A Batalha Na Estrada Da Corte

Fantasia
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Taverna Bode Mágico

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
A Batalha Na Estrada Da Corte
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O que me aflige? Penso na pergunta enquanto observo meu pequeno interlocutor, um rapaz que tem por ocupação encher os canecos de cerveja na Taverna Bode mágico. Penso em dizer que nada, mas antes que possa abrir a boca para responder qualquer coisa ele já está fazendo outro pergunta:

— Para onde estão viajando?

Enfim uma pergunta fácil de responder.

— Para o reino de Orama — respondo.

— E o que pretendem...

Antes que o rapaz consiga terminar de formular sua nova pergunta, minha companheira de viagem o despedaça com outra questão, fria e cortante como a lâmina de uma espada:

— Qual a sua função aqui, jovem? Fazer entrevistas ou encher canecos? Pois daqui de onde estou vejo vários canecos vazios.

— Desculpe — o rapaz murmura, baixando os olhos para o chão e se retirando rapidamente.

Olho para a cara de Lorna, que dá de ombros como quem diz que fez o que tinha que fazer — e fez mesmo. A figura sentada à minha direita permanece em silencio, mas eu sei que está prestando atenção em cada movimento, afinal, ela foi feita para isso.

Sei que somos um trio que chama a atenção, e nossa visita à taverna é de caráter mais ritualístico do que qualquer outra coisa, pois não precisamos de comida ou bebida. Não mais. Pelo menos Lorna e eu; Zinzi ainda é humana normal (ou pelo menos acredito que seja) e é a única que de fato aproveita do grande caneco de cerveja anã enquanto esperamos por alguém que pode vir a ser o ultimo integrante do grupo.

— Então, Dario, repassando, a ideia é chegar antes do Caronte, distribuir as armas para o povo e fugir na madrugada.

— Exatamente. Por mais que os soldados compactuem com o que está acontecendo, não tem por que deixarmos mulheres viúvas e crianças sem pai. Já que é o que querem, vamos apenas libertar os nossos e encontrar um lugar onde possamos existir em paz. As armas são para que possamos nos defender caso algo dê errado.

Uma mulher entra na taverna carregando uma criança no colo e segurando outra, que aparenta ter uns 12 anos de idade, pela mão. Ela tenta convencer um homem, que provavelmente é seu marido, a ir embora, e a criança mais velha começa a chorar, fazendo pirraça querendo deixar do local. A mãe, então, sacode o menino pelo braço fino e grita:

— Quieto, Ancel! Quer que a Wasiny venha à noite te pegar?

O menino se cala no mesmo instante em que houve o nome. Sinto Zinzi estremecer e pouso minha mão sobre a sua, até que ela se acalma e volto minha atenção para Lorna, que está falando de novo.

— Mas, Dario, nunca vão nos deixar sair sem luta. O que você tem é apenas um sonho. Esteja preparado para despertar o máximo dos nossos, pois vamos precisar.

— Quanto ao despertar, fique tranquila; nenhum de nós caminhará como lunático. O que eu pretendo é libertar todos os uni, e quero que me sigam conscientes da escolha que estão fazendo. Assim, antes de tudo começar, eu despertarei um a um para que façam suas escolhas e também para que possam se defender se for o caso. Mas todos já sabem do plano, até porque despertar em silêncio é essencial e ninguém escolheria uma vida de servidão.

Lorna aquiesce, finalmente satisfeita, e eu mais do que nunca vejo o quanto o sonho da liberdade é frágil. Mas sei que estamos dispostos a lutar até o fim, embora, devido às circunstâncias, seja difícil acreditar que o fim realmente exista. Zinzi bate no meu ombro, e quando olho para ela vejo que está indicando a porta. Ajeito-me na cadeira, pois sei que nosso encontro começou.

— Rapaz, um raio confinado para meu amigo aqui — peço quando o atendente se aproxima da mesa.

— Obrigado! — diz o homem enorme, envolto em um manto preto, enquanto se senta à nossa frente. — Eu não acreditei quando o mensageiro disse seu nome, mas era verdade... Agora, conte sua história, Dario, conte como pode estar vivo e o que quer de mim.

— Direto como sempre, não é mesmo, Rudon? — comento, com um sorriso amargo no rosto. — A história que tenho para contar não é das boas, sinto lhe dizer, mas é a verdade.

