Prólogo
Epílogo
Conto
Desde que eu era um projetinho de gente, me lembro de estar rodeada pela minha família e muita música. Antes de esses monstros chegarem à Terra — coisa que não me lembro exatamente quando foi, pois era muito criança —, morávamos num sítio na zona rural de Porto Alegre. Vivia eu, meus pais e minha avó materna. A lembrança mais velha que tenho comigo é a de minha avó estar sorvendo com muito esforço a bomba do chimarrão. Enquanto isso, meu pai dedilhava um violão de 12 cordas e minha mãe cantava bonitos versos sobre a natureza e a cor do céu azul. Ah, e que memória boa! Não lembro mais como é a cor do céu de verdade, pois desde que os monstros chegaram a nave-mestra paira no céu trazendo pesadas nuvens cinzentas. É como se uma tempestade sempre estivesse pronta para começar, embora isso raramente aconteça.
Pelo que sei, o mundo era bom. Tinha seus momentos ruins e de injustiça, mas era um lugar onde se podia plantar esperança para colher os sonhos. Ao menos foi isso que meu pai me disse, numa das longas noites em que esteve tocando o velho violão para afastar os monstros com a música.
— Eu queria ter sido um rockstar, ter pegado a estrada e viajado o mundo. Naquele tempo, as pessoas iam aos milhares em estádios para ouvir seus artistas favoritos no espetáculo — contou meu pai para uma versão infante minha.
— É verdade mesmo?
— É, sim. Era o meu sonho estar no palco.
— E não pode mais estar no palco?
Ele olhou para a minha mãe e lacrimejou. Tinha as mãos sempre a trabalhar no velho violão, a música nunca parando. Se parasse, morreríamos. E quando precisava parar para comer ou dormir, era minha mãe que executava melodias numa flauta doce. Logo cedo da juventude, fui ensinada na arte da música, para aliviar seus fardos, para que pudessem relaxar os dedos calosos de tanto tocar. Era uma responsabilidade imensa para uma garotinha, sim, mas se eu podia dar-lhes um pouco mais de descanso, pensava, faria de bom grado. Eu via como os dedos do meu pai ficavam em carne-viva todos os dias, e, também, os lábios secos e quebradiços de minha mãe. Isso me enchia de dó. Tanto trabalho para manter aqueles monstros de aparência inumana adormecidos... Uma vez que aqueles monstros ouviam uma melodia, paravam para apreciá-las e, com isso, adormeciam. Fosse qual fosse a melodia, meros acordes aleatórios ou notas sem muito nexo, as criaturas baixavam as orelhas e seus olhos estranhos fechavam-se até que a música que ouviam fosse interrompida.
Quem descobriu que os monstros adormeciam com música, curiosamente falando, fui eu — isso de acordo com a minha falecida avó, embora eu não me lembre do ocorrido. Meus pais às vezes contavam a história de quando o mundo foi invadido, o que havia acontecido antes de a nave-mestra chegar e o que aconteceu quando chegou. Minha avó disse que apontei para uma caixa de som numa loja de música no centro de Porto Alegre e que vi um desses monstros encantados com as melodias que de lá saiam. Apesar do horror e corre-corre, deram atenção a mim e notaram que os monstros não só ficavam encantados como adormeciam e não atacavam nenhum dos que estavam naquele raio de alcance sonoro. Infelizmente, apesar da minha descoberta, minha avó faleceu. Era uma senhorinha de idade avançada, e, de acordo com meu pai, não tinha pique para correr nem tampouco suportar a tensão da sobrevivência.
Embora o mundo se desfizesse em caos e ruína, meus pais usaram a música como um escudo, um trio de sobreviventes em uma carnificina alienígena. Dentre bilhões de pessoas sucumbidos aos dentes das criaturas e sua sede eterna de sangue, conseguíamos transitar entre eles desde que tivéssemos um violão dedilhado conosco ou o suave soar de uma flauta doce. Minha mãe me botava num carrinho de supermercado e empurrava pelas ruas enquanto meu pai ininterruptamente tocava o velho violão. Estabelecemo-nos no alto de um prédio na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre, um apartamento de luxo de boa vista para a cidade devastada e a nave-mestra que pairava naquele céu de escuridão opressora.
