinho das cidades.
— Falam que você matou o filho do barão — ela deu uma risadinha —, mas eu não acredito, não. Se é verdade o que a velha Gerta fez...
— Quem é essa?
— A bruxa lá da floresta, senhor.
O rúnio encarou enquanto a curandeira passava a pasta de ervas no corte.
— Sabe os crucificados lá na estrada? — perguntou a mulher.
Friedgard fez que sim.
— Eram filhos da velha Gerta.
As ervas, adentrando a carne aberta, arderam no início, e Friedgard apertou os dentes, ouvindo atento as palavras da curandeira.
— E o barão os pregou, senhor.
— Que fez a velha Gerta? — Friedgard arrepiou-se.
— Fez nada, não, senhor. Mas tinha amigos lá nos charcos.
IV
O sol mal rompera o horizonte e muitos homens já trabalhavam sobre o convés de um grande barco, no porto de Krotvar. Diferentemente das rústicas embarcações elurianas — cujos cascos eram estreitos, compridos e baixos —, o navio vrasnio era alto, nem largo nem estreito e não muito longo, mas possante como as barcas de guerra de lendas antigas. O casco era simples: de madeira escura, com exceção da cabine na popa, que era ornamentada com janelas de ferro e uma pintura púrpura.
Já havia algumas horas que os marujos caminhavam para dentro e para fora da embarcação, levando barris de água doce, carne salgada, batatas, maçãs, chucrute, entre outras provisões. As velas já eram preparadas para serem soltas.
— Vorsig! — Friedgard gritou para o navio.
Um homem vestindo uma camisa azul e calças de couro apareceu sobre o convés; as calças quase completamente cobertas pelas botas negras de cano longo. Um chapelão ornamentava sua cabeça, pendendo dele uma pena de pavão.
— Senhor Friedgard, eu presumo! — o capitão cumprimentou. — Warsir avisou!
— Já está de partida?
— Assim que os barris estiverem todos a bordo. As armas também. Suba logo! — O capitão voltou-se para os marinheiros, que trepavam como macacos no cordame. — Vamos, homens, não temos o dia todo! Levem os baús para baixo. A seda vai na proa!
Havia alvoroço enquanto os marujos obedeciam. O disco solar já quase irrompia completamente no horizonte. Friedgard sabia que era hora de partir.
Um homem baixinho, de barba e cabelos brancos muito sujos e oleosos, aproximou-se do capitão Vorsig. Vestia uma regata branca com listras vermelhas, um calção e botas surradas. Era Jorn, o contramestre, e chegou dizendo:
— Senhor?
— Sim?
— Estamos prontos.
— Podemos partir. Solte as cordas — ordenou Vorsig, ajeitando a pena do chapelão. Depois, girou em seus calcanhares e pôs-se a caminhar pelo convés de tábuas enceradas. Friedgard subiu as escadas do castelo de popa e cumprimentou o timoneiro enquanto observava os homens abrindo as velas e soltando os cabos que prendiam o navio ao cais.
As gaivotas se agitavam no céu; muitas voavam em círculos, esperando, enquanto outras mergulhavam e saíam das águas com pequenos peixes no bico. Do cais, os pescadores xingavam as aves. Friedgard lembrou-se das palavras da curandeira e decidiu não olhar mais para a cidade que deixava. O mastro rangeu e as velas estufaram, vigorosas. Em poucos momentos, a embarcação rasgava as águas seguindo para o Mar de Dhôr, rumo aos portos de Findom. Observando o horizonte azul celeste, Friedgard sorriu.