O que você sonha em fugir

Sci-Fi
Começou, agora termina queride!

Conquista Literária
Conto publicado em
Mirage: Miscelanea de Narrativas Irreais vol. 01

Prólogo

Epílogo

Conto

Áudio drama
O que você sonha em fugir
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O sol já está nascendo, reparo, e olho para o teto com um gosto que nunca

tinha sentido antes enquanto você fala, como de costume, que eu mereço muito mais.

Qual é o problema se estar deitada do seu lado olhando para o teto lascado, com essas

flores terríveis desenhadas por um dos seus dias ruins é, para mim, uma obra de arte?

Pode ser tosco, mas a gente é mais, continue a rabiscar as flores. Se você não arriscar

o teto, quem vai? Continue a rabiscar as flores.

“Você conhece poesia, leu os clássicos, fala de cinema, zomba da política, leva

até jeito como escritora, se deixa fazer algo grande”, você comenta, sempre tão pretensioso.

Acho isso uma grande besteira, eu devo é ganhar melhor do que a maioria

das escritoras fracassadas, além do mais, todas têm casas e maridos inúteis, enquanto

eu durmo com todos eles e moro em cada uma delas. Elas podem até sonhar mais

alto, tenho é pena, nunca vão saber como é o mundo aqui embaixo. Não quero ser

nada. “É melhor reinar no inferno do que servir no céu?”— você insiste rindo. “O

céu pelo clima, o inferno pela companhia”— respondo. Sou a puta mais culta que

você já conheceu na sua vida, não sou? É por isso que você tem uma foto minha na

carteira? Fico pensando o que a sua mulher pensaria se encontrasse isso, se é que ela

existe. Engraçado isso: já vi tantos homens se confortando dizendo para mim que

não são casados, mas cada vez mais eu suspeito que você cultiva a fantasia de uma

esposa imaginária, como se só existisse prazer na infidelidade. Masoquista é aquele

que se queima, principalmente pelos pecados que nunca cometeu e o amor é sempre

uma forma de masoquismo.

Quando eu era pequena, sonhava que o inferno era um cabaré francês, Lúcifer

era um rapaz alongado e charmoso que me apresentava à comunidade: estavam

todos lá e me esperavam ansiosamente.

Você brinca com os meus dedos frios me perguntando para onde eu vou —

diz que faria qualquer coisa para ir junto. Amor, por que lhe parece tão angustiante

que eu apenas goste de ser a outra? Não tenho para onde ir e tudo bem, nunca quis

chegar a lugar nenhum. Quantas vezes você vai me pedir para ficar, aterrorizado com

a minha condição de fugitiva? Você vive me perguntando o que eu sonho em fugir,

diz que é fútil meu hino da solidão. Desde sempre que eu já fugia, eventualmente, de

amores jovens ou compromissos pontuais, entretanto, sabia que nunca conseguiria

parar, como se fosse um fardo ou uma destinação que eu, em um deleite, sempre me

encaminhei: a minha fome é a de adiar o mundo, a de não ter nada para colocar na

mala. As despedidas podem até ser dolorosas, mas eu adquiri o hábito de nunca ficar

por tempo suficiente e não há como realmente deixar pessoas nas quais você nunca

esteve. Entretanto, não posso dizer que não seja duro não durar, é difícil sim em

alguns momentos, mesmo assim, eu prefiro essa nota rápida que é a minha liberdade

escrita nas coisas.

Às vezes, me pego em um bar vazio, quase fechando, madrugada adentro e

penso se esse é o destino adequado para uma romântica tão convicta e irremediável

(como se eu não soubesse muito bem do gostinho doce que a tragédia tem). Talvez

se o tempo fosse diferente, ou se eu fosse outra, as coisas poderiam não ser assim.

Num dia fatídico, as mulheres resolveram queimar seus sutiãs e agora se espera que

sejamos alguém na vida: temos que trabalhar, votar e dirigir, a nossa voz é de extrema

importância, meu deus. Fossem outros tempos bastava que eu lesse livros e

tocasse piano. (Sempre me identifiquei mais com os objetos do que com as pessoas,

não quero ser gente, quero ser coisa, matéria dura e oca, ser de carne e osso dói muito).

Rezo para Deus para que ele me transforme em um abajur. Minha preferência

pelo demônio se atenuou na medida que eu reparei que talvez eu me veja também

na hipocrisia divina, na bondade questionável d’Ele. Ele criou os homens para ser

adorado, eu também adoro ser idolatrada.

Você parece ter voltado a dormir, vou embora e levo a foto comigo.

Leio o jornal de ontem, ou anteontem, pouco importa. Que eu leia o jornal

do século passado, as inscrições em pedra, os fósseis enterrados, tanto faz. Mais vale

passar os olhos pelas páginas sujas, acariciar as manchetes que imploram por atenção.