Mas nem só de comida e água sobrevivíamos; era imprescindível que tivéssemos instrumentos musicais reservas conosco. Meu pai usava o velho violão para tocar porque tinha valor simbólico, mas o apartamento era quase como um estúdio de música, com diversos violões e guitarras-acústicas. A minha mãe também colecionava flautas, e embora soubesse eximiamente bem soprar a flauta doce, tinha preferência pela ocarina, pois, segundo ela, os lábios lhe cortavam menos.
Também tínhamos que ter estoques de cordas de violão e afinadores, e as manteigas de cacau para os lábios de minha mãe. O risco de não haver música soando não podia existir. Quem de nós não estivesse tocando, checava se não havia risco de rompimento de cordas, bem como se a afinação não estava comprometida. E caso ainda esteja se perguntando, já nesse ponto não tínhamos energia elétrica para reproduzir sons num computador ou rádio. Meu pai chegou a procurar pelas tais vitrolas e reprodutores analógicos de música, mas isso fora infrutífero; reviramos os destroços de Porto Alegre e não encontramos nenhuma dessas quinquilharias.
O tempo passou, e embora fôssemos nos revezando, a música eterna, os dedilhados sem sentido e os soares de flauta a esmo, isso jamais se tornou confortável. Era inconveniente e cansativo. A música já não mais era arte, mas um mártir. Qualquer um de nós três lamentava quando a sua vez chegava em reproduzir as músicas. E pudera! Meus pais estavam ficando idosos e já não tinham o pique de antigamente. Não, eu sabia que uma hora eles morreriam e fariam parte da pilha de carcaças humanas podres no centro histórico de Porto Alegre.
E eu estava certa; meu pai foi o primeiro de nós a morrer, mas morreu porque um dos monstros o pegou. Ficávamos perto da porta do corredor do prédio para que os monstros ouvissem a música pela nossa única entrada e saída. O monstro o pegou porque meu pai desenvolveu uma tendinite aguda de tanto tocar, coisa que ele conseguiu driblar com alguns remédios que encontrávamos nas farmácias cheias de medicação, mas vazias de humanos. Na nossa frente, ele morreu com minha mãe descarregando um revólver no monstro e eu soprando uma flauta doce com lágrimas amargas em meus lábios.
Levamos o meu pai para boiar no Rio Guaíba, eu com uma flauta doce sempre a tocar e minha mãe a empurrá-lo morto no carrinho de supermercado. Dissera ele que, se morresse primeiro, queria ser jogado no velho rio, pois seria como um enterro viking, mas sem a pira para lhe queimar o corpo. Assim fizemos sua vontade. Uma besteira que agora me faz chorar mais que tudo...
Estou com medo, pois dedilho o velho violão dele e não só encaro o monstro que matou minha mãe, como a encaro morta. O que vai acontecer comigo quando eu parar de tocar essa milonga horrível e de melodia estranha? Vou morrer? Acho que sim, porque quando eu precisar parar para comer ou dormir, ou quando os meus dedos abrirem feridas debaixo dessas cordas de aço, minha mãe não vai estar aqui para me substituir. Desde muito tempo, adormeço com a melodia de sua flauta, a melodia da canção que ela cantava sobre a base do violão de doze cordas do meu pai, lá quando eu era uma criancinha.
É irônico, não é? Minha primeira memória também será a última...
Vejo o meu pai, um homem moreno e queimado do sol, e minha mãe, uma loura bonita. E vejo também minha avó, uma senhora parda de pele bem enrugada, uma velha que ostentava um sorriso desdentado e bem feliz ao ver o filho, a nora e a neta reunidos naquela roda de chimarrão ao entardecer.
Escuto o som da bomba do chimarrão. O som de minha avó sorvendo o mate. Pergunto-me qual deve ser o gosto daquela bebida. Será que é bom? Bem, deve ser, ou minha avó não estaria fortemente interessada em sorver aquilo.
Ao que imagino, deve ser ótimo.
Deve ser.