Prólogo
Epílogo
Conto
Entre todos os tiros, aqueles que mantinham os olhos
fechados poderiam imaginar que a trovoada havia voltado
para a terra de tanta boca seca. O sangue lhes escorriam as
têmporas em chuva, o reles choro de quem morria de pernas
ou braços esmagados molhando a poeira do sertão, e se chorassem
e sofressem por muito, talvez germinassem um pé de
fruta ou flor no meio de tanto nada.
Rita, entre os cangaceiros, era a única que mantinha-
-se com o nome de gente, e por isso sentia-se carregando
uma parte da humanidade que nada destituía-lhe, seja o
castigo de tanto sol ou a cobrança de tanta morte. Respirou
duas vezes fundo, uma para deus-pai e outra para deus-padrasto,
mordeu o palheiro metálico com o canto da boca e
fechou um dos olhos, ajeitando a postura curvada sobre a
carcaça metálica do tanque destruído.
Em suas mãos, um canhão portátil verde-escuro ajeitava-
se tão bem quanto seus dois filhos um dia o fizeram.
Aninhavam-se, choravam e o faziam por amor da mesma
forma. Rita ajustou a mira para o tanque restante, firmou
ambos os pés no chão e apertou o gatilho. Um disparo roxo
cruzou o ar seco e fez fogo e fez morte. Sentia-se um anjo
por pôr tanta gente no céu.
Não demorou muito para que o seu grupo de cangaceiros
pulassem das moitas amassadas em que se escondiam,
cavalgando seus cachorros metálicos enferrujados, de gritos
a céu aberto e urros de contentamento enquanto limpavam
o resto dos soldados que mancavam ao longe. Rita ajoelhou-
-se ao lado de sua antiga montaria e recolheu as partes que
ainda lhe eram boas. Do ferimento que havia destruído seu
núcleo, molhou os dedos em óleo e os passou no rosto, em
rito e agradecimento ao trabalho do bom amigo.
– A desgraça que é um bom canhão! – Brastempp
assoviou vendo o estrago em ambos os tanques destruídos.
– A desgraça que faz uma matadora, isso que é. – Rita
resmungou e ajeitou o canhão. – Um de vocês pode descer
e me dar seu cachorro, o meu tá pra lá de morto. De quem é
a retaguarda?
– Hoje é o Toshiba. – Brastempp apontou o mais jovem
dos cangaceiros com o queixo.
– Então, passa, passa! – Rita bateu com a ponta do
canhão na perna de Toshiba. – Vamo pra frente, daqui a
pouco tá noite e, se ficarmos sem teto, os drone desce o tiro
na gente.
O som das patas afundando a terra morta alastrou-se
pelo cangaço. Pouco tempo foi preciso para que cobrissem
as próteses com panos rasgados, impedindo o superaquecimento
diante da tarde. Cruzaram os ventos, cumprimentaram
as crianças que lhes corriam às pernas e davam as boas
notícias às vilas que cruzavam: haviam matado mais alguns
do exército, e a lei dos outros não se criaria naquele dia em
seus ninhos.
Logo viu-se o mar, rugindo entre as ferrugens de
um cemitério de navios tombados, de cascos arrombados e
caldeiras desenvergonhadas caídas ao fundo do mar. Crescida
como trepadeira no litoral estava o maior polo daquelas
terras, a cidade da ferrugem que culminou do progresso em
torres de sucata e restos das metrópoles do sul. Em suas sombras
viviam mercadores de peças, coletores e desmanchadores
de máquinas, vivendo há muito na margem de tudo.
Entre as ruas apertadas, de armas sobre a cabeça para
evitarem que porcas e engrenagens tombassem das monta-
nhas de sucata e afundassem os ossos de suas cabeças, os cangaceiros
rumaram aos balanços pelas sombras. Meneavam
com a cabeça para os velhos conhecidos e reservavam ou
dentes de ouro ou o cano da arma para os demais.
