Prólogo
Epílogo
Conto
Com cautela, o rapaz levanta da cama e ascende o abajur ao seu lado, ajustando
a luz para sua potência mais fraca. Na penumbra, ele pode observar a jovem
deitada ao seu lado. Seu sono parece pesado, então ele retira o lençol que cobre seu
corpo. Quer observar sua nudez.
Como é bela. A jovem está deitada de bruços, com o rosto virado para o outro
lado. Um braço está dobrado, a mão debaixo do travesseiro, e o outro estirado ao
lado do tronco. As pernas estão levemente abertas. Sua respiração é audível, calma
e ritmada.
Chega mais perto. Ainda que sob a fraca iluminação, ele pode ver pequenos
traços de veias riscando sua pele alva. Há algumas estrias em suas pernas, celulites em
sua bunda. Isso o encanta ainda mais. É uma mulher real, sem Photoshop, sem filtros.
O que um adolescente viciado em pornografia diria ser uma imperfeição, para ele é o
que torna sua beleza extraordinária.
Toca ela. Sente seus dedos ainda mais ásperos ao deslizarem por uma pele tão
macia. Deixa sua mão passar pelo pescoço, pelos seus vastos cabelos. São bonitos,
mas ele os prefere presos, o que faz. Sua mão segue pelas costas, particularmente no
sulco onde está sua coluna. Toca, mesmo, pressionando de leve aqueles ossos, aquela
carne.
Pula as nádegas. Aperta as pernas da jovem. Pernas volumosas, um pouco
flácidas, alguém poderia criticar. Para ele, estão ótimas. Envolve o joelho da garota,
como é delicado! Parece uma peça que se despedaçaria no primeiro pulo mais ousado.
Desce a mão para a panturrilha, encontrando ali provavelmente o mais rígido
de seus músculos. Olha para o chão e vê, ao lado da cama, o sapato de salto alto. A
elegância tem seu preço.
Demora alguns minutos apalpando o pé da mulher. Aqueles dedos pequenos,
unhas minúsculas e impecavelmente feitas, o deixam fascinado. Aperta o peito do
pé. Não aguenta e beija ele. Todo. Cada dedinho, cada centímetro. Sempre gostou de
pés, mas nunca tivera uma oportunidade para contemplá-los.
Como não podia ficar a noite toda ali, vai para a bunda. Tem um belo volume,
ele pensa. Quantos homens não se viraram para observá-la na rua? Ele nunca fez
isso, achava ofensivo. Mas uma bunda daquelas valia mesmo a reverência. Beijá-la.
Ela era sua exclusividade agora. Que rapaz de sorte.
E agora, beijando aquele corpo todo, sem rumo e com voracidade, ele pode
sentir melhor seu cheiro. A jovem transpirava naquela noite quente. O cheiro que se
destacava era o do suor, mas aquilo não o incomodava. Achava até agradável. Havia
um pouco de álcool, também, naquela transpiração. Mas não prejudicava a sensação.
Vê-la de frente. Sem pensar muito, ele começa a virá-la. Com delicadeza,
claro, não queria que ela acordasse agora. Não ia acordar. Era difícil virar um corpo
que não queria ser mexido. E ele, sedentário há anos, ficou bastante ofegante com a
ação. Seu coração, já acelerado, disparou. Mas não era pelo esforço. Era a emoção. Lá
estava ela, nua, para ele. Sem ninguém para censurar seu olhar. Nem ela.
Era linda. As pernas agora estavam mais abertas. O rosto, voltado para cima,
podia ser contemplado na paz de seu sono. Os seios. Ele poderia ficar uma pequena
eternidade só olhando para eles. Mas não queria apenas contemplar. Se lançou sobre
ela com mais beijos e mais toques. Precisava senti-la. Seu rosto, seus braços, busto,
genitália.
Se conteve um pouco. Não era impossível que ela acordasse, embora pouco
provável. Se afastou e olhou para si. Para seu corpo, também nu. Um horror. Sentiu-
se o Corcunda de Notre-Dame contemplando a cigana Esmeralda. Seus pelos
negros por todos os lados, sua barriga arredondada, as pernas finas.
E, mais do que tudo, seu pênis. Como Deus havia sido infeliz nessa parte da
anatomia masculina. Um pênis frouxo tornava um homem nu uma peça cômica,
aquele membro molenga pendendo de suas pernas. Agora, enrijecido por toda aquela
excitação, era menos patético. Ainda assim, não era uma bela visão.