— A verdade basta para mim; comece a palestra.

— Como quiser, Rudon, o Berserker das planícies. — Percebo que os olhos dele brilham ao ouvir o titulo há muito não pronunciado, e isso é bom. — Começo dizendo sobre minha condição de vida. Há cinco anos, eu morri enquanto lutava ao seu lado na batalha contra os elfos do mangue negro. Sei que desde então deve ter acontecido muita coisa para você, mas para mim é como se o tempo não tivesse passado. Eu, assim como muitos outros, fui trazido de volta à vida por um necromante, uma criatura maligna que monta numa hiena gigante chamada Caronte, isso a pedido do próprio rei de Orama.

— Não pode estar falando sério — Rudon diz, com uma expressão de assombro. — Você então voltou à vida? É um tipo de zumbi?

— Na verdade, somos chamados de “uni” e fomos reanimados com um único propósito. Advinha qual é ele?

— Não faço a menor ideia, ainda não digeri que é você de fato aqui na minha frente, com a carne firme e no lugar, olhos brilhantes, falando e se movendo. Você deveria estar reduzido a menos que fragmentos de osso velho, amigo.

— E eu estava; realmente não deve ter sido algo bonito de se ver. Assim que deixamos a terra e a carne começa a brotar preenchendo os ossos, é um processo abominável. E tudo por sede de poder... Todos sabem que as terras governadas pelo Rei Mordre têm muitas árvores Pau-Orama espalhadas por suas densas florestas e pouco pessoal para explorar com grande agilidade esses recursos. Então, num dia, Caronte, o necromante, surgiu na corte com uma proposta irrecusável: em troca de títulos, ele providenciaria mão de obra gratuita e inesgotável para a exploração das florestas e para o que mais o rei quisesse. Sabemos como o Rei Mordre é ganancioso; ele aceitou quase que imediatamente a proposta. Primeiro, teve medo de que o rei dos reinos não aprovasse, mas, como teoricamente perdemos nossos direitos humanos ao morrer, ele não pode responder por nos escravizar. Então, Caronte viajou por terras e terras, entoando seus encantamentos à base de sacrifícios, espalhando sangue humano e animal e fazendo com que os mortos deixassem seus túmulos para segui-lo.

— E vocês simplesmente obedeceram?

— Não é tão simples. Assim que nos levantamos da terra, estamos em um estado que chamam de “lunáticos”; só fazemos o que nos mandam fazer, não temos nenhuma iniciativa ou vontade própria, apenas corpos se movendo sob ordens. Em pouco tempo, não estávamos mais apenas cortando madeira, mas também lavando louça, alimentando bebês e fazendo a limpeza das vias públicas. Somos escravos que atendem a qualquer finalidade na sociedade governada por Mordre. Até que eu apareci.

— E você tem algo de especial?

— Sim, eu fui o primeiro a despertar do estado lunático e percebi que tinha o poder de despertar os outros também. O Caronte não gostou nem um pouco, e com um feitiço nos fez regredir novamente ao estado de lunáticos. Mas eu sempre recobro a consciência sozinho; da ultima vez que voltei, decidi fingir que ainda estava lunático, aí vi as humilhações e todas as situações difíceis pelas quais eles nos obrigam a passar e decidi dar um basta. Despertei Lorna e um pequeno grupo, e juntos estamos planejando tomar nossa liberdade. O plano é fugir; eles confiam na nossa condição de lunáticos tão plenamente que nem mesmo somos vigiados. Não existe contagem ou qualquer outra medida de controle, então quando derem por nossa falta será tarde demais. Só uns poucos guardas ficam nos portões cuidando para que os unis não sejam roubados.

— Tem outra coisa que te torna especial, meu caro — disse ele.

— E o que seria isso? — Lorna fez a pergunta que estava prestes a sair de minha boca.

— É algo em que você, Lorna, filha de Rowa, também acredita. É impossível conquistar a liberdade sem lutar — explicou ele. — A liberdade seduz e encanta, mas não é de graça. E o preço geralmente é em sangue.

— Nisso concordamos, mas é para isso que estamos aqui, você e eu. Sei que não haverá segunda chance — disse Lorna. — Por isso, incluímos as armas no plano; se for necessária uma cota de sangue, vamos derramá-la.

