Prólogo
Epílogo
Conto
Eu estava no parapeito do prédio, ouvindo o som da cidade. Meus pés balançavam sobre a infinidade de luzes dos carros que se moviam sob mim. Deveria pular? Imaginei a Morte ali também, a foice largada atrás dela, e o vestido negro esvoaçando alegremente sobre o vazio. Ela usava um capuz que cobria seu rosto, mas a ponta dos longos cabelos furta-cor caía sobre o tórax, que inspirava e expirava devagar. Olhei para a Morte, esquelética, e ela virou o capuz oco para mim.
— Olá.
Nesse momento, quase caí mesmo, de susto. Olhei melhor para a Morte enquanto tateava a ponta da manga de veludo. Era alguém ali, definitivamente. Inclinei-me para trás por um instante e peguei a foice dela, passei o mindinho na lâmina e me cortei. Chupei o sangue que começou a brotar do corte e olhei novamente para ela. Tinha tirado o capuz e eu só via uma caveira alva, trincada ao redor de onde as órbitas poderiam ter estado um dia. Eu ouvia buzinas lá embaixo e o cantar de pneus característico das cidades grandes. Passei a mão no cabelo e expirei. O que eu estava pensando? Por que eu subira até ali? Eu não estava doente, eu não estava devendo nada. Lembrei-me que eu não a havia cumprimentado.
— Perdão, meu nome é Dante. — E estendi a mão para ela, que apertou a minha.
— Eu sei — disse, e imaginei que estava sorrindo.
Virei para a frente de novo, devagar, e ela balançou a cabeça para cima e para baixo. Reparei que, por mais bizarro que fosse aquele encontro, não sentia medo dela. Minha cabeça estava cheia de outras coisas mais importantes.
— Você se importa se eu pensar só mais um minutinho?
Ela me olhou afetuosamente (ou da forma mais afetuosa que um esqueleto poderia encarar um ser humano) e balançou a cabeça, dizendo que sim. Olhei para o prédio defronte enquanto pensava em quem iria aparecer no meu velório. Virgínia iria? Acho que não, pois Virgínia era muito orgulhosa. E Ellen? Marina? Meus antigos casos... Nenhuma daria as caras, não... Afinal, tudo acabou mal entre nós. Mas talvez Olívia fosse, sim. Mas será que ela choraria convulsivamente? Ri com descaso; nenhuma delas iria. Eu não fui um cara decente em nenhum desses relacionamentos. No mínimo fui tóxico, traí, disse coisas horríveis que faziam sentido na hora da raiva, mas que, no fim, não eram completamente verdade.
Nessa mesma noite, Ellen me ligara, na mesma noite de uma dessas brigas com Olívia. Eu pensei muito se iria ou se tentaria me redimir, mas estava com vontade de me libertar por uma noite e fui. No outro dia, voltei para casa com o rabo entre as pernas, muito arrependido. Relutei em contar a ela sobre a noite de traição, mas resolvi me abrir, mesmo com medo que me deixasse de vez. Ela me olhou com seus olhos verdes e sobrancelhas curvilíneas, e disse que esperava isso de mim. E, suspirando pesadamente, contou-me que havia me traído também.
Sabe quando seu coração para, sua língua fica seca e sua visão fica turva? Pois bem, ao redor do meu campo de visão tinha-se formando bolas pretas, até que perdi as forças nas pernas. Acordei aturdido, sedento e arrasado. Olívia me abanava, de joelhos, preocupada, enquanto seu cabelo caía sobre os braços alvos que eu amava. Resolvi levantar, mas tropecei quando ela tentou me segurar. Libertei-me dela e fui embora.
Agora que estava mais velho, refleti sobre o quanto a minha reação fora idiota e descabida. Ela me traíra, e daí? Lembrei-me com amor dos bons momentos em que fomos felizes, entre as partes conturbadas.
Virei-me para a Morte, então, e ela tinha carne no rosto. A carne crua e fibrosa dos músculos do rosto cobria a outrora lisa caveira. Fiquei espantado, mas não disse nada, estava constrangido demais para comentar. Desviei o olhar, e ela perguntou:
— Que há, Dante?
Pensei em dizer que não era nada, mas era óbvio que minha expressão já tinha revelado algo, e eu precisava perguntar.
— Bom... Quando eu cair, eu vou me esquecer dos meus antigos amores? Ou melhor, vou me esquecer dos arrependimentos e tudo mais... Vou me libertar dessa dor que eu tenho do meu passado?
Ela me encarou com suas órbitas vazias, profundas como uma galáxia, e disse com carinho:
— Não, meu querido.
Resmunguei baixinho enquanto pensava em outro momento da minha vida, quando eu era bem mais jovem, naquela viagem que eu fiz com meus amigos para acampar. Lembro-me de termos composto uma canção sobre os tempos de faculdade, de me embebedar e nadar nu em uma lagoa fedorenta, cheia de sapos e girinos.
Lembro-me de ver o vídeo que João gravara e depois mostrou no meu casamento, provocando risadas, comentários e meu rubor repentino. Eu me casara há muitos anos, pensei com um sentimento misto de pesar e saudade, antes de conhecer Olívia ou Ellen. Mas ela partiu com o rosto retorcido de dor, e me senti aliviado quando sua testa perdeu os vincos e seu rosto ficou sereno, embora a lividez tenha chegado rápido demais e eu não tenha podido ficar muito tempo mais ao seu lado.
