O Rasga-Mortalha

Fantasia
Fevereiro de 2020
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Taverna Bode Mágico

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O Rasga-Mortalha
0:00
0:00

Chuva era dádiva naquele sertão castigado pela seca; mas céu daquele jeito eu nunca tinha visto. Quando pensa que não, era como se tivessem coberto o sol com um saco de farinha. Cordões de faísca cortavam o céu em todas as direções e os trovões não esperavam o anúncio dos relâmpagos por mais que meio segundo. A caatinga toda se balançava nervosa. Longe como a pêga, ouvi a rês mugir um desespero alto, um pedido de socorro. Respondi pra mim mesmo, como se o coitado do animal fosse irrelevante:

— Quem vai lá é o cuêi!

Vaqueiro nenhum era cabra-macho para sair naquela busca; mas eu não era vaqueiro nenhum, então eu saí. Mas aí o céu, que antes era azul, agora se cobria por aquela sensação de algodão sujo de óleo diesel. Foi vendo um monte de raio vermelho-azulado lapear sem dó, tanto o céu quanto a terra, que percebi que toda coragem tem um limite. O bicho que achasse abrigo, e quando passasse essa chuva dos infernos eu ia atrás. O Patrão tinha muitas cabeças, eu só tinha a que carrego em cima do pescoço.

Cada trovão fazia o chão tremer e o cavalo vacilar. Logo eu, que sempre achei que era mais macho, o rei das vaquejadas desde de Jequié até lá em Baixa-Funda, senti que minhas costelas tremiam igual cachorro de pobre em época de estiagem. Me mexi dentro do gibão fingindo coragem pra mim mesmo e desci a taca no castrado. Eu não costumava bater em bicho — sempre achei que qualquer bicho era melhor que gente —, mas eu precisava botar ele pra andar, antes que desabasse água do céu.  Pelo jeito das nuvens, não ia ter chuvisco; ia ser um pé d'água de encher açude e pocar moringa. Curioso é que a terra não tinha aquele cheiro de chuva que eu conhecia.

Mesmo sem olhar, eu sabia que uma fumaça de poeira vermelha levantava atrás do cavalo enquanto a gente descambava pela estrada de chão ao lado da caatinga. Enquanto eu não chegava a lugar nenhum, baixei pra perto do cangote do cavalo e fiquei pensando na vida. Fazia pouco tempo que me chamaram para cuidar de gado naquelas terras, e de vaquejada eu já tava enjoado. A labuta de hoje era pra ser simples: buscar a nelore que fugiu e voltar para sede rápido, e o patrão depois queria falar comigo sobre um outro assunto mais importante. Eu já imaginava o que era, e estava cabreiro desde que saí na busca. Com certeza ele descobriu o que eu fazia antes de minha carreira pulando de vaquejada em vaquejada; e vaqueiro ele já tem de sobra. O que eu achava é que ele tinha feito algum inimigo político e conheceu alguém que sabe do meu passado, e agora tá querendo que eu faça algum serviço daqueles que eu prometi que não ia mais fazer. “Vô cuspir no chão”, disse o velho rabujo; “vá e volte antes que seque”, completou a sentença depois de escarrar e soltar o jato amarelado ao lado da cadeira de balanço. O céu ficava cada vez mais escuro enquanto eu jogava todos aqueles pensamentos pra fora com outro cuspe e parava o castrado puxando a rédea com força. O bicho empinou.

Pra baixo de uma ribanceira tinha uma bodega que eu nunca tinha visto antes. Era esquisito, porque lugar de tomar cachaça não costumo esquecer. Na hora, achei que era porque não andava naquelas bandas como muita frequência, então ignorei aquela sensação e esporei o cavalo, envergando o corpo pra frente. O bicho fez vento ao redor; com certeza ele percebeu que era abrigo contra o temporal que se aproximava, e nem esperou eu descer o chicote de novo; bastou a pontada de leve no flanco para convencer o bicho. O casebre mal cuidado tinha um puxado que dava pra uns três cavalos. Amarrei o corcel do patrão e olhei a barriga do animal pra ver se tinha machucado demais. A espora nem chegou a ferir a pele, pelo que fiquei aliviado. O patrão parecia até que namorava o castrado preto; gostava mais dele do que da filha. Eita, que a menor lembrança de Rosinha me causava uma certa aflição por dentro da roupa. Mas eu não nasci ontem: se eu me enrabichava com a filha do patrão, era certo que eu não ia ver o outro dia chegar. Olhei para a placa grande cavada com formão na madeira. Tinha o desenho de uma cabeça de bode embaixo das palavras.

— Taverna do Bode Mágico... Diabéisso, macho?

Um raio vermelho atingiu um umbuzeiro velho depois de uma rocinha de meia tarefa. Entrei correndo enquanto a árvore se partia ao meio, pegando fogo.