Desviou os olhos para a jovem. Aquilo valia a pena ser visto. Como queria
que fosse sempre assim. Ter aquela mulher, ou alguma outra, ali, em sua cama. Despida
para ele. Por ele. A vida seria menos miserável. Talvez, se não for muita ingenuidade
pensar nessa possibilidade, poderia até ser feliz.
Pena que nunca seria assim. Se esperasse por mais algumas horas, a jovem
acordaria. Com dores de cabeça, se sentindo lesada. Não lembraria de como havia
chegado ali. Se irritaria com ele, provavelmente chamaria um taxi. Ou a polícia. E a
magia daquele momento estaria para sempre perdida.
Era uma pena, mas a garota não podia acordar. Por isso, ele foi até a cozinha,
buscar sua faca de cortar carne.
Sabe quantas vezes eu já li esse trecho? Se souber, me diz, porque eu também
quero saber. Mas foram muitas, disso eu tenho certeza. Sou como aquele pai orgulhoso
ao ver o filho, em um recital de piano, tocar “Cai cai balão”. Só que esse “Cai cai
balão” aí é premiado. É o trecho mais elogiado do meu livro, Desejo Sangrento. Best
seller, querida, isso mesmo! Já foi lançado em quase uma centena de países, traduzido
para idiomas que eu sequer imaginava existir. Uma adaptação de cinema está sendo
produzida. Hollywood, baby! Sim, os milhares de dólares já caíram na minha conta e,
se o desempenho nas bilheterias for bom, a quantia vai aumentar.
Agora, vamos segurar a empolgação. Quem me ouve falando assim pode
achar que eu sou um babaca convencido. Não. É só orgulho pela trajetória que me
trouxe até aqui. Hoje, nessa cobertura com ampla vista para o horizonte da cidade,
minha vida não lembra em nada os perrengues que passei.
Vamos recuar nossa história. Cinco anos atrás e eu, apesar de parecer mais
velho do que hoje, levava meus inseparáveis óculos de 4 graus de miopia para trabalhar
como auxiliar de bibliotecário numa escola na periferia. Um concurso que
pagava pouco, é verdade, mas que viabilizou que eu concluísse minha graduação em
literatura.
Parecia uma escolha inteligente. Eu precisava de dinheiro para pagar a faculdade.
Amava ficar rodeado por livros. E, naquele ambiente de silêncio, poderia escrever
meus textos. Não sei quando surgiu esse desejo em ser escritor. Provavelmente
na infância, quando meus colegas ganhavam medalhas no esporte e meu consolo era
tirar 10 em redação. Ou pode ter sido quando comecei a querer me libertar da vida de
orçamento apertado que meus pais podiam me oferecer. Se escrever era a coisa que
eu fazia melhor, então eu precisava ser profissional.
Só que nem tudo sai como a gente planeja. Geralmente, aliás, acontece tudo
ao contrário, mesmo. Uma biblioteca de escola pública pode ser tudo, menos um
lugar aconchegante para a criação literária. Havia as aulas em que a professora de
literatura teimava em levar os alunos até lá. Éramos invadidos por adolescentes cheirando
a CC, manuseando livros com a delicadeza com que um ogro deflora sua esposa
nas núpcias das bestas. Machado de Assis, Julio Verne, Shakespeare, Camões…
Toda a literatura mundial era revirada com brutalidade, me rendendo semanas de
ofício reparando capas de livros. Isso sem falar nos casais que iam para lá buscar um
recanto para o namoro ou nos que achavam que ali era lugar para fumar. Era tenso.
Havia, é verdade, dias melhores. E aí, longe dos olhares vigilantes da minha
supervisora, eu escrevia meus textos. Contos sensíveis, sobre a fragilidade da vida,
questões existenciais de quem vive uma vida amarrado em rotinas, desigualdades
econômicas… A história que eu mais gostava das que escrevi naquela época foi sobre
uma mãe de família, esquentando a barriga no fogão o dia todo, lavando roupa, o
chão e apanhando do marido à noite. Um primor, sendo sincero. Narrativa poética,
roteiro bem construído, história pertinente. Postei no meu blog, o que fazia com
todos os meus textos.
