Prólogo
Epílogo
Conto
Nenhuma peculiaridade, nada a ver com fábulas, assim foi o dia em que César
entregou seu olhar aos olhos de Clara. A garota, que nunca aconchegava olhares,
sentiu imediatamente o desejo que César transmitia pela íris nublada de amor, um
calor ao mesmo tempo intenso como o amargo de um café forte e suave como um
adoçante dietético irradiava do fuzilar de César. A agressiva violação ocular do garoto
detinha de uma graciosidade sublime, não incomodava o alvo, percebia-se uma
incondicional paixão além dos prazeres da carne, um fascínio belo e inexplicável pelo
simples existir de Clara. Todos dias da semana era a mesma situação no ônibus.
Este encontro de olhos perdurou até um devaneio de César dá-lo coragem
o suficiente para seus turbulentos pensamentos corroerem sua razão, permitindo a
paixão tomar o controle de suas ações, César agora era movido por tudo aquilo que
ele sempre sentiu. Em passos desajeitados o rapagão aproximou-se do amor carnificado.
Ele não fazia a menor ideia do nome da dona de seus suspiros e inspirações,
embora às vezes César imaginava qual seria o nome dela, também não tinha noção
alguma da história de Clara, era ciente apenas acerca de como a dama sentava-se delicadamente
no ônibus após ajeitar o vestido amarelo de Nápoles, balançando a perna
inquietantemente e do fato que se atrasava às segundas-feiras de manhã.
Clara encarou seu admirador por alguns segundos, alguma coisa a dizia o que
estava por vir, César carregava um peso gigantesco sobre os ombros, a dilatação vibrante
de sua pupila diante de Clara explicitava seu amor. Duas gotas de suor escorreram
da mão de César, as letras canibalizavam-se em sua boca, não as conseguia expulsar,
formar sílabas, palavras, frases. Depois de algumas paradas e um considerável
número de quebra-molas o silêncio ensurdecedor cessou. Oi, disse ela. Um zumbido
invadiu os tímpanos de César, ofegou instantaneamente. Sempre te vejo, continuou.
O garoto resfolegou engolindo o amargo desespero da situação. E-Eu, gaguejou.
Clara assentiu, como se pedisse para César completar a frase. Te amo, confessou.
Clara riu. Poderia ser vergonha de tamanho apreço! Ser amado gera remorso,
imaginou César. A risada não parou. Um desconforto ácido começou pelo estômago
do garoto, incomodando-o juntamente a uma pontada forte no lado esquerdo
do peito, o gume do cruel platonismo amoroso o havia atingido. Suas esperanças
murcharam e foi ali que ele descobriu que seu amor não valia nada. Não é assim que
funciona, disse Clara. Uma tremedeira incorrigível começou nos lábios de César, ele
não tinha mais o que fazer, as pontas de seus dedos começaram a formigar e ele previu
um choro, daqueles que apenas interrompem ao adormecer. Naquele momento
o gelo que crescia por dentro deu-o a certeza de estar completamente morto por
dentro, já podia sentir o cheiro da putrefação de todos seus sentimentos, o deboche
oriundo de sua paixão dizimou-o.
Clara levantou-se, apertou o botão sinalizador do ônibus e esperou em frente
a porta. César apenas apreciou o seu amor ir, foi assim o último encontro dos dois.
Ao atravessar a rua descuidadamente Clara foi pega por um ônibus, tão parecido com
aquele que havia acabado de sair, provavelmente com os mesmos amores dentro. O
Impacto, forte como o amor de César, foi suficiente para retirar a vida da garota no
mesmo instante, o devoto pôde apreciar cada milímetro do corpo de sua deusa, cada
caquinho jazia espalhado pelo chão da rua, alguns no vidro do ônibus e na calçada,
bagunçados e banhados em carmesim. Todos os passageiros gritaram espantados,
alguns viraram os rostos, outros os dois, mas não César, César riu.