Prólogo
Epílogo
Conto
Na noite anterior à sua morte, Álvares de Azevedo sonhou. Não um sonho comum, mas o mais fantástico de todos, inalcançável até mesmo aos grandes ébrios. Nem no maior delírio de absinto e láudano um poeta teria sonhado como ele o fez nesta noite. Pois era um delírio de morte, o momento quando a sanidade se perdia e a mente se dissolvia no vazio do nada.
Maneco, como era conhecido pelos íntimos o aspirante a escritor, vagava nas proximidades do Largo de São Francisco, na escura rua do Piques. Naquela época, a cidade de São Paulo era uma modesta capital provincial, contando apenas com duas ou três dezenas de milhares de habitantes. Foi ali que uma casa estranha lhe chamou a atenção: uma construção de aparência muito antiga na qual nunca havia reparado. Era uma animada taverna que, mesmo tarde da noite, emanava alegria na forma de luz, música e dos sons de animadas conversas. Em uma placa de madeira, acima da porta, lia-se “Taverna Bode mágico”, ao lado das figuras de duas cabeças de bode.
O jovem escritor e estudante de Direito era muito diferente de seu eu lírico. Tinha um comportamento exemplar, talvez até casto, e não era dado às noitadas e orgias que eram frequentemente os temas de suas histórias e poemas. Entretanto, pelo menos nesse sonho ele era Maneco, o eu lírico incorporado, e, assim sendo, entrou na bodega com toda a autoconfiança de um experiente boêmio.
Qual não foi sua surpresa quando se transportou para um lugar fora do tempo e do espaço? Entrara em uma taverna medieval, pelo menos na aparência, mas povoada por seres fantásticos que pareciam sair da imaginação de Ludwig Tieck ou do romance O Quebra-Nozes e o Rei dos Camundongos, de Ernst Hoffmann. Elfos, anões e outras criaturas se misturavam com as pessoas, todos vestindo roupas coloridas da Idade Média, enquanto sátiros e menestréis animavam o salão com sua mágica melodia.
Maneco caminhou até o fundo do estabelecimento, onde se encontrava o balcão e uma escada em espiral que levava ao mezanino e demais andares da casa. Era inevitável que despertasse a atenção de todos com seu fraque preto, sapato bicolor e cartola.
Distraído com todas aquelas pessoas coloridas, o pobre poeta acabou esbarrando em uma figura saída diretamente da antiga mitologia grega. Era um enorme Minotauro, que o avaliou de cima a baixo com ar de desdém, devolvendo-lhe o empurrão que, de tão forte, o fez cair sentado no chão.
— Senhor, me desculpe pelo empurrão deste triste andarilho — disse Maneco, procurando por sua cartola no piso do salão.
Os olhos do Minotauro brilhavam em fúria vermelha, com seus punhos cerrados e prontos para o combate. Um silêncio se fez no salão, enquanto todos pareciam estar na expectativa de correr dali, caso a fera começasse uma briga. Todavia, para sua sorte, o monstrengo achou suas desculpas sinceras, virando as costas e continuando seu caminho.
O climão se desfez, e Maneco chegou ao balcão, sendo atendido pelo simpático e rosado taberneiro, que prontamente listou as opções de bebidas da casa. E era uma lista das mais estranhas: tinha nomes como “nuvem na garrafa”, “portão do inferno”, “colapso total” e “sangue de Cthulhu”; esse último ele nem ao menos tinha ideia do bicho que era, pois ainda não tinha sido imaginado. Decidiu-se por um copo do vinho élfico por cinco moedas de cobre.
Maneco abriu sua niqueleira, preocupado se seus réis seriam ali aceitos. Catou cinco moedas quaisquer de cobre e níquel e, entregando-as ao taberneiro, perguntou:
— Estas moedas servem?
— Mas é claro que sim. Aceitamos moedas de qualquer reino, nação ou corporação, incluindo até as criptomoedas — respondeu, sorridente, enquanto enchia um copo de madeira com o vinho de um barril.