Sabe o que as pessoas que leram comentaram? Nada. Nem um parabéns, nem
um gostei. Nada. Algumas pessoas liam ou, ao menos, curtiram a publicação na rede
social. Mas não reagiam como faziam com omemes.
Na época, eu não percebia isso. Eu era ingênuo e iludido. Achava que cada
curtida era, de fato, alguém avaliando bem minha escrita. Por isso, participava de
concursos literários de todo país. Acreditava que ali estava a chave para minha mudança
de status. Com o aval de um concurso, chamaria a atenção das editoras e poderia
viver de literatura. Seguir meu projeto de ser escritor.
Formei, então tinha as noites para escrever. Com o dinheiro do trabalho consegui
alugar uma casa, um barraco apertado nos fundos da casa do meu senhorio. Ali,
virava noites escrevendo. Ou tentando. Nem sempre a inspiração vinha e eu tinha a
teoria de que era melhor não escrever se o texto fosse nascer pobre.
De pobre, aliás, bastava eu. Trabalhar na biblioteca estava cada vez pior, eu
com pouquíssima paciência naquela escola. E, depois de tanto participar de concursos
literários, comecei a colher os frutos. Uma menção honrosa aqui, um terceiro
lugar lá e… bom, basicamente foi isso. Em cem concursos, ou algo assim, fui laureado
em dois. Claro, sem prêmio algum além de uma medalha e um diploma. Mas os textos
seriam publicados em coletâneas, divulgariam meu blog, aparecendo leitores para
outros textos meus, certo? Estou aguardando os leitores dessas coletâneas até hoje.
Até que meu conto, “Menos um dia para Vana”, aquele mesmo que eu descrevi
acima, foi premiado em um concurso. Primeiro lugar em um certame promovido
pela Câmara dos Vereadores da cidade de Jundiaí. Ganhei 500 reais como premiação.
O dinheiro mal pagava meu aluguel, mas, ainda assim, fiquei eufórico. Era a vitrine
que eu precisava.
Tomado pelo otimismo dos ingênuos, achei que era a hora de fazer escolhas.
Apostar alto. Pedi exoneração do meu cargo na escola. Aquela rotina só estava me
atrapalhando. Iria viver de literatura, finalmente! Eu tinha economias, então fiquei
alguns meses por conta de escrever meu primeiro livro. E foram logo dois: um de
poesia e um de contos. Textos cuidadosamente escolhidos, revisados incansavelmente
e com linguagem apurada. Histórias boas, que desafiavam o leitor, tirava-o de sua
zona de conforto.
Sabe o que aconteceu? Vamos adiantar dois anos nessa história. Lá estou eu,
em casa, aquele mesmo barraco, barba por fazer, corpo magro, olheiras engolindo
meus olhos. Estou na frente do computador, cigarro aceso. Na geladeira barulhenta,
que ganhei quando meus pais trocaram a deles, só garrafas de água, praticamente. E
eu escrevendo para internet. Webwriting é o nome disso. Eu fazia freelas nessa área,
escrevia notícias sobre novos lançamentos da indústria automobilística, tecnológica
e anúncios de vagas de emprego. Cinco reais por texto de 600 palavras, que iam
para sites caça-cliques. Na minha caixa de e-mail, junto com spams e, basicamente,
mais spams, podiam ser encontradas mensagens de editoras negando publicar meus
livros. “Não é o que estamos procurando agora”, diziam, sempre antecedidos de um
“apesar da qualidade”. Isso quando respondiam. O silêncio é a negativa mais dolorosa,
mas quem se importa?
Há dois anos eu alcançava o fundo do poço. Os freelas tomavam meu tempo
e me entediavam, enquanto as recusas de publicação me deixavam frustrado com a
escrita. Mas quando não dá mais para cair, a gente arruma um jeito de se levantar.
Refleti, pensei no futuro. Onde eu ia parar? Não parecia promissor.
Então, lembrei do que eu realmente queria: uma vida boa. Não importava o
caminho que me levasse a ela. Eu estava obcecado por boas críticas, por agradar um
público que me desprezava. Por mais que eu tentasse inovar na escrita, na narrativa,
a impressão que eu tinha é que esses leitores acadêmicos já tinham uma opinião
pronta para meus textos: temática batida, linguagem pobre. E o pior, mesmo se gostassem,
eles eram uma meia dúzia. Não pagariam minhas contas.
