Prólogo
Epílogo
Conto
— Já está online?
— Já.
Era bem menos ameaçador do que Thomas um dia
esperou que pudesse ser. Duas horas atrás ainda estava em
seu computador, programando mais um algoritmo de busca
e agora estava de frente para o destino de seus códigos.
Era um trabalho de uma monotonia inacreditável, ao menos
para aqueles que não fossem curiosos demais; supervisionar
sistemas de detecção provava ser mais e mais contraintuitivo
quando tudo era extremamente automatizado e pouco auxílio
manual era necessário, mas julgou que manter sua boca
fechada e os seus cliques longe daquilo que deveria proteger
fosse mais importante do que tentar ser mais esperto do que
a máquina.
Thomas era o homem por trás do radar: o “grande”
radar, como costumava dizer, cheio de um ressentimento
nascido através de uma suave, amarga decepção. Trinta e
poucas pastas era tudo que Thomas guardava, com tamanha
atenção que o número sempre fugia de sua memória. Não
importava. Não era um homem de números e sim de padrões.
E quebras nos padrões era o que ele era pago para
indicar e reportar. Um congestionamento em determinada
conexão, uma subrotina direcionada sem o seu devido input;
qualquer coisa que o sistema não fosse determinado a detectar
sozinho. Não era o trabalho dos sonhos nem a utopia
que pensou que seria em seus anos jovens, quando ainda era
um ávido leitor de Gibson e sua mente estava na matriz de
Neuromancer, sonhando alto com linhas de código em verde
neon quebrando diante de seus olhos conforme avançava
mais e mais, entranhado nos segredos guardados por bits e
comandos.
De vez em quando era fortuito o bastante para seguir
um IP mascarado na Bélgica até o seu dono na Pensilvânia.
Protocolos por cima de protocolos em um grande jogo de
detetive; era assim que Thomas passava suas madrugadas, na
solidão de um escritório hexagonal, sobre uma plataforma
entre paredes de vidro e servidores e a sombra ocasional de
um supervisor para ver se tudo estava em ordem. “Uma vez
delator, sempre delator”, pensava.
Era um caminho natural para T. Só negócios e nada
mais. Entregar seus cinco comparsas em troca de livrar-se de
trinta anos de prisão por roubo de propriedade do governo e
de informações confidenciais? Um dilema ético para muitos,
uma oportunidade única para Thomas. Estava livre na semana
seguinte, com uma tornozeleira permanentemente acoplada
ao seu tornozelo e um emprego cuja responsabilidade
era justamente jamais permitir que o que ele conseguiu fosse
feito novamente; um algoz para todos os futuros jovens ludibriados
demais com a noção de liberdade e hacktivismo.
Consolava-se sabendo que podia ser pior; podia ter
dado certo. Podiam, os seis, terem saído do sistema sem serem
detectados, ainda que não livres da paranoia nos anos
seguintes de um destacamento da SWAT invadindo seus
apartamentos e cobrando uma justiça há muito empoeirada,
mas ainda assim impunes. Thomas havia dado a volta por
cima final, a última grande cartada em aceitar ser o operador
de defesa cibernética que impediria que qualquer outra pessoa
pudesse repetir o seu ato, algo que ele teria total controle
em assegurar que o seu feito jamais seria eclipsado pelo de
outro hacker.
Deram as chaves do Louvre ao maior assaltante de
museus do mundo. E apelar para o seu ego foi a coisa mais
inteligente que a Agência Nacional de Defesa fez em toda a
sua vida. Em tempos de traição, segredos e sussurros, a confiança
era um commodity caro e escasso. Foi uma surpresa
para Thomas quando confiaram no rapaz o suficiente para
mostrarem seu maior e último projeto.
— E o que ele faz?
O agente lançou um olhar ao hacker que não sustentou
uma explicação sozinho. Com braços cruzados e o queixo
apoiado em uma das mãos, o homem de terno foi então
mais eloquente em mostrar sua frustração.
— Achei que só de olhar você saberia. Que decepção,
Pickett.
— Sou um analista, não um mecânico. Você age
como se estivesse abrindo o capô de um carro e me pedindo
para olhar dentro. Como é que vou saber o que é se nunca
vi antes?
— É um mainframe quântico. — Waters esclarece, não
sem antes gozar com a ignorância de Thomas Pickett. Eram
raras as vezes em que alguém o pegava desprevenido, e era
sempre reconfortante saber que ainda sabia mais do que um
jovem como ele. — É deste lugar que as informações saem, e
por aqui que elas também entram.
— Quais informações?
— Todas.