Maneco provou do vinho, que tinha um sabor completamente diferente do que estava acostumado. Era sutil e floral no sabor, mas bastante inebriante. Sentiu seu corpo leve e admitiu para si mesmo que tinha feito uma boa escolha. Virou-se então para olhar o salão.
Em uma mesa ao lado, cinco anões de cabelos compridos, vestidos com armaduras prateadas, conversavam alto entre brindes animados. Ao lado destes, um grupo de sacis e diabretes contavam vantagem sobre suas travessuras. Em uma mesa maior, no centro do local, elfos e pessoas jogavam dados com sérias apostas. Em outro ponto do salão, rameiras de chapéu amarelo dançavam e provocavam aqueles de bolsos mais cheios, com a esperança de esvaziá-los.
Voltando-se para o balcão, reparou em dois homens localizados à sua esquerda. Eram de um tempo mais moderno, usando roupas arrojadas que pareciam do futuro. Pôde perceber que conversavam em inglês com forte sotaque colonial. O mais jovem era um animado judeu, com óculos de aros escuros, que gesticulava bastante, usando roupas que provavelmente seriam de um tempo por vir. O outro homem, que se chamava Hemingway, era mais velho, com longas barbas brancas, e estava vestido como um marinheiro. Porém, logo sua atenção foi desviada para o outro lado do balcão.
— Você não costuma frequentar tavernas, não é? — perguntou uma voz grave, vinda de seu lado direito.
Maneco virou-se e encontrou um senhor de longas barbas grisalhas, vestindo uma túnica azul e um gorro verde, com o desenho de um pentagrama.
— Desculpe-me, deixe eu me apresentar: meu nome é Adamastor Lovecord.
— Álvares de Azevedo — respondeu o poeta, apertando a mão do homem.
— Você tem noção do tamanho do perigo que correu ao esbarrar naquela criatura? — comentou o velho.
— Aquela com cabeça de touro? Não, mas posso imaginar — respondeu Maneco, tomando um gole de vinho.
— Os Minotauros costumam matar por muito menos do que isso. Não sei o que disse para ele, mas saiu-se muito bem.
— Tive sorte.
— Não creio. Você é um viajante? Comerciante? — indagou, curioso.
— Não, eu sou um poeta. Estudo para ser um advogado.
— Rá! Eu sabia! É um bardo! — gritou Adamastor, segurando-o firme pelo braço e o arrastando dali, contra todos os seus protestos. — Você precisa conhecer meus companheiros.
Adamastor o puxou até uma mesa onde se encontravam um grupo dos mais fantásticos. Havia ali um cavaleiro de armadura, com uma enorme espada; um anão barbudo, carregando um machado quase de seu tamanho; e um elfo em vestes de couro com um belíssimo conjunto de arco e flechas.
— Camaradas, nossos problemas estão resolvidos. Encontrei um bardo! — anunciou Adamastor.
— É um bardo estranho — comentou o elfo.
— Todos os bardos são meio estranhos — considerou o anão.
— Minhas preces foram atendidas — comemorou o cavaleiro. — Vamos, sente-se conosco! Meu nome é Gregor, e estes são Qvar, o anão, e Frova, o elfo. Adamastor, que você já conhece, é o nosso feiticeiro.
— Prazer — respondeu Maneco, cumprimentando os demais. — Eu me chamo Manoel Álvares de Azevedo. Entretanto, vocês estão equivocados a meu respeito. Não sou um bardo, sou um poeta.
— Bardo ou poeta dá no mesmo para nós — comentou Adamastor.
— Você não tem um apelido, um nome menor que esse? – perguntou Qvar, apoiando-se no cabo do enorme machado de combate.
— Meus amigos me chamam de Maneco — gaguejou o poeta.
— Maneco, você se diz um poeta, mas você sabe discursar? — inquiriu Frova, cofiando o cavanhaque pontudo.