Era amuado o lugar: três mesas feitas de qualquer madeira velha, e cada mesa com quatro bancos do mesmo pau. Atrás do balcão, um monte de garrafas de cachaça de reza, daquelas que servem de remédio pra de um tudo pelo sertão. Bati o olho em umas que eu já conhecia: tinha pra animar a parte de baixo do macho, quando ele não consegue mais dar no couro; tinha pra quando a mulher não queria embuchar; e tinha pra resolver caso já tivesse embuchado. Também tinha cachaça de rico. Reconheci as garrafas que eu já entornei no meu trabalho antigo, quando o dinheiro era muito e a paz era pouca. Limpando um copo de vidro daqueles de média, um galego ficou me encarando com os olhos mais azuis que já tinha visto enquanto eu analisava as garrafas.

— É o quê, siriema lavada? Nunca viu um vaqueiro preto, não, é? Desce uma casca-de-pau qualquer dessa aí, bora!

Afrouxei a correia do chapéu, tirei e coloquei em cima da mesa mais perto da saída. Bati no gibão pra tirar o excesso de poeira e sentei num banco. Desconfiado, eu olhava ora porta afora, ora pro galego que procurava alguma garrafa no meio das outras.

— O moço não quer tirar essa tralha de cima, não? — o galego me falou, pegando uma garrafa preta e virando no copo que acabara de limpar. — Daqui a pouco vai fazer um calor dos infernos. — Ele disse isso apontando com o queixo pra porta.

Olhei pra fora. Tinha uns rodamoinho pequenos no pátio fora da bodega, e o céu já era quase todo preto, com uns cortes vermelhos e laranja de vez em quando. Nada de chuva. Tava mesmo fazendo calor danado, mas vaqueiro quando tira o Gibão é pra tomar banho e dormir. Quando parei de olhar pra fora e me virei de volta, o galego já tava do meu lado, colocando a cachaça na mesa.

Disconjuro! É o capiroto! — As palavras saíram de minha boca sem passar pelo juízo, pois o miserável tava longe e não fez barulho nenhum pra chegar junto de mim.

Os olhos azuis do homem faiscaram com um relâmpago, e ele deu uma gargalhada farta com o susto que tomei. Por puro reflexo, saquei meu revólver e apontei pra testa do galego, puxando o cão da arma.

— Se aquiete, cabra! — falei com a voz rouca e séria que eu já não usava há alguns anos.

O sorriso do galego sumiu, mas não por medo. Franziu o cenho pra mim e falou com voz de pouco-caso:

— Tome sua cachaça e guarde esse brinquedo de criança, Rasga-Mortalha.

Tremi da cabeça aos pés, e por pouco eu não disparo a arma. Eram mais de quinze anos sem ouvir a alcunha. Antes de virar vaqueiro, fui matador; e se minhas costas hoje são um pouco arqueadas é pelas mortes que carrego comigo desde meus 13 anos de idade. Larguei essa vida; não porque fiquei bonzinho, ou porque eu perdi o jeito, mas porque eu tava pegando gosto pela coisa. Quando o cabra pega gosto e é bom no que faz, ele começa a não querer fazer mais nada da vida.

Naquela época, eu usava por cima do gibão uma capa preta de pano, pra visitar os futuros defuntos de noite. Ganhei o apelido por causa do barulho que a capa fazia no vento, quando se roçava no couro, parecendo o bater de asas de uma coruja. Às vezes, eu passava semanas na vigília, emboscando o sujeito, e quando a alma condenada ouvia o barulho do pano era porque eu já tava me mexendo. E, se eu me mexia, a bala do meu revólver ou a ponta da minha peixeira já tinha era terminado o serviço.

— Homem… Não teste sua sorte. Me diga quem te mandou.

— Tome sua cachaça tranquilo. Quem me… mandou… não te quer machucado.

Desarmei o cão do revólver e guardei de volta no coldre. Olhei firme pros olhos azuis, tomei a cachaça numa talagada só e disse:

— Rasga-Mortalha morreu. Meu nome é Jerônimo, e eu não labuto mais com encomenda de defunto. Diga a sei-lá-quem que vá atrás outro.

O Galego deu um sorriso de canto de boca que me arrepiou os pelos da nuca. Virou as costas e caminhou em direção ao balcão.

— Quer comer alguma coisa enquanto espera o tempo ruim passar? Gosta de tripa? Quem sabe uma cervejinha gelada...

Na mesma hora, pensei numa porção de tripa de bode frita e sequinha com uma bia gelada. Minha boca encheu de água e minha barriga roncou fazendo barulho. Só agora eu percebi a fome com que eu tava.

Um trovão forte ressoou, e um clarão entrou pela porta. Virei para olhar: um raio tinha atingido um pé de aroeira, que agora pegava fogo. Quando eu me virei de volta, na minha mesa tinha um prato cheio de tripa de bode frita e uma garrafa de cerveja gelada, daquelas com uma pelinha branca de gelo ao redor da garrafa; vestida de noiva. O galego tinha sumido.

Levantei assustado, puxei o revólver e a peixeira e abri os braços, sem saber direito pra onde apontar.