Mas eu estava me lembrando dos meus amigos, aqueles canalhas — pensei com um sorriso no rosto —, os melhores que alguém poderia ter. Estiveram comigo quando me formei, quando a perdi, todas as vezes que me embebedei, quando atropelamos um bode com a limusine alugada do casamento de Marcos e nos endividamos até a alma. Nisso, um sorriso brotou em meus lábios, lembrando daquelas ótimas histórias. Depois de um tempo, acabamos nos distanciando, por minha culpa principalmente. Eu fui me afundando num poço de solidão que não deixava nenhuma luz entrar. João ainda me ligava no meu aniversário, preocupado, e me perguntei sobre quando desistiria de mim, assim como os outros.
— Minha cara — perguntei —, quando eu cair vou poder me lembrar deles, e... — Olhei-a, e ela tinha pele. Uma pele pálida como o raiar do dia, quando as nuvens ainda estão baixas e a garoa cai serena pela superfície das plantas. Mas não tinha olhos, nem sobrancelhas e nem cílios. Achei estranho, mas novamente fiquei receoso em perguntar.
— Caro Dante, sim, você sempre se lembrará dos seus amigos.
Que bom, pensei, e olhei de modo sonhador o prédio defronte. Suas janelas largas e cortinas emitiam uma leve seleção de luzes etéreas ora arroxeadas, ora avermelhadas, e nos apartamentos sem cortinas eu podia ver as crianças correndo e pulando pelos sofás, enquanto os pais se preocupavam ou mexiam em seus respectivos computadores sem prestar muita atenção. Eu não tive filhos, refleti. E senti um vazio do tamanho do infinito dentro de mim. Não plantei uma árvore, não escrevi um livro. Mas meus irmãos tiveram, continuaram a família. Que saudade tenho deles, aqueles que me empurravam nos rios, que me faziam comida aos sábados, que sorriam pra mim quando eu era pequenino e faziam graça nos vídeos de família, com seus risos belos e eternos.
Será que estavam mortos? Há muito tempo não os contatava; mandei uma carta para Dora há algum tempo, mas ela não me respondeu. Era o último contato que eu tinha com meus pais, com o meu passado, os únicos que sabiam exatamente quem eu era ou quando eu estava mentindo.
O último Natal com eles... Ano retrasado. Não me recordo bem do que Fausto disse, mas separou a família toda. Ah, sim, ele tinha algum negócio com o marido de Sílvia, e alguma coisa com dinheiro fez com que eles se desentendessem. Dinheiro... Folhas de papel que agarram seus pés e te arrastam para o fundo da terra. Agora que estou aqui na fronteira, não vejo mais tanta importância assim em acumulá-lo. Claro, ele me alimentou, alimentou meus vícios, me fez feliz em alguns rápidos e intensos momentos, mas agora vejo que desperdicei tempo demais tentando ganhá-lo. De certa forma, o dinheiro é o equivalente físico do tempo, refleti, trocamos horas infelizes trabalhando por garrafas caras de uísque. Balancei meus sapatos no infinito, e um deles caiu. Debrucei-me para vê-lo rodopiar, e ele sumiu nas profundezas.
Olhei para a Morte novamente, e ela já tinha olhos. E me encarava com seus enormes olhos prateados, impaciente, mas conformada, como quem já passou por aquilo uma centena de vezes.
— Sim, Dante, você vai se lembrar da sua família, e não, com a sua morte eles não vão voltar a se reunir no Natal.
Fiz um muxoxo e apoiei meu queixo nas mãos, curvando as costas. Olhei para a Morte com expectativa, e ela era linda. É difícil descrever a beleza dela em palavras. É como tentar explicar o porquê de as asas de uma borboleta azul serem tão bonitas. Seu cabelo era infinito, cor de opala e reluzente, que emitia uma áurea perolada, enquanto sua tez branca contrastava com seus lábios em forma de tulipa, arroxeados. Seus olhos enormes me encaravam, e ela perguntou com a mais doce voz do universo:
— Está decidido, meu querido?
E olhou para trás devagar, seguindo uma trilha invisível. Eu me virei também, e vi um homem caído, velho, desgraçado pelo tempo. Sua pele estava lívida e seus olhos, abertos, encarando as estrelas. Seu peito não arfava e seu coração, não batia. Suas mãos em garra seguravam um caco de vidro quebrado, do copo que antes sustentava. Estava com minha melhor camisa manchada de sangue, minha melhor bermuda manchada de urina, e estava absorto demais em seus pensamentos para que pudesse reparar em nós, meros espectadores.
Olhei para minhas mãos juvenis e bonitas, apoiadas na beirada da cobertura do prédio, e me empurrei para a mais extrema borda. Em um momento de desespero, ouvi um ribombar nos ouvidos e me retraí todo. Apoiei-me nos meus braços jovens e fortes e me levantei.
Um dos meus pés estava descalço. E enquanto eu o encarava, meus olhos ficaram embaçados e uma gota roliça caiu ao lado do meu dedão. Eu estava ali, sobre meu corpo sem vida, lamentando ter feito o que fiz. A Morte me olhava solene. Não era como se fosse algo imprevisível. Eu que entrei no prédio mais alto da cidade ajudando uma senhora com as compras. Eu que entrei no elevador com ela e apertei o botão do último andar no painel. Eu que subi o último lance de escadas e empurrei com ódio a porta corta-fogo.
É engraçado pensar que tirei a garrafa de uísque da bolsa que trazia comigo e não senti o vento soprando sobre meu rosto. Eu não queria pensar sobre como tinham sido meus últimos momentos. Sentia vergonha, e encolhi os ombros. A Morte se aproximou de mim, e eu me virei de costas para o abismo. Ela pegou meu rosto entre as mãos, fechou os olhos, e pude ver as finas veias de sua pálpebra pulsando levemente. Encostou seus lábios nos meus e deu um pequeno passo para a frente. Eu me desequilibrei e caí no infinito.