— Não! Eu só escrevo — esclareceu.
— Quase ninguém lê; isso não vai servir — sentenciou Frova, olhando para Gregor.
— Mas ele pode declamar, não é mesmo? — argumentou o feiticeiro.
— Eu prefiro que outros declamem meus textos — confessou Maneco.
— Assim não vai servir mesmo — lamentou Qvar.
— Mas claro que vai. Eu vi com meus próprios olhos que com uma única frase ele acalmou um Minotauro. Ele tem o dom — defendeu o bruxo.
— Se Adamastor está dizendo, eu acredito — concordou o paladino, estalando as placas da armadura ao se mexer na cadeira.
— É, se ele me fez discordar de Adamastor só pode ser um bardo muito bom — admirou-se o anão.
— Não estou convencido. Mostre-me um exemplo de seus versos — desafiou o elfo.
Maneco começou a declamar seu último poema:
“Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!”
E ao terminar de declamar, recebeu aplausos não só do grupo, mas de muitas pessoas que silenciaram à medida que ouviam suas palavras ecoarem como mágica no salão. Pois, assim que começou, até os menestréis pararam sua música para ouvi-lo.
— Uma grande canção para coragem em batalha! — bravou o anão.
— Tenho que admitir, ele é bom — admirou-se Frova.
— Mestre Álvares, você estaria interessado em nos ajudar? Terá uma boa recompensa — indagou Gregor, com uma reverência.
— Bom, depende do que vou precisar fazer — alertou Maneco, desconfiado.
Gregor colocou uma caixa de madeira sobre a mesa e a abriu, revelando em seu interior uma joia esverdeada, do tamanho de um punho. Para a surpresa do poeta, dentro da pedra mágica estava uma jovem aprisionada. A visão daquela figura frágil, pálida e adormecida o encantou completamente.
— Esta é a princesa Estelle; ela foi sequestrada pelo terrível mago Vathek, que a encerrou nesta gema mágica. Nosso grupo procurou por meses por este bruxo, até finalmente derrotá-lo, recuperando a princesa. Vagamos por todo o mundo buscando por uma forma de desfazer esse feitiço — explicou Gregor.
— Descobrimos que nesta cidade existe um poderoso feiticeiro que concede um desejo a cada cinco anos. Ele reúne todo o povo em um largo, para que ouçam os pedidos de cada requerente. Aquele que receber o maior louvor do público terá seu desejo atendido — explicou Adamastor.
— O problema é que nenhum de nós tem a habilidade necessária para convencer essas pessoas a salvar uma princesa que eles mal conhecem — completou Qvar.
— E é por isso que precisamos de alguém que mostre para esse povo que a princesa merece ser salva. Alguém como você, que tenha tal habilidade com as palavras — ironizou o elfo.
O poeta mal conseguia prestar atenção ao que diziam, pois seus pensamentos estavam tomados pela beleza da inatingível donzela no cristal. Começou a questionar seus novos companheiros sobre o que sabiam da princesa. Se era introvertida ou extrovertida; culta ou vã; se tinha irmãos e como era sua relação com a família. Mas, para estas perguntas, seus companheiros não tinham respostas. Falaram sobre a riqueza de seu reino, questões de geopolítica ou sobre como o rei era visto pelos seus súditos.
— Vocês não sabem nada sobre ela? Nem de ouvir dizer?
— Bom, se levarmos em conta os boatos… — começou Qvar, olhando ao redor para se certificar de que ninguém mais ouvia. — Dizem que ela não tinha o melhor dos comportamentos. Era dada a saídas secretas e a frequentar ambientes inadequados para sua idade e posição.
— Também dizem que ela frequentava festas pagãs, orgias mágicas, esse tipo de coisa. Que não era exatamente tão inocente e virgem como manda o decoro real — revelou Frova, sempre o mais incisivo.
— E talvez tenha sido por isso que começou todo este causo com Vathek, por frequentarem esses mesmos ambientes — cochichou Adamastor.
