Prólogo
Epílogo
Conto
Em meio a remanescentes traços laranjas e rosas em uma extensão de faixa
azul pálido, a lua pisca do alto em minha direção para avisar que está a caminho.
“Será sua noite, meu bem”, transmite ela. O vento morno esfrega minha bochecha
pela janela do meu carro, que deixo David (David?) guiar até o lago, enquanto penso
na facilidade que é usar um aplicativo de relacionamento: basta criar uma conta e se
deparar com milhares de corpos deliciosos, quem sabe até achar um cara legal.
Por enquanto não aconteceu comigo, então desfruto.
Desde cedo, despertei e decidi saciar meus desejos, não poderia me permitir
passar outro sábado deprimido e sentindo a falta dele. Já fazem duas semanas que
descobri uma traição e acabei com ele. Segui em frente. No fim das contas, o tal de
David é legal, apesar de tentar avançar demais. Tem uma boca carnuda e uma pele
bronzeada cor de café que reluziu na luz do restaurante em que nos encontramos
mais cedo. Não me contive e em vários momentos me fixei em seu corpo, curvilíneo,
cintura e batatas grossas e um tronco saltado, um ursão. Além de bom de papo.
Achei difícil haver um encontro tão bom assim. O homenzarrão tem pra mais
de trinta e poucos anos, mostrou uma experiência muito vasta em diversas coisas,
com uma leve tendência a críticas e conversas sombrias. Não me importei mas fiquei
com uma pulga atrás da orelha.
Nos bancos de trás do Jeep, senti sua barba em meu pescoço, suas mãos espessas
rastejando pelo meu peito e meu quadril e sua boca densa abraçando a minha,
me acobertando e então deixei ir. Sua língua em meus dentes, seus lábios roçando em
meu olfato, saboroso... e, quase sem querer, o mordi. O gosto ferruginoso impregnou
meu paladar e ele gemeu pedindo pra parar. Me desculpei. “Tudo bem”, disse ele
e então, sorrindo, foi ao botão do meu jeans. JÁ?, pensei. Queria ir com calma e ir
ao parque para um passeio seria legal. Desde então ele enfiou os dedos sob o cós de
minha calça mas o contornei. Calma, grandalhão.
As árvores passam, mais rápidas e opacas à medida que chegamos ao destino e
me sinto um pouco mais ansioso. Ele me parece bem maior agora e, quando me olha,
sinto sua íris devorando meu corpo aos poucos, sinto seus olhos duros dentro de
minha roupa e a energia que seu corpo exala pesa em mim como se me acorrentando,
indefeso. Estava à procura disso hoje. Lado a lado, andamos em direção às águas verde
oliva do campo, mais íntimos e a conversa mais insinuante. Sinto certa excitação
quando ouço sua voz sendo projetada desses beiços e toco em seu braço, animado.
-Podemos só ser um pouco mais discretos? — disse ele.
Sério? Certo, então. Assinto mas, cara...SÉRIO?
Continuamos, os rastros de cor sobre nós se transmutando para o cobalto,
e vejo a lua ascendendo mais rápida, fulminando mais forte e moldando sombras.
Sombras distorcidas das árvores, sombras de movimento ao longe e acima, sombras
dos nossos corpos deslizando ao chão, seja nos cobrindo ou nos rodeando. Uma coruja
corta meus pensamentos e o lago aparece em nossa frente. Está quase deserto em
seu contorno, as árvores privando as visões de fora e de dentro. Quem não está no
lago, não nos vê. Percebo duas figuras ao longe, o som de um avião que cruza nossas
cabeças, um badalar de sinos ecoando e um ponto na água, em uma margem dupla
com baixos arbustos, esquecida pela luz da grande bola de prata. Ótimo.
Então pergunto:
-Vamos cair?
-Daqui a um minuto — responde, olhando fixamente para o lago — Estou
completando um pensamento.
-Faço parte dele? — olho bem furtivo em seus olhos.
-Claro que sim.