Havia uma ferocidade na voz de Lorna que me fez lembrar de sua mãe, Rowa, a sanguinária, uma das maiores guerreiras de Orama.

— Então, você se juntará a nós, Rudon? — perguntei. — O tempo corre, e precisamos pôr em prática imediatamente o plano.

— Eu vou ajudá-los, mas tenho uma pergunta meio óbvia.

— E qual seria? — disse eu.

— Você fala em pôr em prática nesta noite; mas mesmo se pegarmos a estrada da corte agora, só chegaríamos à Orama em pelo menos sete luas.

Zinzi abafou um sorriso ao meu lado, e Rudon colocou os olhos nela como se percebesse sua presença pela primeira vez naquele instante. Mas, tratando-se dela, nada era surpreendente demais.

— Disse algo engraçado, dama marrom? — ele perguntou com cautela.

— Não, meu senhor. Só deixe a dinâmica da viagem sob meus cuidados. O que você precisa saber é: decidindo nos acompanhar, ainda nesta noite estaremos pisando em Orama, isso eu digo.

Rudon certamente ainda tinha muitas perguntas para fazer, mas optou por dar o assunto como encerrado. Chamei o rapaz que estava nos atendendo, e ele se aproximou ainda desconcertado pela forma que Lorna o enxotara antes. Coloquei duas moedas de prata em sua pequena mão e acrescentei uma em valor de agrado para ele. Do lado de fora, Rudon ficou surpreso com as duas carroças que trazíamos. A princípio, as duas estavam carregadas de cabaças maduras, mas logo abaixo havia espadas, maças de guerra, adagas, arco e flechas, malha de aço e vários outros itens usados em batalha.

— Vejo que Lorna não dorme em serviço — disse ele. — Mas se importam de contar como vocês unis conseguiram tanto dinheiro? Isso aqui deve ter custado uma pequena fortuna.

— Isso foi muito simples — respondi, caminhando para a rua à esquerda da taverna —, estamos inseridos em todas as camadas da sociedade e somos tratados como débeis mentais por causa da lunatização. Quando explicamos o plano, foi fácil acumular pertences com os que trabalhavam com os ricos, mas o que mais rendeu foram as pedras trazidas pelo pessoal designado para trabalhar no garimpo.

Ele sorria quando terminei a explicação; já havíamos dado a volta no terreno, parei em frente ao muro dos fundos da Taverna do Bode e gesticulei para que Zinzi, que estava junto com Lorna, conduzindo os cavalos que puxavam as carroças, tomasse a frente. Ela parou e puxou o capuz de couro do manto, revelando cachos negros que cobriam sua cabeça, depois ergueu os braços com as palmas abertas em direção à parede e começou a murmurar em uma língua completamente estranha para mim.

A única palavra que captei foi “Orama”.

Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: minha pele e, aparentemente, a deles também, começou a formigar, como se o ar estivesse carregado com eletricidade. Quando olhamos para o muro, ele havia desaparecido; em seu lugar havia um buraco extenso o bastante para passarmos com as carroças. A vista do buraco dava para o terreno onde a estrada da corte terminava, e era possível ver as sombras das torres do castelo de Orama se estendendo, tentando alcançar o céu. A passagem era muito próxima do campo onde os unis eram mantidos organizados todos de pé em fila. Como não precisavam dormir, ficavam assim até o amanhecer, quando o trabalho recomeçava. 

Avançamos rápida e silenciosamente pela noite, sendo que o único som era dos cascos dos cavalos e algum pássaro noturno. Quando chegamos a um barranco que dava acesso a uma descida que terminava nos fundos do campo de concentração uni, Lorna remexeu entre as cabaças e retirou um arco e três flechas. Olhei para o campo e vi o que ela planejava; o campo era retangular, com cerca de 100 metros de comprimento e 45 de largura. Havia três guardas em cada extremidade: dois vigiavam as pontas e um no centro. Quando Lorna começou a mirar, eu coloquei uma mão em seu ombro e fiz que não com a cabeça.

— Sem mortes desnecessárias — sussurrei. Lorna bufou de raiva e Rudon segurou o riso. — Vamos nos dividir. Rudon pega o da esquerda, Lorna o da direita, e eu fico com o do meio.