— Não deveríamos falar assim de uma princesa. São boatos de gente desonrada, que não tem mais nada para dizer. Nenhum de nós realmente conheceu a princesa — repreendeu Gregor, como todo bom paladino aventureiro.
O poeta ainda ouviu mais alguns boatos sobre a princesa antes de se pôr a escrever sobre a nova musa. Achou fascinante a dualidade daquela visão, tão pura encerrada no cristal e ao mesmo tempo com tanta má fama. Sua pena trabalhou furiosamente no resto da noite, até o sol nascer com seus raios a penetrar pelas frestas das janelas fechadas.
Seus companheiros dormiam no chão da taverna quando acordaram com a animação de Álvares de Azevedo. Havia produzido seu melhor trabalho, uma poesia de tal beleza e fúria que seria impossível descrever aqui, não sem lhe tirar a maior parte da luz e do brilho que minha memória falhou em registrar.
Após o desjejum, partiram para o local onde apresentaria seu texto, o mesmo local onde ficava o Largo de São Francisco em sua própria cidade. Contudo, era a primeira vez que Maneco via aquele lugar, uma espécie de São Paulo medieval que só poderia ser concebida pela mais fértil das imaginações. O grupo atravessou a multidão, que já ouvia os requerentes, até alcançar o coreto no centro do local, onde encontraram o mago ancião acompanhado de meia dúzia de guardas da cidade.
Maneco então declamou seu poema, que, apesar de sua entonação tímida, foi um enorme sucesso. Seu desejo foi escolhido por aclamação, pois todos queriam conhecer a tão encantadora e misteriosa princesa. Decerto foi o segredo sobre sua verdadeira natureza que capturou a multidão. O feiticeiro ancião dançou e conjurou espíritos desconhecidos, até que a joia se rompeu em uma explosão de fumaça verde, libertando Estelle. A população uivou e aplaudiu de forma ensurdecedora todo o espetáculo.
Entretanto, todo esse barulho ocultou a chegada de um grupo de 30 cavaleiros, liderados por um homem montado em um leopardo gigantesco. Eram 30 guerreiros africanos, com armaduras feitas de escamas negras, e seu chefe era o misterioso bruxo Vathek, o persa. Quando se deram conta do grupo, já estavam ao lado do coreto, abordando os guardas de forma ameaçadora.
— Quem são vocês? Cavaleiros montados não podem entrar na cidade; retornem para a estrada e sigam seu caminho — ordenou o chefe da guarda.
— Há de nascer o mortal que dê ordens a Vathek — respondeu o bruxo, fechando sua mão como uma águia que agarra uma presa.
Era um feitiço que começou a esmagar os ossos do capitão, que logo se prostrou de dor. Mas um jovem e impetuoso soldado reagiu ao ver o sofrimento de seu mentor, desferindo um poderoso golpe de lança que atravessou o pescoço do bruxo. Maneco, que estava aflito com aqueles homens terríveis, chegou a suspirar aliviado ao ver seu inimigo ferido e prestes a morrer. Tudo que pensara em fazer até ali era servir de apoio para a princesa, debilitada pelos meses nos quais esteve aprisionada.
— Isso não será o fim dele. Precisamos levar a princesa para um lugar seguro — alertou Gregor.
— A taverna! Maneco, você deve levar a princesa para a taverna. Siga a multidão quando ela começar a correr — sugeriu Adamastor.
— Nós vamos segurá-los aqui o quanto pudermos. Talvez tenha mais guerreiros nesta cidade que venham nos dar apoio. Senão é um dia tão bom para cumprir meu destino quanto qualquer outro — admitiu o paladino, sacando de sua espada.