Thomas parou por um momento para tentar, ele
próprio desta vez, dissecar aquela informação. O frio dentro
da sala era típico dos setores de armazenamento de informações,
com suas massas intermináveis de computadores
monolíticos, retângulos enfileirados debaixo de um sistema
intenso de resfriamento, como um exército de terracota do
novo milênio. Três lances de escadas com dois degraus cada
o separavam do núcleo do processador, no centro da plataforma.
A Thomas, aquilo lembrava um tambor de um re-
vólver, um cilíndro com diversos outros entre as suas fatias
de cromo que revolviam em um movimento mínimo mas
constante.
Qualquer coisa além do rumor estático das unidades
de processamento e mainframes era difícil de ser ouvida,
mas seus pensamentos eram barulhentos e ruidosos naquele
saguão infértil e organizado, como um cemitério de abelhas.
— Sei o que está fazendo, Waters, e não vai rolar.
Desde os anos oitenta as informações digitais não são centralizadas.
Se acham que posso vazar alguma informação e
estão me alimentando com mentiras, é só dizer. Não tenho
interesse em dedurar os segredos de mais ninguém.
— Acredite no que quiser, garoto, só fui pago para te
mostrar, não para te fazer acreditar. Nenhuma informação é
centralizada, mas aqui — Waters aponta para o supercomputador
no centro da plataforma, e seu gesto assinala a entonação
de sua voz —, aqui é por onde todas passam.
— Um gargalo?
— Um gargalo, funil, o que quiser chamar. Pense em
um pedágio, é como eu gosto de pensar. Tudo que um dia
fica online, passa por nós primeiro.
— O que ele armazena?
— Nada. Ele só processa o que recebe em tempo real.
Nós o chamávamos de Periscópio. Ele é o que você andou
guardando todo esse tempo.
Thomas entendeu e confirmou suas suspeitas imediatamente.
Waters ergue a caneta aos lábios. Quase a traga
como um cigarro, um hábito difícil de largar e que ainda
ameniza sua ansiedade, mesmo quando ausente.
— Aquelas pastas estavam vazias, não estavam?
Aquelas que me colocaram para proteger?
— Primeiro, ninguém quis colocar informações vitais
nas suas mãos. Foi uma decisão unânime. Segundo, tudo que
havia lá dentro eram duplicatas de coisas que você já sabia.
Precisávamos que você defendesse aquele servidor como se
sua reputação estivesse em jogo. Precisávamos que o Periscópio
aprendesse, com você, a se defender.
— Então ele tem um mecanismo de autoaprendizagem.
— Demorou ainda mais para Thomas perceber o que
estava diante dele. Acreditava que superprojetos como aquele
só existissem dentro de livros do Tom Clancy. — É uma
inteligência artificial.
— Não nesse sentido. Sim, ele pode organizar padrões
e aprender comportamentos, pode categorizá-los e
repeti-los a priori. Mas não é um computador autônomo. As
suas diretrizes de defesa precisavam de um parâmetro para
aprender a detectar ameaças de verdade. Cada vez que você
detectava um intruso, o Periscópio estudava seu comportamento
e repetia seus padrões.
— Não sei como me sinto a respeito de ser vigiado
dessa maneira. Não por uma máquina.
— A gente se acostuma tanto a usá-las. — Waters
cruza os braços, mas direciona um olhar afiado ao mais jovem,
meio acusatório. — Que não pensamos que elas também
podem nos usar.
— Eu e quantos mais outros?
— Cinco ou seis bilhões, mais ou menos.
O escopo de todo aquele projeto era muito maior
que Thomas Pickett um dia pensou em estar diante, agora
que sabia da verdade. O seu ego fraturado não deixou que a
realidade do que estava sendo apresentado a ele o atingisse
com seu impacto completo. Seus braços se cruzaram diante
do peito, e os dedos voltaram a coçar a barba que voltava
a crescer após dois dias sem voltar para casa. Amargo, só
conseguia pensar em como havia sido superado pela própria
coisa que um dia tentou descobrir, e o agente ao seu lado
certamente sentia-se satisfeito em vê-lo desconcertado.
— Então, três anos atrás, quando invadi o sistema de
vocês, era isso que eu estava tentando descobrir?
— Você teria sido caçado bem mais rápido se o Pe-
riscópio estivesse operante. Mas agora, por simbiose, você o
fortaleceu. Só precisamos monitorar e cortar os falsos positivos
que ele apresentar.
— Não pode ser. Vocês não teriam perdido tempo me
colocado para proteger um servidor cheio de informações
vazias, seria um desperdício de talento. Tem algo que você
não está me contando.
