Um disco de garmel

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Mirage: Miscelanea de Narrativas Irreais vol. 01

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
Um disco de garmel
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Interessante nesse jeito de não ter nada a ver comigo e interessado no meu

monólogo íntimo, óbvio que eu preferia os meninos bonitos, mas você era maior.

Após acordar em completo desespero e querer ser eu, deitei nos seus braços e me

apaixonei pela vida pela primeira vez. A estrada estendia-se lá fora e a gente acelerava

para lugar nenhum ainda mais rápido. Você me prometeu que tudo que eu

conhecia podia ser apenas uma memória distante e eu gostava de pintar as unhas

de vermelho no painel do seu carro, parar em lojas de conveniência e ser completa

inconveniência.

Sabe esses devaneios absurdos que a gente até se autocensura de tão remotas

as possibilidades concebidas em sonho? Eu cheguei muito perto. Naquele cansaço

absoluto, despenquei, como nunca tinha escorregado antes. Eu, que sempre neguei,

neguei por consequência, resolvi, por pura urgência e cansaço, a própria inconsequência.

Era bem certo que você não faria bem, eu queria o seu mal, precisava dessa

maldade puro libido, volúpia inteira.

Eu me sentia uma princesa rasgando o vestido e soltando o longo cabelo negro

em uma boate suburbana, era maravilhoso, era vasto e você ainda me chamava

de princesa. Tudo começou com um inofensivo convite para dar uma volta no

mundo de baixo e a lembrança de que esse mundo é apenas o mundo do meio, em

pouco tempo nos agarrávamos como duas serpentes, eu não conseguia manter as

minhas mãos longe das suas, era a primeira vez que me desesperava de tal forma,

nosso amor barato vivia em qualquer lugar — tinha alguma combinação quase que

completamente barroca na nossa vida glamorosa e marginal, assim como a cobra no

banco de trás e seu sonido acompanhava bonito a trilha sonora da nossa trilha que ia

do nada ao nada. Você era alto e flertava com as meninas das pequenas cidades onde

parávamos, elas também enlouqueciam, sabíamos bem da traição mútua em segredo

e a aceitávamos numa tentativa plena de amar amor inteiro.

Lembro de pararmos meio a ermo no meio da estrada e de você derramando

o meu biquíni preto, o seu corpo quente junto à minha pele gelada arrepiada, a luz

pálida da lua dizendo que guardaria tudo em segredo. Você falava da minha beleza

antiga e sobre como nos conhecemos em outras vidas e gritávamos para os deuses do

tempo a nossa virtude. Mesmo que não fôssemos em verdade os maiores de todos,

ainda creio que éramos enormes, gigantes.

Passava meus dedos pelas suas tatuagens feias, sabia como eram importantes

para você. Não era mais o amor que me mantinha ali, eram os vícios, quase que uma

doença, pura obsessão. Eu não precisava acreditar em nada, via tudo diante dos meus

olhos enquanto o espetáculo brilhava e nenhuma história era tão fascinante quanto

as minhas memórias. Dancei a cantiga do infinito nos seus lábios, senti o seu cheiro

refrescante nas minhas roupas, vi nos seus olhos o reflexo das estrelas e decidi que eu

era uma. Eu podia esquecer o mundo lá fora, ou talvez fosse justamente o mundo lá

fora transbordando pra dentro e de dentro para fora em um mesmo impasse.

Até que, numa quarta-feira de cinzas, você desapareceu, como um sonho

bom, uma presença quase que irradicada, levou as fotos, as roupas, as músicas e a

melhor parte de mim. Nunca soube como nem por quê e tudo o mais e enfim e então,

seu nome me fugiu só e apenas. Gosto de pensar que você me deixou por amor, por

acreditar que acordar com uma faca no peito talvez fosse melhor do que nunca acordar.

A maioria das mulheres morre uma vez só, mas eu não sou como a maioria das

mulheres. Pensar no outrora é um fracasso, e se eu não quiser ser forte? Esse outrora

que eu tenho posso guardar agudo afiado em todas as coisas.

Quando decidi ser eu naquele momento, acho que também optei sempre pela

dor. Há algo de bonito na dor, no sofrimento irresistível, é quase que consequência

de se estar vivo, aquela dor que existe no nascimento pode ser revivida, eu quero me

alimentar da placenta, de tal forma que eu nunca teria feito diferente, eu sou gente,

eu sou selvagem. Eu não quero esquecer, eu quero sofrer denso você inteiro para

todo o sempre. Quando estou sozinha em casa, digamos numa terça-feira à tarde e

toca um tango no apartamento junto ao meu, eu já não resisto mais. Sabe, parece haver

algo de nobre, nessa humilhação, de não evitar, não fugir, apenas deixar que doa.

Chorar com vontade grande, lágrimas ácidas e esfregar os olhos com tanta força para

pintar o rosto de preto com os restos do rímel, até ficar tão inchada a ponto de não

enxergar mais quase nada. Não há nada tão libertador quanto atentar contra si mesmo,

atentar sem nenhum pudor, até temer e sentir pena de mim mesma. Fall in love.

Sobre quedas— em/para/por amor. Nessas tardes, eu me deixo cair em completo,

imaginando rostos, lembrando vozes. Quando sinto que cheguei no ponto máximo

da queda-livre, aí surge um alívio único, como se eu tivesse finalmente próxima de te

encontrar, sinto seu braço apoiado no meu ombro e você colocando a minha música

favorita, solto-me arrancada em completa saudade. Ainda bem que eu te escolhi para

me destruir. Lá no fundo do poço mais sujo eu posso ver que apesar de hoje, houve

ontem e anteontem e vários anos atrás, o que importa é que ainda sinto a vida apertada,

ao encontrar restos importantes delicados (que ajudam a viver) em um lixo a céu

aberto, ao descobrir memórias e não cobri-las se novo, por gosto e tortura. É que eu

coloquei a cabeça para fora do carro e o vento bateu jogando meu cabelo no ar e, ao

olhar para trás, eu gostei do que vi e hoje escrevo essa carta por me faltarem palavras.

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