Maneco ainda tentou protestar, porém se interrompeu quando viu o que acontecia com Vathek. Mesmo com a lança trespassada no pescoço, ele pôs-se a rir de forma sinistra. Em seguida, juntaram-se ao coro de gargalhadas os seus guerreiros. Sem nenhuma pressa, retirou a lança do pescoço, que saiu sem deixar marcas em seu corpo nem despejar uma única gota de sangue. Então, a lança pegou fogo, desaparecendo no ar para o terror da população.
— Como é possível? — indagou Maneco, atônito.
— A alma de Vathek não está em seu corpo, por isso ele não pode ser ferido — explicou Adamastor.
— Então, não é possível vencê-lo?
— É preciso atacar sua alma, que está escondida em uma jarra sob um ninho de dragões, dentro de uma masmorra escura na Montanha do Terror — explicou Gregor.
O tempo fechou repentinamente, e trovões de uma tempestade sobrenatural acompanhavam a risada sinistra do vilão. A população finalmente acordou para a realidade daquela ameaça, correndo em busca de abrigo.
— É agora, poeta! Corra pela sua vida e não olhe para trás! — gritou Adamastor.
O feiticeiro, num gesto mágico de seu cajado, disparou um poderoso raio contra a montaria de Vathek. Apesar da potência do ataque, o leopardo ficou apenas ferido, mas foi o suficiente para derrubar seu mestre ao chão. Enquanto isso, Frova disparava duas flechas certeiras que tiraram de combate dois guerreiros, enquanto Qvar e Gregor partiam para o combate corpo a corpo.
O anão foi o primeiro a desferir um golpe com seu machado, atravessando a armadura do inimigo e o colocando ao chão, fora de combate. Enquanto liberava sua arma daquele corpo, outros dois cavaleiros negros partiam ao ataque com suas lanças, mas Gregor os bloqueou com sua enorme espada, que agora brilhava com uma chama azul e cintilante.
Enquanto isso, Maneco tentava acompanhar a multidão sem ser pisoteado. Era uma sorte que o grupo que seguia se encaminhava na direção onde estava a taverna. Antes de dobrar a esquina, ainda olhou para trás, avaliando a situação.
Adamastor e Vathek disparavam feitiços um contra o outro, contudo, o vilão parecia ter a vantagem. Frova subira ao topo do coreto, de onde ainda disparava flechadas eficientes contra os inimigos que tentavam derrubá-lo dali. Qvar e Gregor estavam cercados por muitos inimigos e pareciam lutar mais pela sobrevivência do que pela vitória. Já os soldados que ficaram tinham sido derrotados, enquanto que os que dali saíram ajudaram a conduzir o mago ancião, exaurido pela tarefa de libertar a princesa.
— E seus amigos, terão alguma chance? — perguntou Estelle, que parecia tomar consciência da situação.
— Não sei. Na verdade, eu mal os conheço. Vamos, princesa, sou apenas um poeta, vamos para a taverna. Espero que lá seja realmente seguro — respondeu.
O local estava quieto e soturno quando o casal entrou. No bar, havia apenas o taverneiro, um homem diferente da noite anterior. Ele usava uma regata de couro negro, que revelava um par de braços musculosos e cobertos de tatuagens. Seu rosto exibia uma barba ruiva espessa, além de diversos piercings estrategicamente distribuídos em locais inimagináveis ao poeta do século XIX.
— Estamos fechados — alertou secamente, sem tirar os olhos de um pequeno aparelho luminoso, algo que Maneco nunca tinha visto antes.
— Precisamos de um lugar para nos esconder! Se ela ficar lá fora, vai ser raptada novamente — suplicou Maneco, sem obter resposta do taverneiro.
— Covardes morrem mil vezes, mas os bravos morrem apenas uma — respondeu outra voz, vinda da penumbra.
Era o velho que falava inglês na noite anterior, o tal do Hemingway.
— Aquele feiticeiro pervertido me quer a todo custo! Por favor, nos deixem ficar, nos ajudem! — suplicou a princesa Estelle.
— Shakespeare? — indagou Maneco, surpreso.