— Eu estou te contando toda a verdade. — E estava
saboreando cada momento dela também. — Se você soubesse
que estava fazendo parte de um projeto tão grande, tentaria
colocar algo de você nele, tentaria deixar sua assinatura.
Precisávamos deixar o projeto estudar você, usar você. Você
ensinou a ele tudo o que sabe, sem descobrir metade de tudo
o que ele é.
Os dedos de unhas finas e roídas de ansiedade se fecharam
firmes contra o próprio punho, e por um momento
colocou na balança a sua liberdade contra o soco nos dentes
do agente, que nunca veio a acontecer. O longo suspiro que
o colocou de volta nos trilhos foi estéril e ruidoso, com gosto
de derrota.
— Mas eu estava certo. Há um programa de espionagem
nesse país, não é?
— Não. — Waters estava dedicado a não lhe dar nem
aquela migalha de vitória. — Há um programa de espionagem
ao redor do mundo inteiro.
— Me explique.
— Descobrimos que não precisamos estar em cada
computador e celular ao redor do planeta. Só precisamos
criar uma backdoor, um desvio por onde essas informações
fluam até nós. Você deve saber disso. Deve saber como empresas
aparentemente boazinhas têm contrato conosco e nos
concedem informações de seus clientes de tempos em tempos.
— Redes sociais.
— Redes sociais. Estranho como um garoto tenha
criado uma empresa bilionária quase de um ano para o outro,
não? É quase como se ele tivesse tido uma... ajuda interna.
— Mas ele não teve.
— Claro que não teve. — O riso ficou preso dentro
da boca de Waters, condescendente. — Nesse sentido, não
precisamos fazer muito. Pedimos os dados dos usuários, e
ele nos entrega. As pessoas confiam nele, por alguma razão.
— Seu próximo gesto foi dar com os ombros. — Da mesma
forma que alguém confia no seu traficante, imagino. Mas vício
não se discute. Acham que vale a pena o risco.
— Nem todo mundo usa as redes sociais. Não seria o
suficiente para vigiar o mundo inteiro.
— Não, mas é o começo. Os dados foram suficientes
para criarmos algoritmos de previsão de comportamento,
análise de tendências, o tipo de coisa que nos permitiu estudar
a manipulação da população.
— Com o quê? Billboard? Televisão?
— A princípio sim. Parece trivial, mas entender o
gosto do público e fabricar artistas obsoletos para comprovar
nossas teses foi crucial para passarmos para projetos mais
agressivos, como as eleições. Há um limite no que podemos
fazer baseado apenas nas informações da nossa população.
Chega uma hora em que precisamos... entrar dentro dela.
— Então o que fizeram?
— Sabe o que é o mais irônico, Pickett? Noventa porcento
das pessoas te dirá os seus maiores segredos, se você
simplesmente pedir. Câmeras, microfones, documentos, arquivos,
tudo em nosso poder eles sabem que podemos ler,
acessar, espionar, e ainda assim resolvem arriscar. Precisamos
fazer apenas valer o risco. Ora, nenhum drogado deixa
de injetar por causa do risco de uma overdose, não é? É um
mau necessário. Tudo o que precisamos fazer era achar outro
culpado, outro bode expiatório.
— Seus cretinos. — Pickett não pareceu realmente
acusá-lo com a ofensa, e a Waters tampouco desagradou o
adjetivo.
— Pouco a pouco instigamos medo na população.
Criamos uma política de segurança extrema, de vigilância
necessária, de revistas em aeroportos e invasão de privacidade.
Apontamos um inimigo invisível do outro lado do
planeta e pronto, temos nossa narrativa apoiando nossos
negócios. Fizemos a população acreditar que precisavam escolher
entre liberdade e segurança e eles nos deram a chave
do mundo.
— E depois?
— Depois, a sociedade tomou conta disso. O consumerismo
agiu a nosso favor. Toda vez que precisamos
aprimorar nossos softwares tudo o que temos que fazer é
contatar as grandes empresas e elas lançam um novo modelo
que todos correm para comprar. Ninguém liga para os
sinais: câmeras ligando sozinhas, sensores de voz ouvindo
conversas, todos descartam como apenas um bug. Mas por
trás de cada bug há um processo. E por trás de cada processo
há algum de nós observando. O homem que hoje brinca
com um drone junto de seu filho escolhe ignorar que essa é
a mesma tecnologia matando dissidentes no Oriente Médio,
e a piada da sociedade é aquele que se isola em alguma cidade
no Alaska sem contato com o mundo exterior. Vê como é
fácil influenciar o mundo? As pessoas têm medo de inteligências
artificiais à la Hollywood, e enquanto elas estiverem
ocupadas pensando naquela merda do Exterminador do Futuro,
não vão perceber o quão inteligentes seus smartphones
realmente são.