Começo a me despir e então o observo começar o ritual: ele tira sua camiseta
de algodão, com apenas uma mão, revelando suas costas grandes e peludas devagar.
Tira os sapatos, desabotoa a calça, abrindo o cinto com estranho prazer. Até que
estamos os dois ali, corpos seminus, sendo engolidos pela extensão líquida daquele
campo, agora quase negra.
Nadamos lentamente rumo ao portal intocado pela lua.
Na margem oposta, a uns mil passos (supondo que fosse possível caminhar
sobre as águas), vemos as figuras distraídas em um piquenique. O cenário parecia
perfeito para um rápido assassinato. Principalmente quando penso que a dupla está
suficientemente próxima para testemunhar um acidente e suficientemente distante
para não observar um crime; suficientemente próximos para ouvir um visitante
desesperado se debatendo e gritando por ajuda e suficientemente distantes para não
notar que o visitante, nada desesperado, estava prendendo o corpo do outro homem
debaixo d’água. Fácil. Porém, afasto o pensamento e ele se aproxima de mim.
Suas mãos já miram minhas costas e seu grosso aperto me segura pela cintura,
me envolve com os braços, puxando minha língua para enrolar na sua, então me deixo
amarrar. O fundo foge aos meus pés e a ele me agarro, sentindo a água fria defluir
por entre nossos braços, abaixo de minhas pernas. A mesma água que molha seu
sexo, molhando o meu, me tocando lá embaixo. Estamos úmidos, as cobras nas pontas
de meus dedos rojam em seu tronco, por seus gordos pomos, que quero lamber e
morder, por sua nuca firme, enquanto seu corpo luta de volta, agarrando meu cabelo
e bebendo da água que jorra de minha boca, beliscando meus músculos e apanhando
minha bunda, rasgando o único pano que ainda me cobria, com violência. Sinto-o
então chegar em meu ouvido, morder minha orelha com força, enfiar seu dedo entre
mim e dizer:
-Eu vou te foder todo.
Seu dedo está em mim e não há luz alguma além de raios prateados escapando
detrás de uma árvore ao longe, está escuro, não há vida agora que seja capaz de
impedir uma morte, não há som que traga segurança, bastava ficar para trás e ser
agarrado pelos tornozelos, puxados para o fundo, ingerindo um volume letal de lago,
sendo assistido sob a água, vazando terror, visto pelos olhos bem abertos da morte.
Seu dedo está em mim e a raiva me toma. Um babaca baixo está com o dedo em mim
e quer ME FODER. Finalmente, não mais me reprimo:
-Mesmo? Meu ex disse a mesma coisa.
Imerjo e torço seu cotovelo pra trás, puxo seu tornozelos enquanto o vejo
engolir o lago em seus pulmões, se debatendo, escorrendo horror de seus olhos vidrados,
surpresos com a aparição de afiadas serras em meu sorriso, como vislumbro
a cada escroto com quem topo, abismados com tais presas dilacerando seus membros
e mastigando sua carne, até que cravo minhas garras em sua gostosa barriga e já me
sou por completo, com as duas mãos em seu estômago, tocando suas vísceras, vendo
sua boca se esticar, soprando um grito afogado e se preenchendo com mais líquido,
pobre homem. Esfarrapo minha caça, cedendo à criatura que me habita sem arrependimento,
sentindo o gosto tão familiar. Seu corpo cessa devagar e me divirto; percorro
sua pelo e o arranho esperando o término de seu ciclo para então me deliciar
finalmente de seu coração, sepultando meus dentes em seu peito e sentindo o calor
do fluido rubro que se esvai como fitas flutuantes ao meu redor, se enroscando em
meu corpo. Ponho o dedo de sua mão, que antes estava entre meu corpo, em minha
boca, passo a língua e fecho um corte até ouvir um CRAC e finalizo meu lanche.
Imagino os próximos instantes de desespero, seu corpo boiando na água enquanto
grito assustado a procura de ajuda, e já sei de cor. Dou início, satisfeito:
-Socorro!!!