Prólogo
Epílogo
Conto
— Porra, Rato! Vambora!
— Tou acabando, cara! Sossega aí!
— Os drones sobrevoando a nossa cabeça, e você
mandando o cara sossegar, caralho?! Tá louco?
Largando o PAD, o Rato ajeitou as lentes e, para desespero
geral, botou-se de pé, com as mãos na cintura.
— Qual é, cara! A gente só quer sair daqui vivo!
— Tomar no cu! Quem mandou trazer a bosta de um
moleque fedendo a mijo pra uma operação pesada dessas!
Agachados, os quatro manifestavam seus mais profundos
sentimentos. A adrenalina invadia suas veias, envenenando
toda a carne. Em pé, no meio deles, o garoto mantinha-
se tão altivo quanto estúpido, quase implorando por
um projétil em sua testa. Embora estivessem no escuro, os
espiões caçavam qualquer sinal de vida com suas hélices e
câmeras de infravermelho.
— Vocês não têm mais ninguém… Os que sobraram
mal conseguem cuidar das câmeras das galerias. Se continuarem
sem me dar o devido valor, vão acabar trancados no
esgoto, comendo a merda dos daqui de cima…
— Vai, Binho! Pede desculpa pro cara! Ele tem razão
— exortou a moça.
— É, Binho… Deixa o moleque trabalhar em paz,
vai… — ordenou o líder.
— E logo, inferno!
Binho afrouxou a máscara, secou um tanto o suor dos
olhos e, contra todos os impulsos, humilhou-se, como ordenara
o Máquina:
— Rato, me desculpe. De verdade… Você é o melhor
no que faz, e eu nem estaria aqui se não fosse por você. Então,
se você puder se abaixar e continuar a mexer na trava, eu
agradeceria de todo o meu coração. Beleza?
— E o que mais? — Provocou o pequeno.
— Você não é moleque nenhum. Nem tem cheiro de
mijo.
— Não é suficiente. O que mais?
— Eu… eu te dou um quinto da minha parte, quando
a gente achar abrigo.
— Um quinto? Nunca! Um terço!
— Tá louco, caralho?! Um terço?! Nem fodendo…
— Um terço ou nada…
— Porra, Rato. Você vai limpar o cara mesmo? Tem
certeza? — repreendeu Máquina.
— Tá certo… Um quinto. Mas que seja a última vez.
— Que brisa, cara… — E, enquanto Binho se recompunha,
o Rato, sereno como a morte, seguiu seu trabalho.
Fora do círculo de tensões, a chuva caía copiosa, encarregando-
se do calor infernal que brotava do chão. Qualquer
um, ao ver água a jorrar das nuvens em tamanha abundância,
pôr-se-ia a lamber as gotas, dançando e cantando ao
seu toque. Só não eles, nascidos e criados sob o jugo dos anos
40; formados pela fome e forjados na imundice e escuridão
do submundo. Pelo menos não naquela água turva e envenenada.
• • •
Foi em 33 o último grande conflito. Aquelas terras,
antes orgulhosas em dizerem-se “país”, hoje contentam-se
em serem chamadas “Condado Baixo do Terceiro Distrito
da América”, com o apelido carinhoso de “Capital da Antiga
Floresta Tropical”. Não havia mais praias, árvores ou
animais senão os peçonhentos. A maior parte do território
estava inabitável. Todo o esforço, nos anos seguintes ao
conflito, resumiu-se no cobrir com estruturas de chumbo e
concreto parte do solo, escondendo, em seu interior, o que
era a antiga cidade, tão convicta, em tempos passados, de ser
o centro produtivo da América Latina. A capital informal
do Brasil. Tal monstruosa obra precedeu o levante das cúpulas.
Os privilegiados as habitavam, com seus filhos, cães,
papagaios e macacos. Os rendidos também poderiam lá viver,
contanto que submetidos aos trabalhos de manutenção
da vida e, consequentemente, das construções suspensas. O
restante ou morreu de fome, intoxicação ou qualquer outro
dos males resultantes da natureza ferida e violada ou organizou-
se, ocupando a subestrutura de alicerce, vivendo entre
a vida desgraçada e a destruição iminente. Em suas cabeças,
resistiam ao domínio dos estrangeiros, suas bombas atômicas,
caças e fuzis. Na realidade, não combatiam sequer o vazio
do estômago. Com ódio e inveja, acabavam pegando-se a
admirar os imensos e gravemente iluminados domos vítreos
suspensos no ar, em gritante contraste com o céu arroxeado
e repleto de nuvens. Todavia sonhavam com seu espólio sem
aceitar as coleiras da submissão e a escravidão disfarçada de
“emprego”. Eram, por piores e mais imbecis que fossem, a
resistência que havia. Mesmo que não a ideal.
• • •
— Consegui! — quase gritou o Rato.
— Pois, vamos! Silêncio e toda atenção do mundo!
Se o X-9 estiver certo, esse anexo é o armazém pessoal do
Ministro Distrital. Vai estar cuspindo guardas pelo ladrão.
— As câmeras tão em looping, chefe.
— Ótimo, Rato. Parabéns pelo trabalho.
“Todos prontos?”
— Armados e carregados, chefe — responderam em
uníssono.
— Perfeito! Vamos! Ação.