Seguimos nos valendo da vegetação baixa como esconderijo. Rudon e Lorna foram rápidos e letais; em um instante seus alvos estavam no chão. Eu demorei um pouco mais, e o homem pareceu notar a movimentação estranha nas curvas do campo. Ele já estava levando uma corneta de chifre à boca quando saltei da mata e envolvi seu pescoço em um aperto forte com o braço esquerdo. O homem tentou lutar, socou o ar e meu braço, mas logo as pernas perderam a força e ele caiu desacordado.

— Problemas com a própria estratégia? — Lorna perguntou detrás de mim. — Você quase pôs o plano a perder.

— Vamos entrar no campo e caminhar entre os unis — disse eu, ignorando a provocação. — No caminho, vou despertando todos eles, e, na outra extremidade, derrubaremos os três guardas restantes. Aí fazemos o caminho de volta saindo do reino.

Respirei fundo pelo nariz e boca, engolindo o máximo de ar, esperei por um momento e, quando expeli o ar, este já não era o mesmo: eu estava soltando uma fumaça avermelhada. Quando os unis eram tocados pela tênue nuvem, seus olhos ganhavam brilho de inteligência; percebendo imediatamente que chegara o momento em que o plano estava sendo posto em prática, eles se mantinham imóveis.

O ar parecia estar se enchendo de expectativa; logo, quase todos os unis já estavam despertos. A poucos metros de onde os outros três guardas estavam posicionados, nós ouvimos vozes discutindo.

— Eu tô lhe dizendo, Trantis, vi movimento ali dentro — disse uma voz masculina amedrontada.

— Conversa! — respondeu outra voz, esta parecendo ainda mais jovem. — Você sempre vem com alguma brincadeira desse tipo. Esses caras são como bois dementes, tem noção? Você não vai me pegar nessa.

— Não estou brincando, passe a corneta para cá. Vou tocar, e os grandões que se virem. Tem alguma coisa errada aqui!

Arregalei os olhos; se a corneta soasse, o chão seria regado com sangue. Como que respondendo a esse pensamento, Lorna levantou sua maça de guerra e a segurou firme com as duas mãos. Rudon tirou dois machados que estavam presos às suas costas e me encarou como que pedindo instruções. Saquei minha espada, resignado, mas, antes que pudesse avançar, a voz de Zinzi se fez ouvir atrás de nós.

— Guardas! — chamou ela, ao que resmungos e suspiros de espanto serviram como resposta dos inexperientes rapazes. — Durmam; esse será o sono mais pesado de suas vidas, durmam agora!

Sons de corpos caindo ao chão vieram do lado de fora da extremidade do campo, e Lorna e Rudon me olhavam boquiabertos.

— Zinzi... — disse eu. — Se você era capaz de dominá-los desde o início... por que não fez isso logo?

— Vocês estavam entretidos com seus planos — respondeu. — Não quis atrapalhar.

Todos rimos, mas havia nervosismo nisso. Terminei de despertar os unis e nos conduzimos para fora do campo, desviando dos corpos dos guardas desacordados. Subimos a encosta e, ao passar pelas carroças, cada um pegou a arma com a qual se identificava mais. Eu sentia que havia algo de errado, pois tudo estava fácil demais. Os outros também deviam sentir isso, pois ninguém guardou suas armas; os machados continuavam nas mãos de Rudon, assim como a maça com Lorna. Eu estava prestes a perguntar para Zinzi se ela seria capaz de criar uma passagem para um local seguro para todos os unis quando um som maligno encheu o ar da noite.

Eram risadas estridentes acompanhadas de passos pesados, que vinham da estrada da corte em um ponto que era dividido por uma bifurcação. Não era possível ver o que estava à nossa frente por causa das árvores que ladeavam toda a estrada, mas estava muito próximo de nós, com certeza era uma armadilha.

Todos se prepararam com suas armas e aguardaram. Logo depois, o som foi ficando mais alto e mais próximo, até que na curva apareceu o gigantesco animal que produzia as abomináveis gargalhadas: a enorme hiena, montada por seu dono, o Necromante Caronte.

— Ora, vejam só o que temos aqui — disse ele como se estivesse se dirigindo a crianças travessas. — Apanhados no meio da noite, que coisa mais feia!