Ninguém enriquece como escritor sem vender livros. Era nesse público que
eu precisava focar, em pessoas que não se importavam se a história que eu estava
contando era um clichê. De fato, até preferiam reconhecer os rumos da narrativa. A
princípio foi estranho mudar o foco. Eu vinha de anos com o pensamento da faculdade,
separando literatura boa de literatura pobre. Só que mais pobre ainda era eu, o
verdadeiro bobo da história.
Foi assim, pesquisando sobre clássicos da literatura popular, que cheguei à
ideia de Desejo Sangrento. Um suspense com muito sangue, como o nome já indicava.
Pesquisei outras vertentes também. Fantasia, terror, romances. Até livro espírita
eu toparia escrever tamanho era o desespero da pessoa que vivia à base de pão com
margarina no café da manhã e miojo no almoço. Assinaria o livro como “ditado pelo
espírito Nissin”.
Fui estudando os gêneros e a maioria deles eu não teria condições de escrever.
Fantasia é coisa para nerd, eles torceriam o nariz se eu não mostrasse total conhecimento
da obra completa do J.R.R. Tolkien. Terror também não era minha praia e
para romances água com açúcar me faltaria estômago. Sobrou o suspense policial. E,
embora com um pé atrás, me dediquei com afinco à missão. No fundo, eu não entendia
porque as pessoas leriam um livro sobre uma história que poderia estar noticiada
no mais tosco dos noticiários.
De fato, quanto mais a mídia noticiou casos de serial killers nos meses seguintes,
maior foi a procurava pelo meu livro. Surgiu até a teoria de que alguns daqueles
assassinos estava se inspirando no Desejo Sangrento. Fiquei preocupado, a princípio,
com uma possível repercussão negativa. As vendas, porém, só aumentaram.
Sim, o livro foi um sucesso. A primeira editora que eu tentei se interessou em
publicá-lo. Por sorte, eu havia enviado para outras. E na medida em que as respostas
chegavam, eu pude barganhar valores. A edição também ficou bem bonita, um
calhamaço com capa dura. Preço bom nas livrarias. Livros mal acabados não atraem
leitores.
Enfim, podemos adiantar para o tempo presente. Para essa cobertura. Moro
aqui há dois meses. Vê esses móveis? Tudo planejado. Eu tinha pavor de fazer mudanças,
achava sempre uma tristeza carregar móveis, fogão, geladeira…
Ficava semanas tomando Dorflex por causa de dor contraída em mudança. E
dessa vez, não precisei trazer um copo. É tudo novo. E se precisasse carregar algo,
pagaria alguém para fazer isso.
Tudo bem, devo soar péssimo dizendo essas coisas. Fiquei deslumbrado, é
verdade, mas vai passar. É só a emoção do momento. Você observou que há dois
anos eu só comia miojo no almoço? Acho que tenho licença para ser um pouco arrogante
agora. Vai melhorar.
Hoje, participo de eventos de cultura pop, dou entrevistas para televisão e até
sou convidado para encontros literários. Sabe o que é mais curioso? Se há anos eu
perseguia críticas positivas, que valorizassem minha escrita, foi eu abandonar essa
pretensão e abraçar a literatura mais, digamos, popular, que consegui reconhecimento.
Sim, é verdade, sou muito elogiado por escrever com qualidade. Dizem que, por
mais que um livro sobre um serial killer seja algo comum, a forma como eu escrevo,
como construo o personagem principal, é diferenciada.
Não é engraçado? Quando perdi esse objetivo, as coisas caminharam. Claro,
não foi fácil, precisei me dedicar. Ninguém escreve sobre uma mente doentia sem
mergulhar, de fato, nesse universo. Gente normal, ordinária, é fácil de entender.
Elas estão por todos os lados, somos bombardeados por elas logo que nascemos. E
ninguém quer ler um livro só com elas. Agora, um psicopata é bem mais complexo.
Só com uma boa imersão para poder conceber um personagem desses. Por isso, meu
livro está tão valorizado. O Denzel Washington está cotado para ser um policial no
filme, dizem os produtores.
Olha, mas como eu estou falante, não? Vou parar, querida, nem te dei ainda a
devida atenção. E daqui há pouco você acorda, né? Já já o remedinho para de fazer o
efeito. Deixa eu tirar o seu vestido. Ele desabotoa por trás? Quero vê-la com calma.