Nos corredores, o esforço consistia em manter silêncio
absoluto. Mesmo os pequenos estalos das granadas
de PEM poderiam alarmar uma sentinela. Passo a passo,
como felinos, dirigiram-se ao cofre secundário, guardião do
maior tesouro possível para eles: rações básicas. A entrada
foi simples. Rato já decodificara a criptografia daquela hora.
Tinham mais de quarenta minutos para juntarem o que pudessem.
Em meios às prateleiras, a empolgação era tamanha
que, se pudessem, gritariam. Não havia, lá, apenas ração básica,
mas queijos sintéticos, álcool e iguarias sem fim. Um
verdadeiro e incontestável paraíso na Terra. Arrancaram os
filtros de ar, as lentes de proteção e puseram-se em movimento.
— Juntem o que puderem e só o que valer a pena
carregar! — Mas a ambição não permitia algo tão simplório
quanto barras de proteína. Eles estouravam garrafas, provavam
doces e sabores que suas línguas jamais antes conheceram.
Esbaldavam-se, com as bocas mudas e sorrisos a rasgar
o rosto.
Tendo o cronômetro o devolvido ao tempo e espaço,
Máquina tratou de reunir sua equipe, garantindo que todos
estivessem bem equipados de mantimentos a perder-se a
conta.
— Cadê o Rato?
— Aqui!
— Cheio?
— Cheio por dentro e por fora, chefe. A bolsa tá lotada!
— Binho!
— Quase pronto, chefe!
— Comigo tudo bem, também, chefe… E obrigado
por não perguntar… — resmungou Fred.
— E a Samanta?
— Sei não, chefe.
— Puta merda… A gente tem menos de dez minutos…
— Chama ela, Máquina. Se fosse pra terem percebido
a gente, já tinha acontecido.
Concordando temeroso, Máquina quebrou o silêncio
de rádio, cobrando, da moça, sua posição…
— Máquina do céu, cara! Isso é loucura demais! Você
tem que ver o que encontrei, Máquina!
— O que é, Samanta? Onde você tá, louca do caralho?
— Chefe, eu achei uma passagem de ar, daí me meti
nela e, quando saí, eu encontrei… — e gargalhava-se, a jovem.
— O que, Samanta? Que porra foi que você encontrou?
— Uma impressora de credenciais, Máquina! Temos
passe livre para os domos!
— Puta que pariu, Samanta! Traz logo essa merda pra
cá, e vamos dar no pé!
— Estou indo, chefe. Chego…
— Samanta? Samanta?! Tá ouvindo? Responde! —
Todos arregalaram os olhos, em indiscreta preocupação.
Após um curto instante, Samanta, ofegante, bradou
aos ouvidos de todos:
— Fodeu, porra! Fodeu! Tem um ARC-35 no meu
pé! Foge, caralho! Foge! — Referindo-se ao Autômato de
Rastreamento e Contenção, desenvolvido pela SCYCLONE
INC. para exterminar dissidentes. Aos olhos de muitos, praticamente
uma churrasqueira portátil pintada de preto. Para
quem deles ouviu falar, um blindado leve com potencial de-
moníaco de destruição, ágil, pequeno e, até então, imbatível.
— Chefe, e agora? O que a gente faz?
— Vocês, levem o Rato daqui o mais rápido que der.
Não falem nada no rádio, e se escondam na primeira galeria
que pintar. Os drones vão estar loucos, lá fora. Então, olhos
abertos e evitem, a todo custo, qualquer conflito. Perfil discreto
e protocolo de evasão.
— E o senhor?
— Vou buscar a Samanta…
— Mas isso… isso é suicídio, Máquina… — reclamou
Fred.
— A mina se arriscou por querer, chefe… Aí você vai
lá e morre de graça por uma besteira dela! — acrescentou
Binho.
— Sim, ela foi idiota. Mas, com essa idiotice, ela quase
abre pra gente as portas do paraíso… Aquela impressora…
Se ela conseguisse a impressora, a gente nunca mais tinha
que invadir depósito, nem morar no esgoto. Eu não vou deixar
ela sozinha!
— Caralho, isso é muita burrice…
— Se ela sobreviver, pode esquecer esse treco, Máquina…
— Não é por isso… Não vou perder ninguém! Cansei
de me esconder em buraco. Ou saio com a Samanta ou fico
por aqui… Chega!
— Pensa direito, seu idiota teimoso duma figa! —
Todavia não foram capazes de mudar a mente de Máquina.
Ainda havia a esperança de Samanta resgatar o precioso objeto.
E, ainda que não o pudesse fazer, Samanta era um deles.
Esse motivo, sozinho, já justificava a ação imprudente.
Vendo-os enraizados no medo e na dúvida, Máquina
assumiu seu papel. E talvez o fizesse pela última vez:
— Vão, porra! Vão! É uma ordem!
Os rapazes correram para a saída; Máquina, na direção
de seu maior pesadelo. De ali em diante, nenhum corre-
dor seria seguro; nenhuma porta, saída; nenhum clarão viria
do céu. A cada passo, o coração subia, buscando o refúgio da
boca. Um segundo poderia dividir todo o futuro. A verdadeira
rebelião poderia estar ali, ao alcance dos dedos. Sem
entender os próprios sentimentos, Máquina ousou zombar
da própria sorte. Dando início a missão de sucesso tão impossível,
exclamou:
— Se você sobreviver, garota, juro: eu mesmo te
mato!