Atrás do homem montado em seu animal, havia uma comitiva; era o rei em uma carruagem, cercado por seus guardas mais valentes. Um deles acendeu diversas tochas que ladeavam o caminho, enchendo a escuridão com a luz do fogo.

O Rei Mordre, sentado em sua carruagem, lançava olhares furiosos para os fugitivos. Houve movimentação entre os unis que estavam na retaguarda, e Dario entendeu que eles estavam sendo cercados. Mais guardas vieram por trás, guiados pela luz das tochas acesas.

— Você — disse o rei, apontando para mim —, aquele que já foi Dario Rubranoite e reviveu para se tornar um dos mais estúpidos uni, achou mesmo que não percebemos o que estava planejando? Eu tenho olhos em todos os lugares; não seria enganado por uma criança. Achou mesmo que conseguiria simplesmente ir embora? Tolo! Só tem crédito por ter conseguido entrar em Orama despercebido. Eu mandei fechar todas as vias para que você fosse capturado, mas você vai me contar como fez para entrar, e fará isso aos berros. Guardas, prendam-no! Todos os outros unis, voltem para o campo, seus vermes inúteis!

Dois guardas se moveram na minha direção, mas Lorna e Rudon se colocaram na minha frente com armas em punho. Isso fez com que os dois parassem e olhassem na direção do rei como que pedindo instruções. Rei Mordre fez um movimento com a mão direita que simulava a ordem para que os dois seguissem em frente, e então tudo aconteceu rápido demais: as mãos de Rudon viraram um borrão de tão ágil que foi seu movimento, e os dois braços de Lorna subiram e desceram com o terrível som de metal afundando e ossos se partindo ao mesmo tempo. O preço de sangue havia começado a ser pago. Os dois guardas jaziam ao chão, um com a forma da maça de Lorna impressa no peitoral da armadura e o outro com um x vermelho feito pelas lâminas dos machados de Rudon.

O rei gritou de fúria e olhou para Caronte como que cobrando uma atitude. Este, por sua vez, se dirigiu a um grupo de três unis que estavam à frente.

— A lua é a mãe de vocês; por ela lutarão, matarão e enterrarão. Seu alvo é aquele que atende por Dario, vão!

Os três começam a tremer convulsivamente, como que lutando por controle contra uma força invisível que tentava dominá-los. Com um grito em uníssono, caíram de joelhos ao chão... E, quando ergueram os olhos na minha direção, pude ver que estavam lunatizados novamente.

— NÃO! — gritei, tomado por uma raiva vermelha que era totalmente estranha para mim. — CHEGA!

O trio, mesmo sob o feitiço, parecia prestar atenção nas minhas palavras. Ignorando os riscos, aproximei-me do primeiro e segurei seu rosto. Com minha testa colada à sua, gritei:

— Você é Andaus, filho de Malleck, e você lutará ao meu lado!

Dirigi-me ao seguinte:

— Você é Bartoleon, filho de Egmeu, e você lutará ao meu lado!

Segurei o rosto da mulher, a última dos encantados pelo Necromante, e encarei os olhos opacos da mente dominada.

— Você é Castrounia, filha de Upania, e você, guerreira, lutará e será gloriosa ao meu lado hoje!

Os três recobraram a consciência depois das minhas palavras, e estavam loucos pela batalha. Ergui meu braço direito com o punho fechado o mais alto que pude e gritei:

— Unis! Avancem!

Gritos de guerra foram entoados em resposta, e o som do metal se chocando encheu a noite. Rei Mordre gritava ordens a seus guardas com o rosto rubro de cólera.

— Vou fazer com que todos durmam e acabar com esse pequeno motim em um único movimento — disse Caronte do alto de sua montaria, com um riso maligno.

— Creio que não, caro senhor. — Era a voz de Zinzi. Como eu pude esquecer que ela estava ali? Fora trazida justamente para fazer frente ao Caronte, e, se as lendas estivessem certas, ela o faria. — Sua oponente sou eu nesta noite.

— Você? Pobre criança, venha à frente e diga seu nome antes de morrer — falou Necromante.

— Meu nome é Zinzi, Zinzi Wasiny, meu senhor — disse ela, com os olhos frios cor de avelã postos no inimigo.

— Impossível! — berrou ele. — Os Wasiny desapareceram há mais de 200 anos!

— Então, você não tem o que temer, certo, senhor? — respondeu Zinzi.