— Parem de choramingar, vocês já são bem grandinhos! Não disse para vocês saírem daqui. Não ainda, pelo menos. Contudo, se não têm coragem, pelo menos tenham alguma compostura! — esbravejou, tomando um gole de bebida direto de uma garrafa.
— Meu nome é Azevedo, e esta é a princesa Estelle. Você se chama Hemingway, não é? Eu te vi na noite anterior; você conversava em inglês com outra pessoa — questionou Maneco.
— Ah, o senhor Allen? Trocávamos ideias sobre uns textos, mas ele já se foi. Não é muito saudável aos forasteiros, como nós, ficar aqui muito tempo. Acabamos nos perdendo, esquecendo o caminho de volta.
— Então, vocês também são bardos? — perguntou a princesa. E, deixando Maneco sem jeito, disse: — Maneco é um grande poeta, fez um maravilhoso poema para mim.
— Esse garoto? Inacreditável! O que um gurizote sabe da vida ou do amor? — contestou Hemingway.
— Você está é com inveja, seu velho! Uma multidão louvou seus versos — esbravejou Estelle.
— Bom, então me mostre alguns de seus textos; vamos ver se prestam — sugeriu o velho autor.
— Nada disso! Estamos fechados e vocês dois têm que sair — protestou o taverneiro.
— E por que ele pode ficar aqui? — perguntou Maneco.
— Porque o cliente fica até a hora que quiser sair. Mas não vocês, porque entraram depois de fechado! — resmungou o taverneiro.
— O andar de baixo está fechado. Contudo, subindo aquelas escadas, vocês encontrarão os quartos. Alugue um e leve a moça para lá — sugeriu o velho, piscando o olho com uma careta maliciosa.
Estelle ficou imediatamente ruborizada.
— Seu velho imoral! O que você está sugerindo? Ela é uma princesa! — protestou o rapaz.
— Que vocês se escondam lá em cima, apenas isso. Ou saiam daqui, voltem para a guerra e morram. Só parem de resmungar e me deixem beber em paz.
— Está bem, queremos um quarto, então — decidiu-se Maneco, jogando um punhado de moedas para o taverneiro.
Os dois subiram as escadas e deixaram o velho autor para trás. Todos os quartos estavam desocupados, então escolheram o do topo, construído sob o vão do telhado. O local não tinha janelas, e a mobília consistia apenas em um colchão de palha no chão, uma cadeira robusta e uma mesinha com uma vela bruxuleante que mal iluminava todo o ambiente.
— Sente-se na cama que eu me acomodo no chão — disse Maneco, depois de bloquear a porta com a cadeira.
— Não, sente-se aqui do meu lado. Converse comigo; faz muito tempo que não falo com ninguém — pediu Estelle.
— Está bem. Como que era estar dentro daquela pedra? — perguntou o poeta, genuinamente curioso.
— Como um sonho, como se estivesse em outro lugar e época. Um lugar estranho, esfumaçado e barulhento. Eu era uma mulher comum e trabalhava para me sustentar, mas não me lembro dos detalhes — respondeu, olhando nos olhos de Maneco em um silêncio constrangedor, até que ele finalmente desviou o olhar.
— Acho que os sonhos são assim mesmo, fugidios, não é? — indagou o jovem.
— O mais estranho é que eu te vi, desde quando se sentou na mesa pela primeira vez até quando declamou seu poema na praça — confessou, segurando sua mão direita.
— Então, você me ouviu mesmo? E o que achou? — perguntou, nervoso.
— Sim, eu ouvi todo o seu texto, e é um poema lindo. Maravilhoso! Contudo, se quer saber a verdade, aquela mulher que descreveu não tem nada a ver comigo.
— Nada mesmo? — indagou, desapontado.
— Eu não tenho toda essa profundidade que você me deu na história. Não sou nenhuma virgem ou santa, tampouco uma libertina — esclareceu a princesa.
Maneco desviou novamente o olhar, envergonhado do que tinha escrito.