Uma porção de vezes esconderam-se de drones que
zanzavam as ruas com seus visores multicolores, tocando
incessantemente em seus alto-falantes o programa de rádio
do governo. Vasculhavam cada rosto que cruzava as ruas e
conferia seu banco de dados atrás de uma execução a ser feita.
Com cuidado, os companheiros esgueiraram-se e fugiram
em cada esquina.
De frente para um alto portão metálico, os cangaceiros
amarraram o dinheiro certo em um ratinho metálico que
pingava óleo por onde passava. Logo este fugiu aos guinchos
para dentro de um cano junto à parede e devolveu ao silêncio
para a ruela. Um par de minutos bateu no relógio antes do
portão abrir-se em boas-vindas.
Fusca era o mais confiável dos trastes daquelas terras.
Era um homem baixo, manco e atarracado, de nariz sempre
vermelho. Seus olhos cheios de remela e reclamações constantes
de dores nos ossos indicavam que seu corpo ainda tinha
muita parte humana, o que era um milagre para o seu
negócio. Com um estalo de sua língua os cachorros enfileiraram-
se e foram para baixo dos panos cinzentos às sombras
do grande galpão. Cumprimentou os cangaceiros com a cabeça,
trocou umas palavras com Rita e indicou a porta no
alto de uma escada com a cabeça.
– Cês tão na mão do salvador. Subam ali e aproveitem
o resto da galera, hoje tem três por dez, quatro pra quem
destruiu um dos tanque.
– Os dois foram dela. – Brastempp bufou e subiu em
passos pesados o lance de escadas.
– O desgraçado tá bravo? – Fusca franziu o cenho e
riu com desprezo. – Vamos se esforçar pra quebrar tanque
da próxima.
– Deixe disso. Não é um bom dia. – Rita deu de ombros
– E faz tempo que não é. Cê tá muito tempo aqui na
sombra de um bar pra lembrar como é lá fora.
– Tudo o que lembro é de como era lá fora. – Fusca
deu as costas – por isso fico bem aqui dentro.
Depois de cruzarem a porta do depósito, caminharam
em fileiras pelos vários corredores mal iluminados até
encontrarem o bar. Mesas redondas espalhavam-se pelo pequeno
espaço, de madeira escura avermelhada, abrigando
costas curvadas e cabeças abaixadas sobre os próprios copos.
Rita passou a unha de ferro sobre a superfície do balcão e
anotou mais um traço para sua conta de vezes que havia conseguido
voltar. Fez um sinal com a cabeça para o atendente e
logo estava com sua boa bebida molhando os lábios.
Seus companheiros distribuíram-se pelas mesas e
cantos, todos de armas juntas ao corpo. Alguns aproveitavam
para lustrá-las, ou desmontarem e remontarem as peças
para enganar a ferrugem. Quatro ou cinco pediram licença
à capitã para que descessem a cidade atrás de mercadores ou
bordéis, e assim foi permitido.
Quando Toshiba veio com ambas as mãos sobre o
peito para perto de Rita, o rosto contorcido em caretas, esta
respirou fundo.
– O que tu quer?
– Acho que tem algo errado com o coração que arrumou
pra mim. Não tá bombeando direito.
– Como que não tá? Ele só tem que bater e fazer mais
nada. – Rita fez um sinal com a mão para que o garoto se
aproximasse.
– Viu? – Ele abriu a caixa do peito e mostrou a peça,
antes vermelha e brilhante, em um tom escuro guinchando
a cada batida.
– É, tá ruim. – Rita tamborilou os dedos no balcão,
fez um sinal para que o atendente trouxesse outra bebida e
voltou-se para o jovem. – Paguei caro nessa desgraça pra que
um bocó que nem tu estragasse rapidinho.
– Eu nem fiz nada, não bota culpa em mim.