Ela levitou e, mexendo os braços, começou a murmurar encantamentos. Seus olhos ganharam um brilho vermelho assustador, e o Caronte gemeu de cima de sua hiena. O animal ganiu como um cão, e então o ataque de Zinzi começou. Mais uma vez o ar ganhou eletricidade, e o Necromante parecia tentar se desviar de braços invisíveis que tentavam agarrá-lo.

Com a visão periférica, vi que um soldado se aproximava, brandindo sua arma branca. Desviei-me e parei o golpe com a minha espada; faíscas saltaram do ponto em que as lâminas se encontraram. Firmei o pé esquerdo no chão e joguei meu peso para a frente, empurrando assim o soldado para trás. Enquanto ele recuava, fiz um movimento horizontal rápido com a espada e o atingi no pescoço. Rudon estava envolvido em uma violenta batalha contra o chefe da guarda do Rei, e Castrounia na beira da estrada havia acabado de finalizar outro inimigo. O exército de Orama não estava pronto para a batalha; foram anos treinando os rapazes nos salões, sem nenhum perigo real.

Uma flecha atravessou minha coxa esquerda, e dois soldados correram na minha direção, ambos com cara de assustados. Mas eu precisava me defender; a liberdade de todos estava em jogo. O tempo pareceu ficar mais lento... Golpeei a espada do primeiro com tanta força que ela foi arrancada de suas mãos. Em seguida, usei o punho da espada e o atingi entre os dois olhos. O outro rapaz foi mais rápido e conseguiu fazer um corte transversal no meu peito, atingindo de cima para baixo. Quando a espada tocou o solo, eu a chutei, arranquei a flecha da coxa e a enfiei na mão do rapaz, que gritou de dor. Apliquei um soco do lado direito do rosto dele, e ele também caiu desacordado.

— Fogo! — Caronte gritava. — O fogo pode acabar com eles; queime-os!

Um vento forte soprou, apagando todas as tochas, e o Necromante viu isso com um olhar desolado e surpreso. Quando viu que Zinzi estava sorrindo, ele a amaldiçoou.

— Você não é humana, parece ser o próprio demônio — falou ele.

— Agradeço pelo elogio, senhor. — Ela estava sorrindo, mas o sorriso era tão selvagem que se assemelhava a um rosnado ameaçador. — Mas vidas demais já foram desperdiçadas a troco de nada. É o fim!

— NÃO! — Caronte berrou, esmagado pelo esforço, tentando resistir à força invisível que Zinzi lançava contra ele. Parecia que estavam disputando uma queda de braço, mas Zinzi não fazia o menor esforço; parecia estar se divertindo como nunca.

Foi então que o pescoço do Caronte fez um movimento impossível seguido de um som de estalo. A energia que se espalhava pelo ar foi perdendo a força, e Zinzi desceu ao nível do chão. A hiena correu para o mato, sumindo na escuridão, deixando o corpo sem vida de seu mestre na terra fria.

Virei-me para a carruagem do Rei Mordre, mas este havia desaparecido. O covarde fugira, mas não para o reino de Orama, pois o caminho estava bloqueado pela batalha. O som de metal contra metal ainda continuava, e gritos ecoavam, tanto de fúria quanto de dor.

— Zinzi, por favor, acabe com essa batalha inútil! — pedi.

Ela me encarou em silencio, e, quando estava prestes a repetir o pedido, vi seus olhos ganharem novamente o brilho vermelho. Todos os soldados que seguravam uma arma jogaram o objeto ao chão com grunhidos de dor. Examinei uma espada que havia sido derrubada do meu lado e vi que estava incandescente.

— A batalha acabou! — gritei. — Seu Necromante está morto, seu rei desertou e os abandonou. Vocês não têm mais por que nos enfrentar; não somos inimigos do povo de Orama. Pelo contrário, muitos aqui fizeram parte de suas histórias quando vivos!

Os uni também largaram as armas e deram vivas. A noite estava prestes a acabar, e o dia prometia nada menos que a liberdade para cada um fazer o que quisesse com a nova vida.

— Nós realmente conseguimos! — gritou Lorna, agarrando-me.

— Parabéns, senhor herói, mas agora você me deve machados novos — disse Rudon, com o olho esquerdo inchado e o rosto salpicado de sangue. — É bom terminar uma batalha com você ainda vivo, para variar.