Para que os passantes olhem e vejam que eu parei para ler o jornal, que eu me preocupo

com o mundo. É importante até suspirar: que absurdo! Mais uma bomba! Mais

uma vida! Mais um desastre! Passantes ridículos, um tão absurdo quanto o outro, eu

mais desastre que todos eles. Eles concordam quando eu reclamo das notícias, a fatalidade

inconformada com a desgraça e tudo que eles sabem fazer é concordar. Uma

pessoa que não concorda com nada é o que? Interessante, no mínimo.

Queria contar que eu não deixei de ser o que não fui por falta de escolha, na

verdade, a ideia foi justamente ter muitas. Eu escolhi não escolher, não sou lá muito

boa em me posicionar, definir isso em detrimento daquilo. Uma mestra em estar-entre,

em cima dos muros, com o rabo entre as pernas.

Poucos sabem que eu tenho estudos, sou letrada e tudo isso, leio mais do que a

maioria da clientela, moro num apê minúsculo, mas moderninho, frio e minimalista

no centro da cidade, a ideia é ter apenas coisas suficientes que caibam no bolso, ou

que eu não me importe em deixar para trás. De qualquer forma, ganho bem, mais

do que o suficiente para sustentar as minhas vontades capitais, entendam, eu gosto

da decadência, do desgosto na cara dos conhecidos: às vezes, apareço às reuniões

da turma que estudou comigo, mesmo sem ter sido convidada e me comove aquele

desprezo no olhar frio dos antigos colegas. Não sei se é impressão minha, mas parece

estar sempre imbuída uma inveja ou um desejo secreto e isso me sobe à cabeça numa

crueldade inata. A minha promiscuidade é um encanto aos olhos dos outros e eles

me odeiam por isso, há coisa mais irresistível? Ainda capricho no traje de prostituta

quando vou encontrá-los, aqueles vestidos gritantes de lantejoulas vermelhas, salto-

-altos extravagantes e, porventura, até glitter ou bijuterias exageradas. As fantasias

banais e o seu tédio constante são tão frágeis que se abalam facilmente por uma

personagem hollywoodiana e eu me divirto contando casos absurdos e totalmente

ridículos, vendo-os se deliciarem ao me confundirem com a própria aventura. O que

mais choca são os palavrões, meu deus, como amam palavrões, essa elite puritana

de novos ricos se consola na minha liberdade, sonhando também com essa remota

possibilidade.

Muitos sentem pena, até você sente, eu acho. Não sinta, eu só preferi uma

vida interessante do que um final feliz. Você diz que as 50 pratas são um preço pífio

a se pagar pelo meu serviço de musa, talvez eu só seja musa por que sou uma prostituta,

por que tenho mistérios cuja verdade você não guarda, por que você acha que

é só mais um, por que sabe que o nosso amor não pode ser mais do que um amor,

nunca nos casaremos ou teremos filhos, ou moraremos juntos e como tudo aquilo

que é impossível, é muito mais bonito.

Depois de devorar o jornal em dois tempos, caminho pela cidade que é minha.

A silhueta dos prédios arranha-céus me serve de café da manhã, pouco importa

o nascer do sol mais bonito quando não há nada nem ninguém para recortá-lo em

extremidades gritantes. Caminho sempre virando à esquerda, até me perder em absoluto,

depois eu penso em como voltar: o importante é não deixar rastros, o importante

é não lembrar das esquinas deixadas. Isso me incomoda, mesmo assim, realizo

esse exercício diário, lembrança de que eu escolhi estar sozinha, que ter todos é também

não ter ninguém, eventualmente dá um aperto no peito, mas não é nada sério.

Você me perguntou o que eu sonho em fugir, bom, acho que já mudei tanto o motivo

e o lugar que hoje não sei mais o porquê exato, só adquiri o hábito, como o de usar

tênis coloridos. E como parar? É uma linha tão simpática de ser, a boemia enrustida,

o romance plural.

Sei lá, há algo de bonito nisso: que eu sou só os charmes e caprichos, um mal

necessário na vida dos homens, os detalhes mundanos, a poesia nefasta, os suaves desalentos

de um cotidiano para sempre sonhado. Sou aqueles que preferiram os cafés e

bares escuros e a cerveja como amante contínua, escolheram os trilhos e não o trem.

Sou uma escrita torta em linhas erradas, os crimes da Terra imperdoáveis e a nudez

forte da verdade. Talvez, a solução seja justamente o fato de você se chamar Raimundo

(não rima com o teto florido lascado do seu apartamento e, ainda assim, aquele

estar do seu lado é um dos meus lugares prediletos). Talvez eu te devolva aquele 3x4

meu que encontrei na sua carteira hoje cedo, continue a rabiscar as flores, com amor,

Elis.

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