— Olhe, eu sou só uma princesa, criada como se fosse uma prisioneira, em um castelo cercado de muros e guardas. Minha função era servir de moeda para uma aliança de meu pai, que me prometeu para um nobre rico, mas tosco. A verdade é que não sabia de nada, era uma alienada. Só queria era sair daquele lugar a qualquer custo.
As mãos de Estelle começaram a suar nas palmas frias ao falar daquele assunto.
— Foi por isso que você o procurou, o feiticeiro Vathek?
— Isso foi um erro; ele é o maior dos canalhas. No início, parecia lutar por uma causa justa, pela libertação dos plebeus e pelo seu povo. No fim das contas, tudo que precisava mesmo era de uma princesa virgem para obter mais poder com seus patronos infernais. Não sei o que eu faço, não quero ser prisioneira do bruxo negro mas também não quero voltar para meu reino, me casar com um príncipe gordo e vinte anos mais velho. Não quero ser uma rainha em outra gaiola de ouro.
— Vamos fugir, então, só eu e você! Viver longe de todas essas disputas, apenas do que a natureza nos dá — sugeriu Maneco.
— Você não é deste lugar. Precisa voltar para casa, e logo. Você ouviu o velho; se não for agora, nunca mais poderá retornar para casa — lembrou Estelle.
— Eu não me importo com mais nada daquela vida. Não me interessa o curso de Direito ou a carreira de escritor. Não aguentaria nem mais um dia daquela minha vida entediada. Estava até enfermo e acamado, antes de vir para cá. E olhe agora: estou vigoroso como nunca. Se voltar, sou capaz de morrer, de doença ou de coração partido.
— Você quer ficar comigo apenas pela curiosidade. Quer conhecer a musa de sua história. E se você se decepcionar com a verdade e preferir o mistério de seu romantismo, vai me abandonar na estrada? Me devolver para meu pai?
— Jamais! Rasgarei esse poema, que é por demais romântico, e escreverei outros cheios de profundo realismo!
— Mas não é o romance que as pessoas buscam nas histórias?
— O que outros buscam não me importa. Nunca me importou — disse Maneco, abraçando a jovem.
— Não sei se quero viver como uma vagante, sem teto nem posses — titubeou a princesa.
— Certamente não posso lhe dar um castelo, contudo lhe prometo que nunca te farei uma prisioneira. E teremos muita diversão, afinal de contas, além de um poeta sou também um bardo — admitiu Maneco.
— Disso eu não duvido. — Sorriu a princesa em outro momento de silêncio.
Mas o poeta não perdeu essa oportunidade, beijando sua boca até que seus corações fossem arrebatados pelo fogo da paixão. Os dois se amaram até o dia seguinte, ignorando os barulhos dos sátiros e menestréis no salão. Foi somente quando o sol já estava alto e o silêncio voltara para a taverna — quando todas as pessoas já tinham ido embora — que os dois também saíram do local rumo a uma estrada desconhecida.
Nunca souberam se Vathek fora derrotado ou se seus companheiros haviam sobrevivido. Porém, após os fatos consumados naquela noite, era certeza de que o feiticeiro perdera o interesse na princesa. Nos meses seguintes, ainda foram vistos juntos mais algumas vezes naquela taverna, como alegres vagabundos e poetas da noite. Talvez tenham passado o resto de suas vidas juntos, amando-se nas matas e sobrevivendo de esmolas que conseguiam do povo. Ou, talvez, tudo tenha sido apenas um sonho de uma mente louca e moribunda.
Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu em 12 de setembro de 1831 e morreu em 25 de abril 1852. Foi um escritor brasileiro da segunda geração romântica, contista, dramaturgo, poeta e ensaísta brasileiro. Foi o autor do livro “Noite na Taverna” e da antologia de poemas “Lira dos Vinte anos”. Todos os seus trabalhos foram publicados após a sua morte, nunca atingindo o reconhecimento público durante sua breve vida.