— Muito engraçado, Rudon — respondi.

Alguns dos uni que perderam suas vidas humanas recentemente e tinham família em Orama estavam se preparando para voltar para casa; eram pelo menos 50 ao todo. Fui até o chefe da guarda que, apesar de uma ferida no ombro, parecia estar bem, e perguntei o que ele achava da ideia.

— Os que quiserem ficar serão bem-vindos — falou ele. — Não estávamos de acordo com muitas das decisões do rei. Apenas obedecemos às ordens; é nosso dever obedecer, mas devo dizer que, apesar dessa curta batalha que perdemos, fico feliz que tenham vencido e se libertado.

Zinzi se aproximou de mim com seus passos leves, o capuz puxado para trás com seus cachos e seu belo rosto à mostra. O sol já tinha começado a nascer e lançava raios dourados nas nuvens ao horizonte.

— Foi muito belo o que fizemos hoje; graças à sua iniciativa, a vida desse povo pertence a ele mesmo novamente — comentou ela.

— Sim, agora eles têm a eternidade pela frente, não é? — perguntei. — Nenhum ser humano devia viver para sempre...

— E nenhum viverá — ela me disse, com os olhos cor de avelã surpresos, como se estivesse falando algo obvio. — Dario, os uni não são imortais. Do mesmo jeito que seus ossos recuperaram a carne, você recuperará a sensibilidade, e o fio da vida vai se restabelecer. Todo humano tem seu fio de vida; se um humano deve viver até os 60 mas tem seu fio de vida partido aos 20, caso ele volte à vida o fio se restabelece e ele deverá viver novamente até os 60, compreende?

— Sim... Faz sentido — respondi um pouco desanimado, pois, apesar de não querer viver para sempre, eu meio que já havia me acostumado à ideia.

Ela sorriu como se lesse meus pensamentos, e eu não duvidava de que ela pudesse fazê-lo se quisesse. Ela era a remanescente da raça mais poderosa de que se tem conhecimento, criaturas capazes de manipular energia das linhas de Ley.

— E você, Dario? — quis saber Zinzi. — O que vai fazer daqui para a frente?

Pensei por alguns minutos; ela esperou pacientemente sentada na terra ao meu lado, distraída com algumas borboletas negras que apareceram voando entre o mato rasteiro.

— Não sei para onde vou agora, talvez viajar com Rudon ou ir para leste conhecer terras novas e distantes, mas antes preciso beber alguma coisa — respondi. — Você disse que os unis recuperariam todas as características humanas com o tempo... Acho que meu paladar voltou; tô sentindo gosto de sangue e quero um caneco de cerveja.

— Daquela taverna onde encontramos Rudon? — perguntou ela.

— O que tem eu? — quis saber ele, aproximando-se da gente por trás.

— Eu estava dizendo a Zinzi que quero uma cerveja da taverna onde nos encontramos — retorqui.

— Cerveja? Aceito! — disse Lorna, juntando-se ao grupo.

Todos rimos juntos, doloridos e satisfeitos.

— E você, Lorna, nasceu e cresceu aqui em Orama... Não pretende ficar? — perguntei.

— Não... — falou ela, pensativa. — Não há mais nada para mim aqui, Dario. Seguirei com você; se não se importar, é claro.

— Não me importo nem um pouco. Então, primeira parada Taverna Bode Magico, e depois o mundo?

— Sim! — os três responderam em uníssono.

Depois de rápidas despedidas com alguns unis agradecidos pela liberdade, Zinzi manipulou novamente a energia de Ley e, no meio da estrada da corte do rei, surgiu uma porta com vista para a entrada da taverna. Lorna e Rudon atravessaram um atrás do outro. Eu fiquei parado por um momento, e Zinzi perguntou:

— Em que está pensando?

— Estou pensando no titulo que os bardos devem escolher para falar sobre nossa luta. Será que é A Batalha na Estrada da Corte?

— Não seja bobo — falou ela, sorrindo. — Vamos lá!

Lancei mais um olhar para o reino de Orama: suas planícies, o campo em que fui mantido com meus iguais, a sombra do castelo e o povo caminhando para seu novo destino. Depois, me virei e atravessei o portal, rumo ao desconhecido.


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