— Aquele filme é um clássico, não ofende. — A breve
troca de olhares entre ambos foi o suficiente para colocarem
a conversa de volta nos trilhos. — Mesmo que consiga espionar
e ter acesso a todos os dados de cada pessoa do planeta,
o sistema sempre vai ser falho. Não há como predizer tudo,
saber tudo, conhecer tudo.
— Não precisamos. Precisamos apenas o suficiente
para ainda exercermos certo domínio sobre o público. O
que não cabe em nossas mãos não é necessário. Gostamos
de pensar que isso é a ilusão do livre arbítrio, uma liberdade
falsa que concedemos apenas porque estamos ocupados
demais. — O canto de seus lábios curvou-se com uma risada
torta. — Nem Deus tem tempo para todos, Pickett.
— Você também teve algo a ver com o escândalo das
indústrias farmacêuticas recentemente, não é?
O olhar de soslaio do agente disse tudo. Apreciava
cada momento daquela inversão de papeis, onde por um
momento o hacker sabe-tudo parecia outra vez cair em uma
matriz estranha aos seus conhecimentos; o olhar perdido
que encontrava com o dele deixava Waters profundamente
satisfeito. Ao mesmo tempo, dois militares entraram pela
mesma porta pela qual haviam passado antes, suas conversas
entre sussurros escusos.
— Elas nunca foram o verdadeiro vilão da sociedade.
Foi nosso trabalho fazer o cidadão comum duvidar da medicina
e rejeitar vacinas. E não foi difícil. As pessoas costumam
duvidar de tudo o que é organizado e poderoso demais. O
maior golpe que já aplicamos foi fingir que nosso governo
é tolo, desorganizado, ineficiente. Enquanto isso, tivemos
tempo de fazer a população voltar sua raiva para antagonistas
menores, e focar nossos olhos no que realmente importa.
— Na internet?
— Como eu disse, as pessoas se sentem confortáveis
lá. Confortáveis o bastante para confiarem em pessoas que
não devem, e revelarem o que não podem. Você sabe disso,
é quase uma religião. Os cultos de personalidade, estranhos
em fóruns anônimos digitando suas confissões, pessoas rejeitando
a medicina e acreditando em geocentrismo novamente.
Nosso maior trunfo não foi criar um computador
hiperinteligente, só uma população que fosse mais burra que
ele.
— Então você criou... isso. Um computador que pro-
cessasse todas as informações dos computadores do mundo
ao mesmo tempo?
— Nem todas, apenas as que queremos ver. Mas as
informações estão à nossa disposição. Hoje é mais fácil que
alguém confie em algo inanimado, a confiança é algo cada
vez menos dividido entre humanos. Tudo que precisamos
fazer foi entrar do outro lado do confessionário.
De repente, aquele computador diante dos dois tornou-
se símbolo de algo bem maior para Pickett, um monumento
à curiosidade e trapaça humana, ao mesmo tempo os
olhos no abismo e a mão invisível que moldava o mundo,
onisciente e onipresente. Não o incomodou tanto ter sido
enganado por ele quando soube que o mundo inteiro também
havia seguido seu exemplo, mas sua inexpressiva inexistente
face não aliviou de suas costas o peso de ser constantemente
observado, de estar diante de algo inescapável.
— Vocês só precisam de um nome apropriado para
essa coisa.
— É mesmo? — Waters ergue uma sobrancelha, divertido,
mas resolve dar corda ao garoto. — E no que está
pensando?
— Em Voltaire, o filósofo.
— Voltaire? — Sua voz desata a um riso desta vez. —
Vai chamar o computador de Voltaire?
— Não. Estou pensando em algo que ele disse uma
vez...
Sem olhos, Pickett sabia que o computador o olhava
de volta. Sem ouvidos, sabia que conhecia cada uma de suas
palavras. Não precisava olhar para o mainframe para encará-
-lo, pois já estava em sua presença muito antes de saber. Foi
estranha a sensação de ter consciência de que seu destino já
estava decidido a partir do momento em que resolveu invadir
aquele servidor do governo, cada passo posterior pelos
próximos meses e anos calculados friamente, esperando pelo
passo em falso rumo à armadilha que o esperava. Waters
havia dito que o computador era incapaz de soluções cognitivas
e inteligência artificial, mas até certo ponto, Pickett
discordava; havia algo de sádico na maneira como fabricava
o destino daqueles que resolviam desafiá-lo.
— “...se não existisse um deus, seria necessário inventá-lo”.