Prólogo
Epílogo
Conto
Interessante nesse jeito de não ter nada a ver comigo e interessado no meu
monólogo íntimo, óbvio que eu preferia os meninos bonitos, mas você era maior.
Após acordar em completo desespero e querer ser eu, deitei nos seus braços e me
apaixonei pela vida pela primeira vez. A estrada estendia-se lá fora e a gente acelerava
para lugar nenhum ainda mais rápido. Você me prometeu que tudo que eu
conhecia podia ser apenas uma memória distante e eu gostava de pintar as unhas
de vermelho no painel do seu carro, parar em lojas de conveniência e ser completa
inconveniência.
Sabe esses devaneios absurdos que a gente até se autocensura de tão remotas
as possibilidades concebidas em sonho? Eu cheguei muito perto. Naquele cansaço
absoluto, despenquei, como nunca tinha escorregado antes. Eu, que sempre neguei,
neguei por consequência, resolvi, por pura urgência e cansaço, a própria inconsequência.
Era bem certo que você não faria bem, eu queria o seu mal, precisava dessa
maldade puro libido, volúpia inteira.
Eu me sentia uma princesa rasgando o vestido e soltando o longo cabelo negro
em uma boate suburbana, era maravilhoso, era vasto e você ainda me chamava
de princesa. Tudo começou com um inofensivo convite para dar uma volta no
mundo de baixo e a lembrança de que esse mundo é apenas o mundo do meio, em
pouco tempo nos agarrávamos como duas serpentes, eu não conseguia manter as
minhas mãos longe das suas, era a primeira vez que me desesperava de tal forma,
nosso amor barato vivia em qualquer lugar — tinha alguma combinação quase que
completamente barroca na nossa vida glamorosa e marginal, assim como a cobra no
banco de trás e seu sonido acompanhava bonito a trilha sonora da nossa trilha que ia
do nada ao nada. Você era alto e flertava com as meninas das pequenas cidades onde
parávamos, elas também enlouqueciam, sabíamos bem da traição mútua em segredo
e a aceitávamos numa tentativa plena de amar amor inteiro.
Lembro de pararmos meio a ermo no meio da estrada e de você derramando
o meu biquíni preto, o seu corpo quente junto à minha pele gelada arrepiada, a luz
pálida da lua dizendo que guardaria tudo em segredo. Você falava da minha beleza
antiga e sobre como nos conhecemos em outras vidas e gritávamos para os deuses do
tempo a nossa virtude. Mesmo que não fôssemos em verdade os maiores de todos,
ainda creio que éramos enormes, gigantes.
Passava meus dedos pelas suas tatuagens feias, sabia como eram importantes
para você. Não era mais o amor que me mantinha ali, eram os vícios, quase que uma
doença, pura obsessão. Eu não precisava acreditar em nada, via tudo diante dos meus
olhos enquanto o espetáculo brilhava e nenhuma história era tão fascinante quanto
as minhas memórias. Dancei a cantiga do infinito nos seus lábios, senti o seu cheiro
refrescante nas minhas roupas, vi nos seus olhos o reflexo das estrelas e decidi que eu
era uma. Eu podia esquecer o mundo lá fora, ou talvez fosse justamente o mundo lá
fora transbordando pra dentro e de dentro para fora em um mesmo impasse.
Até que, numa quarta-feira de cinzas, você desapareceu, como um sonho
bom, uma presença quase que irradicada, levou as fotos, as roupas, as músicas e a
melhor parte de mim. Nunca soube como nem por quê e tudo o mais e enfim e então,
seu nome me fugiu só e apenas. Gosto de pensar que você me deixou por amor, por
acreditar que acordar com uma faca no peito talvez fosse melhor do que nunca acordar.
A maioria das mulheres morre uma vez só, mas eu não sou como a maioria das
mulheres. Pensar no outrora é um fracasso, e se eu não quiser ser forte? Esse outrora
que eu tenho posso guardar agudo afiado em todas as coisas.
Quando decidi ser eu naquele momento, acho que também optei sempre pela
dor. Há algo de bonito na dor, no sofrimento irresistível, é quase que consequência
de se estar vivo, aquela dor que existe no nascimento pode ser revivida, eu quero me
alimentar da placenta, de tal forma que eu nunca teria feito diferente, eu sou gente,
eu sou selvagem. Eu não quero esquecer, eu quero sofrer denso você inteiro para
todo o sempre. Quando estou sozinha em casa, digamos numa terça-feira à tarde e
toca um tango no apartamento junto ao meu, eu já não resisto mais. Sabe, parece haver
algo de nobre, nessa humilhação, de não evitar, não fugir, apenas deixar que doa.
Chorar com vontade grande, lágrimas ácidas e esfregar os olhos com tanta força para
pintar o rosto de preto com os restos do rímel, até ficar tão inchada a ponto de não
enxergar mais quase nada. Não há nada tão libertador quanto atentar contra si mesmo,
atentar sem nenhum pudor, até temer e sentir pena de mim mesma. Fall in love.
Sobre quedas— em/para/por amor. Nessas tardes, eu me deixo cair em completo,
imaginando rostos, lembrando vozes. Quando sinto que cheguei no ponto máximo
da queda-livre, aí surge um alívio único, como se eu tivesse finalmente próxima de te
encontrar, sinto seu braço apoiado no meu ombro e você colocando a minha música
favorita, solto-me arrancada em completa saudade. Ainda bem que eu te escolhi para
me destruir. Lá no fundo do poço mais sujo eu posso ver que apesar de hoje, houve
ontem e anteontem e vários anos atrás, o que importa é que ainda sinto a vida apertada,
ao encontrar restos importantes delicados (que ajudam a viver) em um lixo a céu
aberto, ao descobrir memórias e não cobri-las se novo, por gosto e tortura. É que eu
coloquei a cabeça para fora do carro e o vento bateu jogando meu cabelo no ar e, ao
olhar para trás, eu gostei do que vi e hoje escrevo essa carta por me faltarem palavras.