– Tá, tá. Deixa que amanhã no primeiro do sol, eu
vou bater na porta do médico que nos vendeu. Ele bem conhece
Rita e a lei do canhão.
Brastempp aproximou-se em passos rápidos e pôs o
ouvido perto do peito de Toshiba, os olhos fixos no chão escutando
os guinchos que lhe vinham cada vez mais rápidos.
– Isso tá me parecendo uma bomba. Já vi disso acontecer.
Vendem um rim, um pulmão e não dá pra confiar. É
bomba. O exército encontrou um jeito fácil de nos pegar – o
tom de voz calmo não acompanhava as mãos que buscavam
a arma presa na cintura. – Vamos ter que apagar esse daqui.
– Que bomba o que! – Toshiba procurou Rita com o
olhar. – É problema mecânico, peça vagabunda, só isso!
– É bomba pra tu matar todo mundo de uma vez!
– Bota essa pata no chão, Brastempp. – Rita deu as
costas pra ambos. – Se um nosso matar o outro vai ser o fim
dos cangaceiros. Confie na nossa rede de contato, tamo vivo
até agora por conta dela.
– Já matamos antes um dos nossos. – Brastempp chutou
o banco ao lado de Rita. – E você pegou o lugar dele.
– Parece que você esqueceu que a lei do canhão. –
Rita puxou a grande arma e a encostou no rosto do homem.
– É feita por quem tem o canhão.
Brastempp engoliu as palavras que lhe escalaram a
garganta em ira e deu as costas para ambos os companheiros.
Permitiu-se o silêncio ao pegar uma garrafa da prateleira,
aos protestos do atendente, e sentou-se em uma mesa com
outros seis cangaceiros, respondendo suas perguntas curiosas
sem tirar os olhos da chefe.
Tão indiferente quanto antes, Rita esvaziou o seu
copo e apoiou a cabeça em uma das mãos, permitindo-se fechar
os olhos. Toshiba, que bem sabia quando recuar, procurou
seu próprio canto a fim de dormir as horas que o medo
tinham lhe tirado.
A líder daquela larga tropa escutou os visitantes do
bar entrarem e saírem, os olhos curiosos vasculhando o
grupo empoeirado. Soube que muitos sentiam as juntas das
próteses doerem somente de pensarem o quanto ganhariam
por os entregarem ao exército, mas para isso, precisariam
ignorar a história construída em ossos e sucata.
O fantasma do antigo líder Internet inevitavelmente
os protegia para onde suas patas alcançavam, sua fama
alastrada como cantiga, história viva que passava de tela em
tela para as crianças do sertão. Operário de fábrica, foi pai
de muitos androides durante seus anos de trabalho duro.
Terminou pregando os pés do general que comandava sua
cidade após este ter usado seus filhos contra o próprio povo.
Internet tirara os empregados das correias dos patrões e então
encontrara em Rita, costureira de uniformes, uma forte
aliada para espalhar a fome de sangue e óleo que devorava a
justiça de seu povo.
Naquele tempo, Rita havia perdido apenas dois dedos
para o metal. Logo depois de tanto tiroteio, cirurgias vieram,
o neon subiu a cidade e as próteses se mostraram mais que
necessárias. A modernidade eram seus pulmões, seus dedos
e parte de seu crânio. Cheirava à metal e poeira.
Nas prateleiras daquele bar Rita encontrou cada parte
de sua história de seca e guerra. A garrafa redonda e baixa
na última prateleira continha o que havia bebido por abandonar
seus filhos. Na comprida flutuavam os membros de
seus corpos que perdera. Viu em seu próprio copo o dia em
que Internet adoeceu e pediu-lhe que não o deixasse morrer
sem ser em uma luta.
Rita pensou ter dormido entre as lembranças, porque
quando acordou com o som de tiros, ainda lhe mastigava a
saudade. Brastempp tinha sua arma apontada para cima, o pé
pressionando a perna de Toshiba contra o chão. Do peito do
jovem assustado, saíam os guinchos de um pássaro metálico.