— Ah, peste! Vá de retro, coisa-ruim! Tu é gente ou é alma? Veio me buscar por causa do meu passado?

— Se eu fosse você, economizava a bala. — A voz do galego vinha de trás, entre a saída e eu. Não contei conversa: já virei atirando.

— Morre, diabo! — Comparado ao barulho do trovão que veio em seguida, o tiro foi como uma bufa de velho. A bala se perdeu no vazio pro lado de fora da bodega. O vento lá fora parecia pior, e uma parede de poeira vermelha turvava minha visão.

— Apareça, seu cabra, pra eu lhe tirar os bofe pra fora na ponta de minha faca!

— Você não é uma pessoa ruim, Rasga-Mortalha…

— É Jerônimo, seu xibungo!

— Você não aceitava qualquer serviço. Você só matou homens e mulheres horríveis, e nunca cobrou de quem passava fome. Você tem consciência de que matar é errado, mas sabe que era mais errado deixar aquelas criaturas vivas… —  A voz vinha de todo lugar, como um grilo fazendo barulho, mas a gente não sabe onde tá. Eu achei que vinha da direita e me virei, mas, quando voltou a falar, a voz passou a vir de outro lugar. — Você acha que seu destino está selado por conta das mortes que carrega nas costas; e você não está errado. Depois de tanto caos, dor e morte, você não será agraciado com um emprego simples, uma história de amor proibido e redenção. Você sabe que não merece nada disso. Não é?

Dei-me por vencido e baixei os braços. Guardei a faca na bainha, coloquei o revólver na mesa sem tirar a mão de cima e sentei no banco.

— Você nasceu pra matar gente ruim. Você diz pra si mesmo que parou antes de tomar gosto, mas a verdade é que todo dia você sonha com cada alma podre que você tirou da face da Terra; e não são sonhos ruins. Você gosta do que fez no passado e não se arrepende; tem é orgulho. Mesmo sabendo que não era certo, você faria tudo de novo. — Aquilo era verdade demais pra eu aguentar sem ficar com os olhos molhados. Peguei um punhado de tripas e mastiguei com raiva, com o mesmo olhar perdido de quando eu era criança e virei homem. Empurrei a comida com uma golada da cerveja. Eu já não tava enxergando a bodega do bode, ou seja lá qual era o nome. Eu tava era revivendo o dia em que enfiei a peixeira no cabra que matou painho e mainha: O homem tinha quase o dobro do meu tamanho. As mãos apertando meus ombros enquanto a luz dos seus olhos se apagavam devagar eram como um abraço de consolo que meu pai me dava quando eu tirava nota ruim. O sangue quente que lhe jorrava do peito na minha bochecha  lembrava o beijo de boa-noite de minha mãe. Gente ruim e safada tinha que morrer. Era a única verdade que eu conhecia na vida.

De volta à bodega, senti na garganta e na boca um amargor que já tinha esquecido. Tentei gritar, mas tudo que consegui foi ranger os dentes com tanta força que pensei que iam trincar.

— Você fez do seu mundo um lugar melhor, Rasga-Mortalha, mas lá não tinha mais lugar pra você. Então, lhe trouxemos para um mundo onde seus… dons… serão úteis. — A voz que não vinha de lugar nenhum foi diminuindo o volume no final da frase, como um rádio cuja pilha acaba.

A ventania parou. 

Olhei para a saída, e não tinha mais poeira vermelha no ar, o céu estava azul e sem nuvens. Saí com a arma em riste. A terra rachada do sertão já não existia, o solo parecia úmido e tinha grama, as árvores eram muito diferentes da caatinga, maiores e mais fartas de folha. Pendurado num galho, eu vi uma capa preta como as que eu usava nos meus tempos de bala ponta de faca, com a diferença de que era uma capa novinha e tinha o desenho de um tipo de coruja que eu conhecia muito bem. Uma Rasga-Mortalha.

Virei para entrar na bodega, mas ela já não estava mais lá. Só o castrado preto, amarrado numa árvore.


Para continuar lendo
Ambiente de leitura
Claro
Cinza
Sépia
Escuro
-T
Tamanho de Fonte
+T
Ícone de DownloadÍcone de formato de leitura
Ambiente de Leitura
Voltar ao topo

O hub de Literatura Nacional mais legal da internet. Explore o desconhecido e descubra o inimaginável.

Leia contos originais de graça aqui na Bilbbo

Contos Originais

Aqui você encontra contos totalmente originais de novos autores nacionais.

Leia
+
Minicontos originais para você ler quando quiser gratuitamente.

Minicontos Originais

Conheça os Minis da Bilbbo que de pequenas não possuem nada.

Leia
+

Podcast literário

Quinzenalmente um episódio novo com profissionais e autores do mercado independente.

Ouça agora
+
Ícone do blog de literatura independente.

Blog
literário

Leia reviews, análises e o que mais der na telha lá no nosso blog.

Leia no blog