– Tá pra explodir! – Brastempp gritou. – Eu faço isso
por nós! Por nós!
– Você pode tentar... – Rita levantou-se, mas sua perna
direita cedeu o equilíbrio à bebida e caiu com os joelhos
no chão.
– Você não tá em posição de nada.
– Chefe, chefe! Ele vai me matar mesmo, por favor,
atira nesse desgraçado! – Toshiba arranhava o chão chorando,
lutando para fugir.
– Para de se debater, diabo! Tu vai matar todo mundo,
é isso que quer? A gente tá muito tempo na estrada pra
cair por bobeira assim. Para, inferno!
– Não faça isso! Não... não... – Toshiba pôs ambas as
mãos contra o peito e tentou contar algo, mas nada conseguiu
arrancar. Esmurrou mais duas vezes contra o próprio
corpo e tombou os braços sem vida ao seu lado, os olhos
ainda tomados do medo.
Rita podia escutar os cachorros enlouquecidos no
depósito, latindo como uma horda de abutres sobre os grandes
lagartos mortos na areia. Sentia sua têmpora explodir
em fogo e bala, o som da guerra misturado ao trompete dos
anjos. Podia ver os milhares de monitores espalhados pelas
paredes, piscando como veias de um só corpo, em que corria
brilhante, brilhante neon. Via Brastempp, via Toshiba morto,
e depois seus dois filhos brincando, viu Caim e Abel na
bíblia eletrônica que sua mãe guardava e Internet tecendo o
próprio uniforme com sua antiga agulha. Depois tudo era
prego, pé e o velho, velho sol.
Rita passou a língua nos lábios e secos e empunhou
o seu canhão. Viu na sua frente o seu antigo marido, ainda
com um dos filhos esmurrados em suas mãos, os nós dos
dedos cobertos de sangue. Puxou o gatilho.
Viu na sua frente Internet apoiado em seu canhão,
sem forças para manter-se em pé, mas de sorriso nos lábios.
Disse que uma história de herói para crianças do sertão não
morria de doença. Puxou o gatilho.
Viu Brastempp sobre o corpo de um jovem morto,
os olhos tomados de culpa e a boca dizendo palavras mudas
de perdão. Ele trouxe ambos os braços pra frente do corpo
e sentia que iria começar a chorar se Rita continuasse a lhe
apontar o canhão. Puxou o gatilho.
Os cangaceiros que voltavam do bordel, ao presenciarem
a cena, empunharam suas armas e descarregaram em
gritos tiros. Aqueles que se mantinham no bar tomaram lados,
em apoio ao lado que lhes rendesse a vida. Logo tudo era
morte, e seja no bar ou na areia, tudo voltava a ela.
Quando encerrada a luta, Fusca, retornou ao bar e
fechou os punhos ao ver o sangue que escorria por baixo de
sua porta. Chorou em ódio diante dos corpos. Pôs o braço
para fora e fez o sinal para que o exército se aproximasse e
pegasse o que sobrara dos cangaceiros moribundos, avaliando
o que dava para aproveitar de tanta peça.
Rita arrastou-se pelos infinitos corredores, o sangue
deixando o rastro de suas feridas. Estava decidida a não ter
um dedo que fosse carne de patrão em seu corpo. Abriu a
porta do depósito e tentou descer a escada, mas a força já não
mais lhe pertencia.
Enquanto caía, sentiu-se sua velha agulha em meio a
tanto fio. Parou sem vida entre todos os cachorros que ansiosos
lhe esperavam para partir.
Tristes, uivaram por toda aquela noite.
Uivaram até os primeiros trovões ecoarem os céus.
Até o exército encontrar novos cangaceiros para lutar.
Uivaram até a chuva inundar o que havia sobrado de
tanta luta e tanto cansaço.